Música e outras coisas
PARA ALÉM DA CORTINA DE FERRO
Dusko Gojkovich nasceu no dis 14 de outubro de 1931, na cidade de Jajce, que na época fazia parte da antiga Iugoslávia (atualmente, a cidade pertence à Bosnia-Herzegovina), embora tenha optado pela nacionalidade sérvia, quando o país unificado pelo Marechal Josip Broz Tito entrou em colapso e se desfez em meia dúzia de novos países.
A paixão musical despertou cedo e de 1948 a 1953 ele estudou na Acadamia de Música de Belgrado. Na então capital iugoslava, Dusko, cujo primeiro ídolo foi o lendário Roy Eldridge, ouvia jazz com devoção e tocava trompete em bandas de dixieland e swing. Em 1949 foi recrutado para a big band da Rádio Belgrado. Concluído o curso, o jovem trompetista de apenas 23 anos resolveu tentar a sorte na Alemanha Ocidental, atendendo ao convite da pianista alemã Jutta Hipp, que estava em turnê pela Iugoslávia.
O ano era 1954 e não demorou muito para que fosse contratado para a Frankfurt All Stars Band. Nesse grupo, o sérvio participou de sua primeira gravação, em 1956, chamando a atenção do bandleader germânico Max Greger, com quem trabalhou por alguns meses. Logo em seguida, Kurt Edelhagen, líder de uma das mais renomadas orquestras alemãs, o contratou para ser o primeiro trompetista de sua big band. Para que se tenha uma idéia da importância de Edelhagen no cenário jazzístico alemão, basta dizer que entre os seus arranjadores estavam expoentes como Francy Boland e Claus Ogermann.
Dusko já havia adquirido uma boa experiência no circuito de clubes de Frankfurt, tendo acompanhado diversos ases do jazz em turnê pela Alemanha, como Chet Baker e Stan Getz. 1958 foi um ano inesquecível, pois o trompetista foi convidado a fazer parte da Newport International Youth Band, grupo formado por jovens jazzistas europeus, que se apresentou com sucesso na edição daquele ano do Newport Jazz Festival. Alguns dos seus colegas na banda eram o trombonista alemão Albert Mangelsdorff, o pianista suíço George Gruntz e o guitarrista húngaro Gábor Szábo.
A apresentação em um festival tão importante abriu as portas do Mercado europeu para Gojkovich, que durante os três anos seguintes foi uma das atrações mais assíduas dos festivais de jazz do Velho Continente. Em 1961 ele decidiu retomar os estudos musicais e escolheu o prestigioso Berklee School of Music, onde estudou arranjo e composição. Em Boston, foi aluno do lendário trompetista Herb Pomeroy e passou a tocar também o flugelhorn.
Dusko fez parte do Berklee School Quintet e da big band da instituição, onde pôde tocar com outros alunos que, num futuro próximo, se tornariam nomes relevantes no cenário jazzístico, como o vibrafonista Gary Burton, os saxofonistas Sadao Watanabe e Steve Marcus, o pianista Mike Nock e o contrabaixista Dave Young.
Gojkovich estava tão focado nos estudos musicais que chegou a recusar vários convites para se juntar a bandas como as de Count Basie, Stan Kenton e Benny Goodman. Somente em 1963, após a conclusão do curso – feito com uma bolsa de estudos – ele se sentiu à vontade para retomar a carreira profissional e logo foi contratado pelo trompetista e bandleader canadense Maynard Ferguson para se juntar à sua big band, em substituição ao sueco Rolf Ericson, por sua vez, estava se mudança para a orquestra de Duke Ellington, onde ocuparia o lugar de ninguém menos que Clark Terry.
Uma honra para o jovem iugoslavo, que seria o responsável pelo segundo trompete da banda. Quanto ao líder, eis a sua opinião sobre o homem e o músico: “Ele é uma das pessoas mais maravilhosas que conheci. Um sujeito muito tranqüilo e gentil, e sempre positivo, alegre e divertido. Além disso, Maynard é um trompetista fantástico. Talvez algumas pessoas pensem que existam muitos trompetistas como ele, mas isso não é verdade. E ele jamais saiu por aí se proclamando um gênio do instrumento. Mas é isso que ele é, sobretudo quando está solando: um gênio do trompete”.
