SAFRA VERMELHA
Música e outras coisas

SAFRA VERMELHA



O rutilismo é um fenômeno genético que provoca o aparecimento de pêlos ou cabelos de coloração avermelhada. Os indivíduos que possuem cabelos avermelhados geralmente são chamados de ruivos e calcula-se que cerca de 4% da população mundial tenha essa característica, mas na Escócia o percentual sobe para algo em torno de 10 a 13%. Outros países do Reino Unido, como a Irlanda e o País de Gales, também possuem uma quantidade de ruivos superior à média mundial.

Os cientistas descobriram que a presença de cabelos ruivos está associada a uma mutação do gene MC1R, presente no cromossomo 16. Essa mutação bloqueia a produção de eumelanina, responsável pela produção de pigmentos marrons ou pretos, e provoca um acúmulo da feomelanina, um outro tipo pigmento, responsável pela cor avermelhada dos pêlos e cabelos. Existe uma extensa mitologia associada aos ruivos. Na Idade Média, por exemplo, acreditava-se que as crianças nascidas com cabelo vermelho haviam sido concebidas durante o chamado “sexo impuro”, ou seja, durante o período da menstruação feminina.

Durante a Inquisição, um grande número de mulheres ruivas foi queimado na fogueira, apenas por causa dos cabelos vermelhos, já que a cor era associada à bruxaria. Atribui-se a Mark Twain, que também era ruivo, a seguinte frase: “Enquanto o resto das espécies é descendente de macacos, os ruivos são descendentes dos gatos”. Dentre os ruivos famosos, destacam-se a Rainha Elizabeth I, Napoleão Bonaparte, Oliver Cromwell, Emily Dickinson, Antônio Vivaldi, Thomas Jefferson, Vincent Van Gogh, James Joyce, Winston Churchill, Susan Sarandon, Julianne Moore e Daniel Cohn-Bendit. A esse rol, podemos incluir o nome de Robert Roland Chudnick, um dos pioneiros do bebop, mais conhecido por seu apelido: Red Rodney.

Nascido no dia 27 de setembro de 1927, em Filadélfia, na Pensilvânia, Rodney provinha de uma família judia de classe média. Ganhou o primeiro trompete de um tio, por ocasião do seu bar mitzvah, e em pouco tempo já dominava o instrumento.Ingressou na afamada Jules E. Mastbaum Vocational School, onde foi colega de classe de futuros jazzistas, como o clarinetista Buddy DeFranco e o também trompetista Joe Wilder.

O precoce Rodney começou cedo a carreira profissional. Com apenas 15 anos, já integrava a orquestra de Jerry Wald, que se apresentava regularmente no clube Down Beat, na própria cidade natal. Em seguida, passou pelas big bands de Jimmy Dorsey, Georgie Auld, Elliott Lawrence, Tony Pastor, Benny Goodman, Gene Krupa, Les Brown e Woody Herman. Em meados da década de 40, Rodney travou contato com alguns jovens músicos que vinham revolucionando o jazz de então, como o saxofonista Charlie Parker e o trompetista Dizzy Gillespie. Red contou em uma entrevista que na primeira vez que ouviu Parker, pensou: “É isso que eu quero tocar pelo resto da minha vida”.

Até então, Harry James era a sua grande influência no trompete, mas Rodney ficou tão encantado com as novas possibilidades harmônicas abertas pelo bebop que logo sua admiração se transferiu para boppers como o próprio Gillespie e os talentosos Fats Navarro e Howard McGhee. Aproximou-se ainda mais da cena bop quando foi tocar na orquestra de Claude Thornhill, considerado, juntamente com Stan Kenton e Woody Herman, um dos bandleaders mais modernos e inovadores daquele período. Ficou amigo de Dizzy Gillespie, que o apresentou a Charlie Parker.

