Música e outras coisas
UM TROMPETE NO CAFÉ DA MANHÃ
Ernest Harold Bailey é mais um excepcional músico que, apesar do formidável talento, jamais figurou no panteão onde repousam os grandes nomes do jazz. Não obstante, seus fãs formam uma pequena, mas extremamente aguerrida, confraria, para quem a audição dos seus discos é uma experiência litúrgica e fascinante. Dono de uma técnica invejável e versátil como poucos, Bailey é uma espécie de unsung hero, aquela espécie de herói anônimo que apesar de ter realizado grandes feitos, jamais teve sua importância reconhecida.
Benny, como era mais conhecido, nasceu no dia 13 de agosto de 1925, na cidade de Cleveland, Ohio, em uma família onde aflorava a paixão pela música. Seu pai tocava saxofone e a mãe, piano. Este, aliás, foi o primeiro instrumento do pequeno Benny, que começou seus estudos ainda na infância. Após um período dedicado à flauta, ele descobriu o trompete e nunca mais deixou o instrumento.
A educação musical formal foi feita, inicialmente, na East Tech High School, onde fez parte de uma banda chamada Counts of Rhythm, onde também atuavam o contrabaixista Vic MacMillan, que chegou a gravar com Charlie Parker, e o saxofonista e arranjador Willie “Face” Smith, em cujo currículo constam atuações ao lado de Tadd Dameron, Thelonious Monk e John Coltrane. A banda tocava em festas escolares e as gigs eram pagas em cachorro-quente e refrigerante. Bailey recorda: “Nós copiávamos os álbuns de Louis Jordan e tocávamos e bailes”.
Findo o ensino médio, Benny foi estudar no renomado Cleveland Conservatory of Music e também teve aulas com o pianista e compositor George Russell. Já atuando profissionalmente, o trompetista passou, brevemente, pelas bandas de Jay McShann e Bull Moose Jackson. Em 1944, ele e o antigo companheiro Willie Smith foram contratados pelo ator e cantor Scatman Crothers, para atuar em sua orquestra. Com ela, a dupla viajou pelos Estados Unidos de costa a costa, em uma rotina de concertos e gravações que durou alguns anos.
Durante esse período, Bailey participou de uma gig no Majestic Hotel, em Nova Iorque, na qual Tadd Dameron, outro ilustre filho de Cleveland, comandava o piano. Dizzy Gillespie também participava da sessão e ficou impressionado com o talent do jovem trompetista: “Aquilo era diferente de tudo o que eu já havia escutado. Totalmente diferente! No início eu pensei que ele estivesse se perdendo nas notas, mas quanto mais eu ouvia, mais fascinado eu ficava. Fiquei sentado na cadeira, ouvindo o garoto tocar e, realmente, fiquei hipnotizado com o som que ele fazia”.
Em 1948, graças a uma indicação do trombonista William “Shep” Shepherd, outro músico oriundo de Cleveland, Bailey foi chamado para um testa para atuar na big band de Gillespie, que se preparava para excursionar pela Europa. Dizzy, que ainda se lembrava da impressionante performance do jovem alguns anos antes, nem pestanejou e o trompetista foi imediatamente contratado.
O próprio Benny recorda do impacto que a primeira viagem ao Velho Continente teve sobre ele: “Os europeus aceitavam com muita naturalidade a música que nós fazíamos e reconheciam nela algo novo. E nós fomos muito bem recebidos lá, na França, na Suécia, em todos os lugares. Eu adorei aquilo! Adorei as pessoas, o modo de vida delas, tudo. Ali mesmo eu decidi que voltaria à Europa outra vez. Tudo o que eu queria era viver e trabalhar ali”.
De volta aos Estados Unidos, Benny tocou alguns meses com o saxofonista Teddy Edwards, até ser contratado por Lionel Hampton, ainda em 1948. A parceria com o vibrafonista perduraria cinco anos e durante esse período, Bailey se firmaria como um dos principais solistas da orquestra de Hampton, a bordo da qual o trompetista voltou outras vezes à Europa.
