CANÇÃO DO EXÍLIO
Música e outras coisas

CANÇÃO DO EXÍLIO



“Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá;

As aves que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,

Nossas várzeas têm mais flores,

Nossos bosques têm mais vida,

Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,

Que tais não encontro eu cá;

Em cismar - sozinho, à noite -

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,

Sem que eu volte para lá;

Sem que desfrute os primores

Que não encontro por cá;

Sem qu'inda aviste as palmeiras,

Onde canta o Sabiá.”

Poucas imagens são tão poéticas quanto a do sujeito que deseja retornar ao lugar em que nasceu, nem que seja apenas para morrer. O desejo de voltar à terra natal, da maneira como expressou Gonçalves Dias em sua célebre Canção do Exílio, é, certamente, um dos momentos mais líricos da língua portuguesa e dos mais emocionantes da poesia universal.

Embora tenha morrido quase vinte anos depois de voltar ao torrão natal, a história de Leonard Graham me trouxe à mente os versos de Gonçalves Dias. Ao contrário do poeta maranhense, que morreu em um trágico naufrágio, em 1864, antes de conseguir regressar a seu amado Maranhão, Deus permitiu a Graham que regressasse à cidade em que nasceu. Mas quem é e o que fez o tal Leonard Graham?

Leonard Graham não é dos nomes mais conhecidos entre os jazzófilos. Mas quando se fala em Idrees Sulieman... A situação melhora, mas apenas um pouquinho. De fato, apesar de ter sido um dos mais talentosos trompetistas da primeira geração do bebop, Sulieman jamais granjeou a notoriedade merecida. A principal razão para essa obscuridade pode ser atribuída ao fato de que o músico viveu longos anos na Europa e boa parte de sua carreira se desenvolveu no Velho Continente.

De qualquer maneira, outros músicos norte-americanos viveram situação semelhante – a exemplo de Dexter Gordon ou Don Byas, cujas carreiras européias representam um momento importantíssimo em suas respectivas biografias – e ainda assim conseguiram arrebatar uma grande quantidade de fãs em outros países, especialmente na terra natal. Sulieman, apesar do enorme talento, permanece nas sombras, para desgosto dos seus poucos, porém apaixonados, fãs.

Portanto, façamos a nossa parte para honrar seu nome e sua música: ele nasceu no dia 07 de agosto de 1923, na cidade de St. Petersburg, na Flórida. Ainda na infância, começou a aprender trompete, embora desejasse mesmo ser saxofonista. Como o pai não podia lhe comprar um saxofone, o garoto acabou se contentando com o trompete e passou a se dedicar com afinco ao instrumento.

Com apenas dezesseis anos, conseguiu seu primeiro emprego, em uma banda chamada Carolina Cotton Pickers, onde ficou de 1939 a 1943. No mesmo ano em que deixou os Pickers, entrou para a orquestra do pianista Earl Hines, onde conheceu Charlie Parker e Dizzy Gillespie. Influenciado pela maneira de tocar absolutamente diferente dos dois companheiros de orquestra, Sulieman foi um dos primeiros trompetistas a dominar o idioma bop, o fazendo com enorme desenvoltura e com indiscutível autoridade.

Em 1944 deixou Hines e se fixou em Nova Iorque, onde o bebop fervilhava entre os jovens músicos locais. Um desses jovens era a pianista Mary Lou Williams, com quem Sulieman trabalhou com regularidade em meados da década de 40. Após uma rápida passagem pelas big bands de Benny Carter e de Sabby Lewis, em 1946, naquele mesmo ano o trompetista decidiu retomar os estudos musicais formais, tendo se matriculado no respeitado Boston Conservatory. Em 1947, integrou o grupo de Thelonious Monk, com quem tinha uma enorme afinidade musical – tanto é que chegou a participar das primeiras gravações do pianista, feitas naquele ano para a Blue Note.

Pouco depois, vieram trabalhos nas orquestras de Cab Calloway, Count Basie e Lionel Hampton. Nesse período, converteu-se ao islamismo, mudando o nome para Idrees Dawud ibn Sulieman. Segundo Dizzy Gillespie, na época os músicos eram obrigados a portar uma autorização, concedida pela polícia, para trabalhar nos clubes. Ali, havia um campo específico para a etnia do músico, e aos convertidos ao islamismo era permitido que se apresentassem como brancos.