A convivência musical durou pouco mais de um ano, pois Ferguson foi obrigado, por razões econômicas, a desmanchar a sua orquestra, em 1964. Mas serviu como vitrine para o trabalho de Gojkovich, que logo em seguida foi contratado para integrar a orquestra de Woody Herman. Com Herman, o trompetista fez uma longa excursão pela África, a convite do Departamento de Estado norte-americano.
Após a turnê africana, foi a vez da orquestra excursionar pela Europa Oriental, que então vivia sob o domínio comunista e o conjunto de países do leste europeu era conhecido como Cortina de Ferro. A banda tocaria na Hungria, Romênia, Tchecoslováquia e Iugoslávia. Depois de mais de dez anos sem retornar ao país de origem, Dusko não escondia a aflição. Ele lembra: “Eu estava bastante nervoso quando chegamos em Belgrado. Recordo de ter dito aos meus companheiros Bill Chase e Nat Pierce que se eles me vissem sendo conduzido por uns caras de uniforme azul, podiam procurar outro trompetista porque eu provavelmente seria mandado para a Sibéria”. De qualquer modo, o trompetista passou incólume pela turnê e continuou sua trajetória profissional sem maiores sobressaltos.
O convívio com Herman também foi muito marcante na trajetória pessoal e professional de Gojkovich, que cresceu bastante não só como solista, mas principalmente como compositor e arranjador. Ele reconhece a importância do bandleader e recorda: “Woody Herman me encorajava bastante. Ele não apenas aceitava minhas sugestões como chegou a gravar diversas composições minhas, além de me dar oportunidade para elaborar arranjos para a banda”. A parceria durou apenas um ano, pois o trompetista sentiu a necessidade de retornar à Europa e priorizar a carreira solo.
De volta à Alemanha em 1965, ele gravou seu primeiro álbum como líder, “Swinging Macedonia” (Enja), cujo repertório incluía vários temas folclóricos dos Bálcãs, executados em ritmo de jazz. No acompanhamento, destacam-se o sempre instigante Mal Waldron ao piano e o jovem saxofonista Nathan Davis, que futuramente seria o criador e líder da célebre Paris Reunion Band.
Estabelecido como um dos principais nomes do jazz do Velho Continente, Dusko também acompanhou alguns dos gigantes norte-americanos em concertos e gravações pela Europa, destacando-se Miles Davis, Dizzy Gillespie, Gerry Mulligan, Sonny Rollins, Duke Jordan, Freddie Hubbard, Lee Konitz, Phil Woods, Art Farmer, Clark Terry, Woody Shaw e Slide Hampton.
Em 1966, ele decidiu se fixar em Munique, onde montou um grupo com o saxofonista Sal Nistico, ex-companheiro na big band de Woody Herman e que seria seu parceiro constante ao longo dos próximos anos. Dois anos depois, em 1968, entrou para a célebre The Kenny Clarke-Francy Boland Big Band, onde pode conviver com alguns dos mais talentosos jazzistas de todos os tempos, como Benny Bailey, Ake Persson, Idrees Sulieman, Ronnie Scott, Johnny Griffin, Sahib Shihab, Jimmy Woode e Billy Mitchell, entre outros. No ano seguinte, Dusko montaria o Summit Quintet, em parceria com o baterista Philly Joe Jones, que na época morava na Europa.
O vínculo com a big band de Kenny Clarke e Francy Boland perduraria até 1973, quando o trompetista se desligou da orquestra. Desde o início da década de 70 Dusko mantinha um projeto paralelo, liderando a sua própria big band, na qual pontuavam vários músicos europeus de primeira linha, como os trompetistas Palle Mikkelborg e Rolf Ericsson, o saxofonista Ferdinand Povel e o clarinetista Frank St. Peter. Ali Gojkovich pôde exercitar com maior liberdade a sua vocação para o arranjo e a composição, e manteve a orquestra em atividade até 1976.