Em 1949, Rodney foi convidado pelo próprio Parker a se integrar à sua banda, no lugar de Miles Davis, tendo participado do célebre concerto no Carnegie Hall, realizado naquele mesmo ano. As aventuras da dupla foram muitas e o trompetista era o único músico branco do grupo, o que rendia episódios hilariantes. Durante uma excursão ao sul dos Estados Unidos, dominado pelo preconceito e pela política segregacionista, Rodney foi apresentado como Albino Red, a fim de não despertar a ira dos preconceituosos sulistas. Em várias ocasiões, era obrigado até a cantar blues, já que além de trompetista, o “albino” era apresentado ao público como um talentoso cantor de blues.

Sobre o período com Bird, o trompetista declarou ao jornal Philadelphia Inquirer: “Eu tinha a honra de estar ao lado de um gigante colossal a cada noite e podia vê-lo e ouvi-lo criar verdadeiras obras-primas. Eu realmente sentia que não merecia estar ali, mas ele viu em mim algum potencial, é claro. Eu acho também que ele gostava bastante de mim, não só como músico, mas como amigo. Eu tirei o máximo proveito dessa experiência e atingi um patamar que jamais teria conseguido em tão pouco tempo. Foi a minha faculdade e pós-graduação, tudo ao mesmo tempo”.

A associação com Parker rendeu ao trompetista enorme prestígio no meio jazzístico, mas em 1951, após dezoito meses inesquecíveis, Rodney decidiu ir tocar com outro Charlie, o Ventura. Em 1955, durante as gravações do disco “Modern Music From Chicago” (Fantasy), iniciou uma prolífica parceria com o multiinstrumentista – e líder da sessão – Ira Sullivan, formando com este uma amizade que perduraria pelas décadas seguintes. Em 1957, gravou para a Savoy o álbum “Fiery”, ao lado de Sullivan, do pianista Tommy Flanagan, do baixista Oscar Pettiford e do baterista Elvin Jones.

Também gravou álbuns para os selos EmArcy, Onix e Argo e, em 1958, resolveu se fixar em San Francisco. Embora tivesse tocado com nomes de peso, como Oscar Pettiford, Stan Getz, Dexter Gordon, Gil Evans, Serge Chaloff, Buddy Rich, Gerry Mulligan, Lee Konitz e outros, Rodney vivia um péssimo momento em sua vida pessoal, o que se refletia em sua forma de tocar e em sua confiabilidade como músico.

Com efeito, desde o início dos anos 50, ele havia se tornado dependente da heroína, o que acarretou um enorme prejuízo à sua vida pessoal e profissional. O trompetista foi preso algumas vezes, internado em hospitais psiquiátricos e viu em frangalhos uma carreira que se anunciava promissora. Chegou a ter a sua licença de músico cassada na Filadélfia, por conta da dependência química. Além disso, estava desencantado com o cenário musical da época, e em 1959 abandonou o jazz, a fim de ganhar a vida como músico freelancer.

Red foi contratado para comandar a orquestra de uma casa de eventos, tocando em casamentos, formaturas e bar mitzvahs. Também tocava em orquestras de dança e conseguia ganhar mais dinheiro que nos tempos em que acompanhava Parker. Todavia, a heroína consumia todo o dinheiro que ganhava. A fim de sustentar o vício, Red armou uma jogada cinematográfica: disfarçado de oficial do exército, conseguiu roubar dez mil dólares da Comissão de Energia Atômica.

Fazendo-se passar pelo General Arnold T. MacIntyre, com quem era parecido fisicamente, Rodney tingiu os cabelos para ficar grisalho e foi até a Comissão de Energia Atômica, em Nevada, onde era guardado o dinheiro da folha de pagamento da base aérea de Nellis. Apresentou-se ao comandante, um coronel, e pediu para inspecionar o acampamento. O solícito coronel levou o “general” até o seu escritório e lhe deixou examinar os livros secretos, que estavam guardados em um cofre. Depois, deixou-o sozinho no local, com o cofre aberto.

Infelizmente, a folha de pagamento havia sido transferida para a base Nellis algumas horas antes de Rodney chegar. Ainda assim, nosso herói conseguiu raspar cerca de 10 mil dólares em dinheiro, alguns títulos mobiliários e algumas folhas de papel com fórmulas científicas escritas. O crime foi descoberto pouco depois e o FBI foi acionado. Alguns meses mais tarde, o espertalhão foi preso e levado a julgamento, em 1964. As folhas de papel com as fórmulas científicas foram devolvidas e, por conta disso, Rodney teve a sua condenação reduzida. Ainda assim, amargou vinte e sete meses na prisão.