Nessa qualidade, podiam freqüentar restaurantes e casas noturnas que não permitiam o ingresso de negros e foi por essa razão – e nem tanto pela fé nos ensinamentos do profeta Maomé – que uma infinidade de músicos negros acabou abraçando a religião muçulmana. Assim foi com Kenny Clarke, que se tornou Liaquat Ali Salaam, com Art Blakey, que passou a se chamar Abdullah ibn Buhaina e com o saxofonista Edmond Gregory, que adotou o nome de Sahib Shihab.

No início dos anos 50, o trompetista tocou nas orquestras de Mercer Ellington e Erskine Hawkins. Integrou a big band de Dizzy Gillespie entre 1956 e 1958, fez parte da banda de Randy Weston entre 1958 e 1959 e foi membro do sexteto de Gerry Mulligan, durante um breve período, no comecinho da década de 60. Também atuava com habitualidade como freelancer, tocando com Ella Fitzgerald, Gene Ammons, Mildred Bailey, Charlie Byrd, John Coltrane, Coleman Hawkins, Friedrich Gulda, Ben Webster, Ernie Wilkins, Tadd Dameron, Jimmy Forrest, Max Roach, Lester Young, Kenny Burrell, Clifford Brown, Tommy Flanagan, Bobby Jaspar e muitos outros.

Durante toda a década de 50, foi um dos mais requisitados músicos de estúdio de gravadoras como Prestige, Riverside e New Jazz. Sulieman é considerado, ao lado do saxofonista Harry Carney e do trompetista Clark Terry, um dos precursores da técnica chamada “respiração circular”, que permite que o músico reinspire o ar expelido, prolongando uma determinada nota por bastante tempo. Antológica é a sua participação no álbum “The Hawk Flies High”, de Coleman Hawkins (1957), onde Sulieman, no tema “Juicy Fruit”, consegue sustentar uma nota por impressionantes 59 segundos. Gravou, ao lado dos trompetistas Donald Byrd e Art Farmer, o ótimo “Three Trumpets”, para a Prestige, em dezembro de 1957.

Data dessa época uma de suas poucas gravações como líder – na verdade, como co-líder, pois divide os créditos com o vibrafonista Teddy Charles: o espetacular “Coolin’”, gravado no dia 14 de abril de 1957, para a New Jazz. Com produção do próprio Charles e engenharia de som a cargo de Rudy Van Gelder, o álbum conta com as presenças de John Jenkins no sax alto, Mal Waldron no piano, Addison Farmer no contrabaixo e Jerry Segal na bateria.

A abertura fica a cargo de “Staggers”, hard bop elíptico e impactante, de autoria de Waldron. Sua estrutura sinuosa e cheia de surpresas permite aos membros do sexteto exibições arrebatadoras, especialmente por parte de Jenkins, Charles e, sobretudo, Sulieman. O trompetista é um virtuose na mais completa acepção da palavra, com um domínio irrestrito do instrumento e da sintaxe bop, altamente criativo e possuidor de uma técnica soberba. A sessão rítmica dá aos solistas um apoio dos mais sólidos, deixando-os mais do que confiantes para as verdadeiras acrobacias sonoras que se ouvem aqui.

Jenkins contribui com “Song Of A Star”, calcada na tradição bop, com ecos parkerianos e muita energia. Segal é um baterista dinâmico e bastante fluente e sua performance é das mais energéticas. Charles tem uma abordagem bastante pessoal – seu estilo não se confunde com o de nenhum outro vibrafonista e antecipa a abordagem moderna que Bobby Hutcherson daria ao instrumento na década seguinte. Waldron é dono de um fraseado elegante e despojado, e seu solo enviesado revela uma grande influência de Monk. O duelo entre o saxofonista e o trompetista é empolgante. As intervenções são voláteis, furiosas, e a imagem que vem às retinas é de dois engolidores de fogo, desafiando-se para ver quem consegue expelir da boca as maiores labaredas.