Com o fim da sua big band, o trompetista voltou a trabalhar como freelancer, elaborando arranjos para orquestras alemãs, como a Dutch Skymasters, a Munich Big Band e a NDR Big Band. Também montou um hepteto com o trombonista norte-americano Slide Hampton, que chegou a fazer algum sucesso na segunda metade dos anos 70, sobretudo no circuito europeu de festivais de jazz. Também participou, como sideman, de shows e gravações de gente como Don Menza, Buddy De France, Big Joe Patton, Tete Montoliu, Nathan Davis, Alvin Queen e do ex-patrão Kenny Clarke.
Em 1986 ele refez a sua big band, a qual, desde então, se mantém em atividade. No ano seguinte, após um hiato de mais de quinze anos sem gravar um disco em seu próprio nome, lançou o elogiado “Celebration”, pelo selo japonês DIW, no qual está apoiado por uma sessão rítmica estelar: o pianista Kenny Drew, o baterista Al Levitt e o contrabaixista Jimmy Woode.
O trompetista passaria outros sete anos sem gravar como líder, mas em 1993 o panorama mudou radicalmente. Assinou com a gravadora alemã Enja, por onde havia lançado seu primeiro álbum solo, ainda nos anos 60, e despejou no mercado uma dúzia de excelentes álbuns, que se alinham entre os melhores já gravados no continente europeu. O primeiro deles foi o estupendo “Soul Connection: Vol. 1”, gravado entre os dias 28 e 29 de junho de 1993 e que recebeu o German’s Jazz Critics Award do ano seguinte.
Além de excelente intérprete, Dusko é um compositor muito criativo – sete das oito faixas são de sua autoria – e um arranjador talentoso. Secundado pelos excelentes Tommy Flanagan (piano), Eddie Gomez (contrabaixo) e Mickey Roker (bateria), o trompetista fica à vontade para mostrar suas diversas facetas, manejando com igual maestria o trompete e o flugelhorn. Complemente-se dizendo que o álbum também conta com a presença do saxofonista Jimmy Heath em cinco das nove faixas.
A primeira delas é, exatamente, a que dá nome ao disco e sua estrutura é bastante assentada no blues, embora tenha elementos do soul jazz de um Horace Silver ou de um Lee Morgan. O líder é um trompetista econômico e suas intervenções primam pelo rigor harmônico, muito mais que pela velocidade ou pela profusão de acordes. Heath honra o apelido de “Little Bird” e improvisa com sagacidade e inteligência, dando ao tema um inescapável conteúdo bop. O sempre elegante Flanagan é um esteta, sempre muito preocupado com a beleza e com o bom gosto daquilo que toca e seu solo, impecável, é um amálgama de limpidez e fluência.
A seguir, Dusko presta homenagem àquele que, ao longo dos anos, assumiu o papel que havia sido de Roy Eldridge em seus anos de formação: Miles Davis, seu ídolo e principal influencia. A emocionante “Ballad for Miles” é uma balada hipnótica, na qual o líder aplica a surdina ao seu trompete e a sonoridade obtida emula a do líder, de maneira quase mediúnica. Flanagan ajuda a criar o clima introspectivo com uma abordagem minimalista, dedilhando as teclas com a delicadeza e o refinamento habituais.
A movimentada “Inga” é tributária da música brasileira e sua levada irresistível tem fartos elementos de samba e bossa nova. Gomez produz um solo instigante e seu contrabaixo ensolarado transborda alegria. Roker é a coluna vertebral rítmica e está muito à vontade nesse ambiente bossanovístico. O mesmo vale para o líder e para Heath, que parecem ter sido forjados nas noites sessentistas do Beco das Garrafas.
Imortalizada por Dinah Washington, “I'll Close My Eyes”, de Bernice Petkere, é a única música que não foi composta por Gojkovich. Executada em um contagiante tempo médio, a canção ganha um charme extra com a utilização, por parte do líder, de uma graciosa surdina. A performance de Flanagan é magistral, não apenas no que diz respeito ao acompanhamento mas também no extasiante solo. Gomez se mostra um improvisador formidável e brinda o ouvinte com um solo exuberante.
Apesar do título, “Blues Time” é bebop de excelente safra, cadenciado e extremamente melódico. O blues se agrega como um elemento mais complementar que propriamente estrutural e o líder proporciona, ao flugelhorn, uma aula magna de inventividade, improvisando com engenho e perspicácia. Heath, bopper de quatro costados, tem amplo espaço para solar e seus diálogos com Gojkovich lembram outras parcerias históricas, como Art Farmer e Benny Golson ou Freddie Hubbard e Wayne Shorter, na época dos Jazz Messengers.