Após o cumprimento da pena, mudou-se para Las Vegas, onde trabalhou em orquestras de vários cassinos, acompanhando astros como Sammy Davis Jr., Elvis Presley e Barbra Streisand. Em 1972, nova mudança, desta feita para Los Angeles. Ali, Rodney decidiu voltar ao jazz, tornando-se atração regular do clube Donte’s. No final daquele ano, sofreu um derrame que lhe restingiu os movimentos, mas com muita força de vontade e fisioterapia, no ano seguinte conseguiu voltar aos palcos, tendo sido uma das atrações do Newport Jazz Festival de 1973.

Naquele mesmo ano, lançou “Bird Lives!”, seu primeiro álbum como líder, após um hiato de catorze anos. Gravado no dia 09 de julho, para o pequeno selo Muse, o álbum reúne os talentos de Barry Harris (piano), Sam Jones (contrabaixo), Charles McPherson (sax alto) e Roy Brooks (bateria) e, como sugere o título, revisita o repertório de Parker, em um dos melhores tributos ao saxofonista.

“Big Foot”, composta por Parker, é um bebop típico, repleto de harmonias exuberantes e intrincadas, onde Rodney e McPherson estão perfeitamente à vontade para duelar em altíssima voltagem. Embora estivesse longe da forma física ideal, por conta do derrame que havia sofrido no ano anterior, Rodney possui um amplo domínio do instrumento. Sua notória capacidade de improvisar com energia e inteligência permaneceu intacta e seus solos são uma demonstração cabal dessa habilidade. A sessão rítmica é das mais seguras, com destaque para o fabuloso solo de Jones.

O standard “I’ll Remember April” ganha uma versão musculosa. Executada em tempo rápido, exige do azeitado quinteto doses cavalares de energia e precisão. O baterista Brooks não é dos mais badalados, mas sua performance é explosiva, com direito a viradas empolgantes e um trabalho com os pratos notável. O solo de Harris é antológico, passeando pela sintaxe bop com autoridade, mas também inserindo algumas deliciosas pitadas de blues ao tema. McPherson é dos mais aplicados herdeiros musicais de Bird, mas consegue transitar com intimidade pelas veredas do post-bop. Seus solos, vigorosos e arrojados, dão a medida de seu enorme talento e da sua capacidade de dialogar com as escolas mais contemporâneas do jazz.

“Donna Lee”, também de Parker, mostra um diálogo infernal entre Rodney e McPherson, logo na introdução. A releitura feita pelo grupo, dessa que é uma das composições mais conhecidas de Bird, é das mais swingantes e o líder está particularmente criativo e inspirado aqui. Seus solos são cortantes, rápidos, intuitivos, devastadores. Contrapõem-se à performance mais cerebral de McPherson, cuja abordagem revela que Coltrane também tem um lugar de destaque no rol de suas influências musicais.

“Chasin’ The Bird” é o terceiro e último tema de Parker. Mais uma vez, a entrega e a interação dos cinco é total. E a alegria com que tocam também. O clima de jam session contagia o ouvinte, que sente que os músicos realmente estão se divertindo. McPherson tem amplo espaço para solar e o faz com muita inventividade e destreza. Seu fraseado é elástico, vibrante, colorido. Sem deixar a peteca cair, Rodney dá vazão à sua intensidade criativa, elaborando solos sempre muito bem construídos e de enorme impacto harmônico. Merece audição atenta a estupenda atuação de Jones e a exuberante descarga rítmica engendrada por Brooks.

A versão de “Round Midnight”, de Thelonious Monk, é simplesmente espetacular. São mais de doze minutos de sensibilidade, lirismo e sofisticação. O quinteto se esmera para criar uma atmosfera intimista e densa, onde o baixo cavernoso de Jones e o piano espaçado de Harris se destacam. O líder é econômico em suas intervenções, lembrando a abordagem minimalista de um Miles Davis, a quem substituiu no quinteto de Parker. Certamente, é a mais elaborada e arrebatadora faixa do álbum.