Em uma desses ocasiões, em 1951, ele executou um solo tão primoroso em “Cool Train” (composição do pareceiro Willie “Face” Smith, que também fazia parte da big band de Hampton) que deixou impressionado o jovem trompetista Quincy Jones, outro membro da orquestra. Inspirado pela performance, Jones compôs “Meet Benny Bailey”, que se tornaria um verdadeiro standard do jazz.
Em 1953, Benny resolveu deixar Hampton, que novamente estava em turnê pela Europa, e se fixou na Suécia. Ali, fez parte da Swedish Radio Big Band, sob a liderança de Harry Arnold, e tocou com outros músicos norte-americanos então estabelecidos ou de passagem pelo continente europeu, como Stan Getz, Randy Weston, Benny Golson, Count Basie, Phineas Newborn, Ernestine Anderson, Quincy Jones e outros. Quando Quincy Jones montou a sua própria big band, não hesitou em convocar o antigo parceiro para assumer um dos trompetes.
Benny retornou aos Estados Unidos por um curto período, no final de 1960, para uma excursão com a orquestra de Quincy. Na ocasião, aproveitou para gravar o elogiado “Big Brass” para a Candid, liderando um hepteto onde pontuavam Phil Woods, Julius Watkins, Les Spann, Tommy Flanagan, Buddy Catlett e Art Taylor. As gravações do disco ocorreram em novembro daquele ano.
Entre janeiro e fevereiro de 1961 e com uma formação parecida – Osie Johnson substituiu Art Taylor nas baquetas e Spann não participa, dando lugar aos formidáveis Curtis Fuller, no trombone, e Sahib Shihab, no saxofone barítono – Bailey participou do álbum “Rights of Swing”, também para a Candid, desta feita sob a liderança de Woods.
Logo após essa gravação, o trompetista retornou à Europa, agora se estabelecendo na Alemanha. Um de seus primeiros trabalhos ali foi ao lado do inclassificável Eric Dolphy, no álbum “In Europe”, gravado ainda em 1961 para o selo Debut, de Charles Mingus. Em seguida, Benny se juntou à Kenny Clarke-Francy Boland Big Band, com a qual manteria uma prolífica associação até 1973.
Benny pode ser ouvido no poderoso “Soul Eyes: Jazz Live At The Domicile, Minich”, gravado ao vivo no Domicile Club, em Munique, em 1968, e lançado pela Saba, ligada à gravadora MPS. Esse álbum é considerado um verdadeiro clássico e um dos pontos altos de sua discografia. Aqui, ele está acompanhado pelo saxofonista Nathan Davis, pelo pianista Mal Waldron, pelo contrabaixista Jimmy Woode, pelo baterista Makaya Ntshoko e pelo percussionista Charly Campbell.
Em 1969, Bailey participou do disco que lhe deu a maior visibilidade perante as novas gerações. Aos quarenta e quatro anos, ele brilha intensamente no álbum “Swiss Movement” (Atlantic), sob a liderança da dupla Eddie Harris e Les McCann. Gravado ao vivo durante a edição daquele ano do Festival de Montreux, o disco teve vendagens bastante significativas e é considerado um verdadeiro clássico do soul jazz. Naquele mesmo ano, o trompetista foi incorporado à Duke Ellington Orchestra, que se encontrava na Europa para uma turnê comemorativa dos 70º aniversário do bandleader.
Os anos 70 foram recheados de novas oportunidades profissionais. Tuou ao lado de Sarah Vaughan, Sam Jones, Betty Carter, Charlie Rouse, Red Mitchell e Dexter Gordon, com quem chegou a co-liderar um quinteto. Também se apresentou em festivais como Pori, Molde, Montreal, Praga e Antibes. Em 1975, ele tocou novamente em Montreux, juntamente com Gerry Mulligan e com o quinteto de Charles Mingus. A apresentação, que inclui versões de “Take the A Train” e “Goodbye Pork Pie Hat”, está disponível em DVD (“Live in Montreux: 1975”).
Bailey também foi membro da Concert Jazz Band, sob o comando do pianista George Gruntz, por onde passaram craques como Herb Geller, Dusko Gojkovitch, Jerry Dodgion, Woody Shaw, Jimmy Knepper, Joe Farrell, Sahib Shihab, Lew Tabackin, Dom Um Romão, Daniel Humair e Niels-Henning Orsted Pedersen. No final da década, seu parceiro mais freqüente foi o saxofonista Sal Nistico, outro expatriado norte-americano que adotou a Europa como lar.
