O FAZENDEIRO DO AR
Música e outras coisas

O FAZENDEIRO DO AR



Provavelmente você jamais ouviu falar em Council Bluffs, que fica no não menos célebre Condado de Pottawattamie, estado de Iwoa. Mas foi ali, naquela cidadezinha do centro-oeste americano, que nasceu, no dia 21 de agosto de 1928, um dos músicos mais líricos, refinados e inventivos do jazz: Arthur Stewart Farmer. No mesmo dia, hora e local, nascia um músico tão talentoso quanto, mas bem menos conhecido: seu irmão gêmeo Addison Stewart Farmer. Ao primeiro, coube desvendar os segredos do trompete, do flugelhorn e do curioso flumpet (um instrumento que mescla o design e as características dos dois anteriores). O segundo foi um disputado baixista, que além do irmão mais famoso, acompanhou Charlie Parker, Miles Davis, Mal Waldron, Sonny Criss e muitos outros.

Art desde cedo revelou um grande interesse pela música e um talento de igual calibre. Na infância e adolescência, passadas em Phoenix, Arizona, estudou piano, violino e tuba, até, finalmente, se fixar no trompete. Em meados da década de quarenta, muda-se para Los Angeles, onde toca nas orquestras de Gerald Wilson, Jay McShann, Roy Porter e Benny Carter. Associou-se durante um bom tempo com o precocemente falecido Wardell Gray e, em 1953, foi convidado por Lionel Hampton para acompanhá-lo em uma turnê pela Europa.

Seu companheiro no trompete da orquestra de Hampton era ninguém menos que o extraordinário Clifford Brown, de quem ficou amigo. De volta aos Estados Unidos, outra mudança, desta feita para Nova Iorque. A sua reputação já era considerável, razão pela qual foi requisitado por músicos do porte de Horace Silver, Art Blakey, Gerry Mulligan, Thelonious Monk, Dexter Gordon, Oscar Pettiford e Charles Mingus. Nessa época, estreita a amizade com o saxofonista Gigi Gryce, com quem haveria de produzir alguns excelentes álbuns.

Outro saxofonista, Benny Golson, seria bastante importante na vida do mais conhecido dos irmãos Farmer. Com efeito, em 1959 ambos se juntam para formar o Jazztet, um dos mais belos combos do início dos anos 60, cuja importância para o jazz pode ser medida pelo número de grandes músicos que por ali passaram: Cedar Walton, Harold Mabern, Albert Heath, Tommy Flanagan, Curtis Fuller, Phil Woods, Jim Hall e George Duvivier. Dentre os músicos descobertos pela dupla Farmer-Golson, destacam-se o pianista McCoy Tyner e o trombonista Grachan Moncour III.

A partir do início da década de 60, Art passa a se dedicar quase que integralmente ao flugelhorn. Em 1963, a perda do irmão e parceiro Addison abala seriamente o trompetista. Mas ele consegue dar a volta por cima e, em 1964, ao lado de Jim Hall, Pete LaRoca e do então iniciante Steve Swallow, gravou o interessante “To Swden With Love”, onde interpretava canções típicas do folclore sueco em ritmo de jazz. Quase dez anos antes, produziu ao lado do amigo e parceiro Gigi Gryce o excepcional “Art Farmer Quintet”, verdadeiro marco em suas carreiras.

A gravação transcorreu no célebre estúdio de Rudy Van Gelder em Hackensack, no dia 21 de outubro de 1955. Gryce assumiu o sax alto e Farmer o trompete, acompanhados pelo sempre presente Addison no contrabaixo, pelo magistral Duke Jordan no piano e pelo lendário Philly Joe Jones na bateria. Todas as músicas do álbum são de autoria do saxofonista, exceto “Forecast”, que abre o disco e que foi composta por Jordan.

Nessa faixa, uma das mais belas do álbum, é possível perceber quão consistente é o fraseado do Farmer trompetista, que elabora solos de extremo bom gosto, sem resvalar para a pirotecnia gratuita. Gryce exibe uma confessa influência de Charlie Parker e também apresenta solos de alta complexidade técnica. Jordan é sempre uma atração à parte em qualquer gravação de que participe e aqui se mostra extremamente inventivo na construção das harmonias.

A balada “Evening In Casablanca”, com sua abertura que remete ao oriente, é bastante fluida, melódica. Jordan se comporta com a fleuma de um lorde inglês durante o tradicionalíssimo chá das cinco – elegância pura. Sax e trompete se amoldam a essa atmosfera lírica com competência e discrição exemplares. O clássico “Nica’s Tempo”, talvez a mais conhecida composição de Gryce, ganha uma versão menos acelerado, bastante cool em sua execução, mas com momentos altamente inflamáveis, como o magistral solo de Philly.

“Satellite” é outro grande momento. Um hard bop melodioso, tocado com muita adrenalina e uma boa dose de lirismo, que poderia ter sido composta por Art Blakey ou Horace Silver. A coesão da banda impressiona e o fôlego de Gryce e Farmer mais ainda. O solo de Jordan é soberbo, de alta complexidade e precisão. As duas últimas músicas refletem bastante a influência de ritmos latinos. Tanto “Sans Souci” quanto “Shabozz”, embora sejam reconhecidamente hard bop de ótima cepa, trazem em seu DNA vestígios das ensolaradas praias do Caribe, em grande parte graças ao excepcional trabalho de Jones. A destacar, na primeira, o ótimo trabalho do Farmer contrabaixista (que o tempo inteiro se mantém firme e discreto) e, na segunda, o belíssimo diálogo dos líderes.

Art Farmer atravessou as décadas de 60, 70, 80 e 90 como um dos mais prolíficos músicos em atividade. Em 1968 mudou-se para a Europa, onde tocou, com regularidade, big band de Kenny Clarke e Francy Boland e na Austrian Radio Orchestra. Ao mesmo tempo, executou mais alguns ótimos álbuns, incluindo um referencial tributo a Billy Strayhorn, chamado “Somethin To Live For”, de 1987. O sopro deste fazendeiro do ar calou-se para sempre o dia 04 de outubro de 1999. Para a sorte de uma infinidade de fãs do jazz, deixou como legado maior uma bem documentada obra em disco, a qual o ouvinte sempre poderá recorrer quando quiser conhecer o verdadeiro significado do adjetivo “lírico”.



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