Se há uma profissão nobre, dentre tantas que existem, ela é, certamente, a de professor. É por meio dela que a humanidade transmite o conhecimento às gerações vindouras, conservando-o como o nosso bem imaterial mais precioso. No jazz tampouco é diferente. Embora alguns dos maiores músicos do estilo tenham sido autodidatas, nenhum deles escapou da necessidade de algum tipo de estudo ou prática – mesmo que não tenha sido uma educação musical formal, mas apenas “dicas” ou “toques” com músicos mais experientes ou habilidosos.
Por outro lado, não é pequeno o número de jazzistas que passaram por escolas ou conservatórios e receberam uma esmerada e sólida formação musical. Muitos deles foram afortunados e puderam estudar com o lendário Barry Harris. Pianista, compositor, arranjador e, sobretudo, educador musical, Harris tem sido fundamental na formação de centenas de jazzistas e por suas mãos passaram muitas gerações de jovens músicos.
Quer um exemplo? Charles McPherson, Paul Chambers, Lonnie Hillyer, Marco Marzola, Joe Henderson, Danny Grissett, Rodney Kendrick e Wendell Harrison, entre incontáveis outros, foram seus alunos. Além disso, esse pianista fabuloso acompanhou ou foi acompanhado por Dizzy Gillespie, Miles Davis, Louis Hayes, Thad Jones, Al Cohn, Paul Chambers, Benny Golson, Dexter Gordon, Sonny Criss, Ron Carter, Cannonball Adderley, Lee Morgan, Elvin Jones, Yusef Lateef, Hank Mobley, Coleman Hawkins, Max Roach, Carmell Jones, James Moody, Kenny Dorham, Sam Jones, Lester Young, George Mraz, Don Cherry, Pepper Adams e uma infinidade outros músicos.
Barry Doyle Harris nasceu no dia 15 de dezembro de 1929, em Detroit, no seio de uma família humilde, mas altamente musical. Aos inacreditáveis quatro anos, recebia da mãe, pianista amadora, as primeiras lições de música, aperfeiçoando o aprendizado ainda durante a tenra infância – primeiramente com o pastor da igreja que a família freqüentava, Rev. Neptune Holloway, e, em seguida, na Northeastern High School. Nesta escola, foi colega de classe e se tornou amigo de Berry Gordy, um talentoso pianista que faria história como fundador da gravadora Motown.
O amor pelo jazz explodiu nos primórdios da década de 40, quando assistiu a um concerto de Charlie Parker. Para o jovem Harris, nenhum outro estilo musical seria capaz de lhe emocionar quanto o jazz – seu destino estava selado. A partir daí, a audição, por horas a fio, dos discos de Art Tatum, Bud Powell, Al Haig e, sobretudo, Thelonious Monk (de quem seria um grande amigo futuramente) e Tadd Dameron, tornou-se parte importante de sua formação musical.
Profundamente envolvido com a cena musical da Cidade dos Motores, Harris logo cedo partiu para a extenuante rotina de gigs e concertos em clubes e casas noturnas. Ao seu lado, diversos e talentosos músicos locais abrilhantavam as noites de Detroit, como Tommy Flanagan, Yusef Lateef, Kenny Burrell, Curtis Fullar, Donald Byrd, Doug Watkins, Pepper Adams e os irmãos Hank, Thad e Elvin Jones. Em 1950, acompanhando o saxofonista Wild Bill Moore, o pianista viveu a sua primeira experiência nos estúdios. O primeiro disco como líder, “Breakin’ It Up”, seria gravado em 1958, para a Argo.
A reputação de Harris espalhou-se para além de Detroit e muitos músicos, quando em turnê pela cidade, iam à sua casa, para participar das concorridas jams que rolavam ali, sob o olhar acolhedor da matriarca da família. Dentre eles John Coltrane, na época integrando o quinteto de Miles Davis, e Cannonball Adderley, com quem Harris viria a trabalhar mais tarde.