Dando uma acalmada no clima, é a vez da introspectiva “Adriatica”, balada classuda que em algumas passagens lembra “In a Sentimental Mood”, do eterno Duke Ellington. Heath transborda emotividade e Dusko, mais uma vez com a surdina, evoca Miles, com o uso de poucas notas, geralmente alongando-as ao máximo, criando um efeito ao mesmo tempo lírico e distante. A destacar, ainda, o formidável trabalho de Roker, cuja elegância percussiva é suficiente para inscrevê-lo entre os mais refinados bateristas de todos os tempos.
A animada “NYC” é uma bela homenagem do trompetista a Nova Iorque. Dusko utiliza a surdina com bastante competência e seu fraseado é ágil (embora não exatamente veloz) e envolvente. Pianista formado na melhor escola do bebop, Flanagan desenvolve o tema de maneira bastante convincente, adicionando-lhe histamina e frescor. A formidável pulsação de Roker, incansável, também merece ser ouvida atentamente.
“Blues Valse” tem uma áurea misteriosa e lembra os trabalhos de Donald Byrd do início dos anos 60, quando manteve uma alentada parceria com o extraordinário Pepper Adams. Gojkovich é dono de uma técnica invulgar e seu domínio do flugelhorn é absoluto. Ele parece não ter pressa alguma, preferindo escolher as notas com parcimônia e esmero, como se as esculpisse pacientemente. Sua interação com a sessão rítmica, em especial com Flanagan, é quase telepática.
Para encerrar, mais um tema rápido, o hard bop “Teamwork Song”, título que traduz com perfeição a sintonia existente entre os músicos. Um ótimo trabalho de equipe, onde todos brilham, trocam informações e se divertem em igual medida. Gojkovich tem uma atuação discreta, ocupando-se mais do acompanhamento, enquanto a performance de Heath, maior destaque individual nessa faixa, é ensolarada. Ele transita entre os registros graves e os agudos com tamanha autoridade que dá a entender que tocar sax tenor é uma das tarefas mais simples do mundo. O excepcional trabalho de Flanagan, introduzindo generosas pitadas de blues ao tema, é outro ponto alto.
O trompetista ainda gravaria, em 1996, “Soul Connection: Vol. 2”, desta feita liderando uma big band, para quem compôs dos temas e elaborou todos os arranjos. Outros trabalhos de destaque em sua discografia são “Bebop City”, de 1995 (a seu lado, os saxofonistas Ralph Moore e Abraham Burton, o pianista Kenny Barron, o contrabaixista Ray Drummond e o baterista Alvin Queen), e “Balkan Blue”, álbum duplo de 1996, no qual Dusko se apresenta em dois contextos distintos: no primeiro álbum, ele toca com o quinteto do saxofonista italiano Gianni Basso e no segundo ele recebe os músicos da orquestra da North German Radio (NDR), sendo que aqui os arranjos ficaram sob a responsabilidade do amigo Palle Mikkleborg.
Em 2004 Dusko voltou a gravar com uma orquestra, desta feita a “All Star Big Band” de Belgrado, no disco “A Handful of Soul”. Ele também fez incursões pela música brasileira, nos discos “Samba do Mar” (2003) e “Samba Tzigane”, de 2008, seu álbum mais recente. O repertório dos dois é essencialmente composto de clássicos da bossa nova como “Insensatez”, “Chega de saudade”, “O grande amor” e “Este seu olhar”, sendo que o segundo conta com a participação do flautista brasileiro Márcio Tubino.
Durante as comemorações do aniversário de 75 anos, Gojkovich realizou um concorrido concerto em Belgrado. Atualmente, além da big band e do trabalho como músico e arranjador freelancer, ele costuma se apresentar pelo mundo à frente do “Straight Six”, banda de orientação hard-bopper nos moldes dos Jazz Messengers, integrada por Joerg Reiter (piano), Marc Abrams, (contrabaixo), Bruno Castellucci (bateria), Joe Gallardo (trombone) e Heinz Hermann (sax tenor e flauta).
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