Monk comparece outra vez, com a apoteótica “52nd Street Theme”, que encerra o álbum e que homenageia a célebre rua que serviu de berçário ao bebop. De volta à linguagem bop mais crua, o quinteto incorpora texturas de latin jazz à sua execução, sem soar pitoresco ou extravagante. O trompetista apresenta aqui uma de suas performances mais intensas, provavelmente por recordar os memoráveis momentos vividos ao lado de Bird. O diálogo com McPherson é impactante e desafiador para ambos – pode-se sentir a eletricidade circundando estes dois gigantes dos respectivos instrumentos – e o saxofonista não decepciona. Harris valoriza o tema, com seu acompanhamento elegante, com direito a um solo suntuoso. Um gran finale à altura do disco, do líder e do homenageado!

A década de 70 foi cheia de trabalho para Red. Em entre outubro de 1974 e abril de 1975, ele excursionou pela Europa, realizando uma série de concertos em países como Bélgica, França, Suécia, Dinamarca, Portugal, Holanda e Inglaterra. Em várias oportunidades, apresentou-se como integrante da caravana “Musical Life Of Charlie Parker”, espetáculo produzido por George Wein, onde também atuaram feras como Ray Copeland, Sonny Stitt, Charles Mc Pherson, Eddie “Lockjaw” Davis, Budd Johnson, Cecil Payne, Jay Mc Shann, Bobby Tucker, Earl May, Mickey Rocker, Curtis Fuller e outros.

Contudo, a década também ressuscitou alguns dos velhos demônios do veterano trompetista. Os problemas com drogas persistiriam por ainda algum tempo e em 1975, já de volta aos Estados Unidos, Red foi novamente condenado por porte de drogas, cumprindo pena no presídio de Lexington, no Kentucky. Ali, conheceu o guitarrista Wayne Kramer, da banda MC 5, de quem ficou amigo e a quem deu algumas aulas de música. Somente em 1978, graças ao apoio incondicional da esposa Helene, Rodney finalmente se livraria da dependência química.

Nos anos 80, gravou diversos álbuns ao lado do amigo Ira Sullivan, boa parte deles tocando fluegelhorn ao invés de trompete. Por suas bandas, passariam músicos hoje consagrados, como os pianistas David Kikoski e Gary Dial e o saxofonista Chris Potter. Seu álbum “Sprint” (Elektra, 1982), outra parceria com Sullivan, foi indicado ao Grammy de melhor álbum de jazz instrumental, em 1983. No mesmo ano, lançou o livro “Red Rodney Jazz Transcriptions”, com as transcrições, para partitura, de seus solos e composições.

Em 1988, participou da trilha sonora do filme “Bird”, cinebiografia de Parker dirigida por Clint Eastwood, não apenas como músico, mas também como consultor. No filme, o trompetista é interpretado pelo ator Michael Zelnicker. Durante as filmagens, Rodney recebeu a ligação de uma jovem repórter. Após lhe perguntar sobre o início da carreira, sobre sua amizade com Parker e sobre o trabalho com Eastwood, a repórter saiu-se com esta: “Muito obrigado pela entrevista, Sr. Rodney. Agora, será que o senhor poderia me dar o telefone do Sr. Parker?”.

Em 1990, Rodney foi indicado para o Down Beat Hall of Fame e tocou com Charlie Watts, baterista dos Rolling Stones, em uma homenagem a Parker. Apresentou-se em várias etapas do JVC Jazz Festival de 1993 e, no outono daquele mesmo ano, foi uma das atrações mais aplaudidas do Charlie Parker Jazz Festival, em Nova Iorque. Doente e debilitado, afastou-se dos palcos e estúdios no final daquele ano, recolhendo-se à sua casa em Boynton Beach, Flórida, onde faleceu no dia 27 de maio de 1994. A causa da morte foi câncer no pulmão. Seu último álbum como líder foi “Then and Now”, gravado para a Chesky em 1992.

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