Até 1956 ele permaneceu na cidade natal, onde além de exibir o talento em clubes como o Rouge Lounge, o Blue Bird Inn e o Baker’s Keyboard Lounge, também iniciou a carreira de educador. Naquele ano, a convite de Max Roach, que procurava um substituto para o precocemente falecido Richie Powell, mudou-se para Nova Iorque e, embora tenha tido uma boa receptividade, tocando com Lee Konitz e Ben Webster, preferiu retornar para Detroit.
Somente em 1960, quando se uniu por alguns meses ao quinteto de Cannonball Adderley, é que Harris se estabeleceria, agora definitivamente, em Nova Iorque, onde reside e trabalha até hoje. A partir daí, além dos próprio grupos (geralmente trios), o pianista teve associações relativamente duradouras com os combos de Yusef Lateef, Thad Jones e Coleman Hawkins (a quem acompanharia por praticamente toda a segunda metade da década de 60, com a parceria sendo desfeita apenas com a morte de Hawk, em maio de 1969). Também se firmou como um reputado professor, referência em educação musical na Grande Maçã.
Em 1969 gravou, para a Prestige, aquele que muitos consideram a sua obra-prima: “Magnificent”. O respeitado Penguin Guide atribuiu-lhe quatro estrelas, além de conceituá-lo como um imaculado recital. E o disco é, de fato, uma preciosidade de rara beleza. Para acompanhá-lo, Harris convocou o baixista Ron Carter, egresso do grupo de Miles Davis, e Leroy Williams, um baterista experiente que já havia trabalhado com Benny Green, John Gilmore e Gene Ammons.
Gravado em sessão única, no dia 25 de novembro, nos estúdios da RCA (Nova Iorque), o disco teve produção de Don Schlitten. Metade do repertório de oito músicas é de autoria de Harris, que transita com desenvoltura exemplar entre as raízes do bebop e os limites estéticos propostos pelo post-bop. Duas composições de Parker, uma de Coleman Hawkins e um standard completam o álbum.
“Bean And The Boys”, uma rara incursão de Hawk pelos movediços caminhos do bebop, abre o disco, em uma justa homenagem ao velho amigo e parceiro. Williams é um baterista de recursos técnicos soberbos e de extrema vitalidade, cujo solo é bastante energético. O cerebral Carter faz o mais do que eficiente contraponto às surpreendentes harmonias desenhadas por Harris, no esplendor da forma física e da criatividade.
“You Sweet And Fancy Lady” é uma balada insinuante, bluesy e agridoce, na qual cabem tanto as escovinhas quanto as baquetas de Williams ou os delicados arpejos e notas graves e metálicas de Harris, autor do tema. “Rouge”, também saída da ourivesaria do pianista, é uma balada mais ortodoxa, quase sombria. Sua atmosfera, melancolicamente romântica, traz ecos de Duke Ellington e o líder, desta feita, apresenta uma abordagem econômica.
O pai do bebop e influência primeira de Harris está presente na enigmática “Ah-Leu-Cha”, cuja execução, bastante pessoal, traz alguns elementos de Bach. Magistral a performance de Carter, que se mostra um acompanhante intenso e desafiador. Monk, outra influência capital, aparece aqui como o inspirador da quebradiça “Just Open Your Heart”, com seus exatos seis minutos de arrebatadora beleza, em grande parte decorrente do toque fugidio, quase oblíquo, que Harris utiliza. Williams se vale das escovas para imprimir uma textura percussiva bastante sutil, enquanto o solo de Carter é de uma complexidade invulgar.
Blues, soul e o velho boogie-woogie não poderiam faltar no alentado receituário do professor. Lembrando a sua espetacular participação no clássico álbum “The Sidewinder”, de Lee Morgan, Harris injeta uma avassaladora dose de groove em “Sun Dance” – os companheiros de viagem mantêm-se firmes no volante do bólido, que não faria feio no repertório de um Stanley Turrentine ou de um Lou Donaldson.