Na década seguinte, Benny continuou a trabalhar com big bands, formação em que se sente bastante à vontade. O trompetista voltou aos stados Unidos em 1980, fixando-se em Nova Iorque, onde fundou a Upper Manhattan Jazz Society, juntamente com o saxofonista Charlie Rouse. Ele também fez parte do quinteto do pianista Mal Waldron, mas em 1983 decidiu retornar à Europa.
No ano seguinte, ele excursionou pela Europa com a Paris Reunion Band, juntamente com ases como o saxofonista Joe Henderson, o trombonista Grachan Moncur III e o também trompetista Woody Shaw. Já estava, então, estabelecido em Amsterdã, na Holanda, e firmemente engajado no cenário jazzístico da cidade, tocando regularmente com a Conexion Latina, uma banda especializada nos ritmos afro-cubanos, especialmente e salsa e o calipso.
Após quase três décadas sem se apresentar em sua cidade natal, Benny retornou a Cleveland para tocar na edição de 1992 do Tri-C JazzFest. Na oportunidade, o músico foi homenageado pela Câmara de Vereadores da cidade e sua presença mereceu destaque nos jornais locais. Em uma entrevista, confirmou uma história narrada por seu amigo Willie “Face” Smith, de que a primeira coisa que fazia, log ao acordar, era praticar ao trompete: “É verdade. Eu ainda faço isso todos os dias. Antes mesmo de tomar o café da manhã eu tenho que tocar o meu set matinal”.
A discografia de Bailey, como líder, é relativamente pequena. Seus discos foram quase todos lançados por pequenos selos europeus, como Storyville, Sonet, Metronome, SteepleChase, Saba, Freedom, Enja, MPS, Ego, Kick Music, Hot House e Gemini. Em janeiro de 1996, o trompetista entrou no Loft Studio, em Colônia, para gravar o ótimo “I Thought About You”, para o selo alemão Laika Records. Ele estava acompanhado do pianista Frank Wunsch, do baixista Fritz Krisse e do baterista Clarence Becton. O vocalista Wayne Bartlett faz uma participação especial, cantando em duas faixas.
O disco abre com uma ensolarada versão de “Yardbird Suite”, de Charlie Parker. O trompete assurdinado de Bailey faz a abertura em tempo lento, mas à medida em que os outros instrumentos vão se agregando a temperatura aumenta e o resultado é contagiante. Sua execução é sóbria, sem pirotecnias ou floreios, e mesmo seus solos mais intensos e febris jamais perdem a elegância. Wunsch possui uma pegada bastante afinada com o blues e a bateria de Becton é swingante, colorida e altamente melódica. Impõe-se registrar o soberbo trabalho de Krisse e seu solo abrasador.
“I Got It Bad (And That Ain't Good)”, de autoria de Duke Ellington e Paul Francis Webster, merece uma interpretação das mais refinadas, com amplo destaque para a exuberância vocal de Bartlett. Afinado e dono de uma técnica assombrosa, seu timbre grave de barítono consegue ser, a um só tempo, viril e acolhedor, sendo impossível não lembrar do espetacular Johnny Hartman. Grandes atuações de Becton e do líder, que se revela um excepcional intérprete de baladas.
“This One For Trunk” é uma composição de Krisse, feita em homenagem ao contrabaixista alemão Peter Trunk, falecido em 1973. O autor do tema brilha intensamente, realizando evoluções harmônicas com muita precisão e criatividade. O instigante Wunsch também tem uma ótima participação, extraindo do piano uma sonoridade límpida e essencialmente calcada nos aspectos contemporâneos do seu instrumento.
Um arranjo dançante e relaxado traz a lume toda a graça de “Don't Get Around Much Anymore”, uma das mais preciosas composições de Ellington, desta feita em parceria com Bob Russell. Mais uma vez a voz melodiosa de Bartlett merece todos os elogios, em uma performance de extremo bom gosto. O empolgante solo de Bailey, trazendo inflexões típicas da Era do Swing em suas frases, é outro ponto alto desta faixa.