“The Eagle Flies” é uma composição do trompetista, com andamento de valsa e um discreto acento bluesy, embora não renegue a origem bop. Jenkins, Charles, Sulieman e Waldron, nessa ordem, se responsabilizam pelos solos, com destaque para o do saxofonista e o do autor do tema. Charles exibe sua veia composicional na complexa “Bunni”, que antecipa, em algumas passagens, as harmonias caóticas do free jazz que tomaria de assalto o universo jazzístico dali a dois anos. São necessárias algumas audições para que o ouvinte se familiarize com aquela exuberância harmônica, por vezes desencontrada, mas que progressivamente vai adquirindo sentido próprio. Mais uma vez, a versatilidade e a pujança de idéias de Sulieman se destacam. O duelo entre trompete e bateria, no estilo “pergunta e resposta” é antológico, embora também seja digna de nota a sensacional capacidade improvisativa demonstrada por Jenkins.

Waldron contribui também com “Reiteration”, outro tema bastante intrigante. O desprezo do pianista pela ortodoxia e sua inesgotável capacidade de surpreender são um prazeroso desafio sonoro. Notas superpostas, quebras de ritmo, alterações abruptas no andamento e um pouco de blues são alguns dos ingredientes usados por Waldron, cujo solo é dos mais intrincados. A abordagem de Charles, introspectiva, quase sombria, casa à perfeição com as idéias do compositor. Como de hábito, solos articulados e obscenamente complexos de Sulieman e Jenkins.

Fechando os trabalhos, o único standard do álbum, “Everything Happens To Me”, que encantou gerações na voz frágil de Chet Baker. Sem a presença de Jenkins, Sulieman brilha com uma interpretação de um lirismo transcendente. O trompetista derrama sentimentalidade e romantismo, neste que é o momento mais comovente do álbum. Os demais integrantes do quinteto mantém uma discrição que beira a reverência. Ainda que não possuísse outros inúmeros predicados, já valeria a pena ter esse disco na estante apenas por causa dessa versão absolutamente encantadora.

Em 1961 Sulieman partiu para a Europa, acompanhando o pianista Oscar Dennard em uma excursão. Gostou tanto do que viu e ouviu, que resolveu ficar por ali. Primeiramente, fixou-se em Estocolmo e, em 1964, mudou-se para Copenhagen. Além da atmosfera amistosa e das oportunidades de trabalho, pesaram na sua decisão o ambiente musical extremamente propício ao jazz e o fato de que a tensão racial que contaminava os Estados Unidos da época não tinha a menor repercussão nos países europeus, sobretudo os escandinavos, onde o respeito aos direitos humanos sempre foi exemplar.

O trompetista se manteve como um dos grandes destaques individuais da Kenny Clarke-Francy Boland big band, entre 1963 e 1973. Trabalhou ao lado de inúmeros músicos norte-americanos “expatriados”, como Dexter Gordon, Kenny Drew, Bud Powell, Johnny Griffin e Don Byas, e de importantes músicos europeus, como Palle Mikkelborg, Mads Vinding e Niels-Henning Ørsted Pedersen. Participou do elogiado “Stockholm Sessions”, de Eric Dolphy, gravado para o selo alemão Enja, em 1961. Na Dinamarca, integrou a Danish Radio Big Band, cuja regência estava a cargo do trompetista Thad Jones.

Durante o exílio europeu, dedicou-se ao aprendizado do sax alto, que passou a ser o seu segundo instrumento, e lançou alguns poucos álbuns em seu próprio nome, por selos como Columbia e SteepleChase. Nenhum deles alcançou o topo das paradas, mas todos são bastante elogiados pela crítica especializada. Entre os músicos que o acompanharam nesses discos, nomes de peso como Cedar Walton, Sam Jones, Billy Higgins, Horace Parlan, Kenny Clarke, Billy Hart e outros.

Em 1982, Sulieman decidiu retornar aos Estados Unidos, fixando residência na cidade natal, St. Petersburg, na Flórida. Participou de álbuns de Miles Davis, Dizzy Gillespie, Randy Weston, Joe Henderson, entre outros, e costumava se apresentar em clubes da região, muitas vezes ao lado do saxofonista Ira Sullivan, outro renomado bopper que escolheu a Flórida para viver. Sulieman morreu no dia 23 de julho de 2002, no St. Anthony's Hospital, na mesma cidade que o viu nascer, quase oitenta anos antes. A causa da morte foi um câncer na bexiga.

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