Uma das mais lindas baladas do cancioneiro americano, imortalizada por Nat King Cole e Ella Fitzgerald, entre outros, “These Foolish Things (Remind Me Of You)” recebe um arranjo notável, ao mesmo tempo sóbrio e comovente. Não se espere aqui a cornucópia de arpejos de um Art Tatum ou Erroll Garner, mas o feeling e a emotividade estão presentes, de maneira elegante e discreta, como, aliás, é a marca registrada de Harris – certamente não poderia ser outro o pianista que, na letra, pilota o “tinkling piano in the next apartment” e que tantas recordações traz ao nostálgico personagem retratado na canção.
Bird volta à cena na musculosa versão de “Dexterity”, cuja execução vigorosa e reverente nos transporta até as esfuziantes noites da Rua 52, com seus clubes enfumaçados e onde os então Young Lions Parker, Powell, Dizzy e Monk assombravam o mundo do jazz com suas harmonias trepidantes. A faixa encerra este álbum, que merece não apenas ser conhecido, mas reverenciado, e que representa, sem dúvida, o ápice criativo de um artista verdadeiramente magnífico.
A partir dos anos 70, Harris foi morar em Weehawken, Nova Jérsei, em uma propriedade da baronesa Pannonica de Koenigswarter, mesmo local em que residiu, até o fim de seus dias, o ídolo e amigo Thelonious Monk. Sobre a capacidade técnica de Monk, aliás, ele dá um contundente depoimento: “Um monte de gente diz que Monk não possui técnica. Posso dizer que eles estão errados sobre essa questão, porque ele realmente a tinha. Eu o vi tocar um monte de vezes e tentei tocar como ele, mas nunca consegui.”.
De 1982 a 1987, esteve à frente do Jazz Cultural Theater, espécie de centro cultural, restaurante, clube de jazz e escola de música, localizado em Manhatan. Muitos jazzistas de peso se apresentaram ou ministraram oficinas ali, como Frank Foster, Jack Wilson, Chris Byars, Charles Davis e Clifford Jarvis (com quem manteve um quarteto durante algum tempo, na década de 80).
Sobre a paixão pela educação musical, suas palavras soam proféticas e certeiras: “Nós temos que cultivar o público, para que a música possa sobreviver. Temos que envolver as pessoas, especialmente as crianças, e fazê-las gostar do jazz. (...) Eu aprendo muito com os meus alunos. Eles ajudam a me manter vivo”. Sua discografia como líder é relativamente esparsa, mas bastante consistente e de um nível impressionantemente alto – por selos como Riverside, Xanadu, Riverside, Milestone, Concord, Candid, Enja e JazzLips – e inclui tributos aos ídolos Thelonious Monk e Tadd Dameron.
Integrou o fabuloso escrete de músicos responsáveis pela trilha sonora do filme “Bird”, dirigido por Clint Eastwood, ao lado de Walter Davis Jr., Charles McPherson, Ron Carter, John Guerin, Ray Brown e Jon Faddis – e graças à tecnologia digital, é o próprio Charlie Parker quem toca o saxofone alto. Também participou do documentário “Thelonious Monk: Straight, No Chaser”, uma produção do incansável Eastwood, sobre a vida e a carreira do Mad Monk.
Os inúmeros prêmios e títulos, como o de Jazz Master, conferido pelo The Afro-American Museum, e o de Doutor Honoris Causae, dado pela Northwestern University, atestam o seu prestígio como músico e educador. Em 2000, Harris teve o seu nome imortalizado no American Jazz Hall of Fame, mantido pelo New Jersey Jazz Society Institute.
Aclamado como um dos últimos puristas do bebop, Harris passou incólume por todas as ondas que sacudiram o jazz nos últimos 50 anos. Sua integridade artística pode ser resumida em uma única frase: “Você precisa gostar de tocar. Era assim que os músicos do passado tocavam e por isso é que sua música é eterna. Eu sinto que toco jazz para divertir o ouvinte e você não consegue fazer isso se não estiver se divertindo também”.
Para a nossa felicidade, continua, aos 80 anos, tocando regularmente em clubes como o Village Vanguard, ao lado do seu mais recente trio, formado pelo baterista Leroy Williams e pelo baixista Ray Drummond. Também se apresenta, com habitualidade, em festivais mundo afora e seus workshops e cursos no Lincoln Square Neighborhood Community Center, em Nova Iorque, são bastante concorridos.