“Prelude to a Kiss” é o terceiro tema de Ellington presente no disco e foi composta a seis mãos, juntamente com Irving Gordon e Irving Mills. A versão do quarteto é intimista, quase sombria. Bailey faz um uso parcimonioso das notas e transmite enorme emotividade em seu sopro, lembrando as apaixonantes interpretações de Chet Baker. O piano minimalista de Wunsch e a percussão recatada de Becton merecem ser ouvidos com toda atenção.
“North Star Street” é uma comovente balada de autoria de Bailey. A belíssima abertura fica a cargo de Wunsch e logo em seguida contrabaixo e bateria se juntam ao piano, pavimentando a entrada para a espetacular entrada do trompetista. Usando a surdina com maestria, Benny destila sofisticação e lirismo, e seu timbre se mantém aveludado mesmo nos registros mais agudos. A destacar também a delicadeza com que Krisse manuseia seu contrabaixo.
“I Thought About You”, bela composição de Johnny Mercer e James Van Heusen, foi gravada por quase todos os grandes nomes do jazz, de Frank Sinatra a Shirley Horn, passando por Coleman Hawkins, Miles Davis, Keith Jarrett e Ray Brown. A releitura feita pelo quarteto é irreverente, com direito a uma abordagem pouco ortodoxa, especialmente por parte de Wundsch, cuja atuação é nada menos que magistral. Todos os músicos executam solos longos e muito bem concatenados, com destaque para o líder e seu indefectível trompete com surdina.
O disco encerra com a esfuziante “Eukalypso”, composta por Wunsch e fortemente calcada nos ritmos afro-caribenhos, embora em diversas passagens a performance do quarteto esteja em sintonia com o hard bop vigoroso de um Horace Silver ou um Art Blakey. O líder demonstra muita personalidade e disposição e ao ouvi-lo é impossível não lembrar das palavras do crítico Richard Cook, para quem Bailey era “um solista esperto, um bopper rápido e ágil, cujos solos eram sempre construídos a partir de longas linhas melódicas”.
Benny já havia ultrapassado a casa dos 70 anos quando gravou esse disco, mas a idade jamais comprometeu a força do seu toque e nem arrefeceu o seu entusiasmo. Um álbum cheio de predicados, feito por um artista que, mesmo na maturidade, ainda tocava com o ímpeto e a voracidade de um garoto.
Bailey se manteve em atividade regular ao longo de toda a década de 90 e nos primeiros anos do novo século. Em 2000 gravou um álbum tributo a Louis Armstrong intitulado “The Satchmo Legacy”, para a Enja, secundado por uma sessão rítmica estelar: John Bunch no piano, Bucky Pizzarelli na guitarra, Jay Leonhart no contrabaixo e Grady Tate na bateria. Sua última gravação como líder foi “I Remember Love”, feita em janeiro de 2003 para a Laika Records, tendo como parceiros o pianista Kirk Lightsey e a Petrasek Epoque String Orchestra.
O trompetista foi encontrado morto em seu modesto apartamento, em Amsterdã, no dia 14 de abril de 2005. Estima-se que ele tenha morrido cerca de uma semana antes. Seu corpo foi levado para o necrotério municipal e a família só soube do ocorrido vinte dias depois. Duas de suas irmãs viajaram para a Holanda, a fim de fazer o reconhecimento do corpo, e depois de ultrapassados os procedimentos burocráticos ele foi, finalmente, cremado no Westgaarde Crematory, no dia 10 de maio.
Benny estava escalado para a edição daquele ano do North Sea Jazz Festival, onde tocaria no dia 08 de julho. Em virtude do seu falecimento, os organizadores do festival realizaram um concerto denominado “Tribute to Benny Bailey”, onde atuaram os músicos do seu último quarteto – Rob van Bavel no piano, Frans van Geest no contrabaixo e John Engels na bateria – e convidados como os trompetistas Joe Wilder e Ack van Rooyen e o saxofonista Ferdinand Povel.
Ao saber da morte do velho amigo, Quincy Jones declarou: “Benny era uma das pessoas mais cativantes que eu conheci. Para mim, ele e Dizzy eram os maiores trompetistas de todos os tempos. Ele tinha um formidável controle da respiração, um alcance sonoro notável e a técnica mais refinada que eu já ouvi em um trompete. Vou sentir saudades de você, Benny”.
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