Música e outras coisas
ROMÂNTICOS SÃO LINDOS E PIRADOS
Histórias engraçadas ou pitorescas envolvendo músicos de jazz são bastante comuns. Muitas delas podem ser lidas no bem-humorado “Jazz Anecdotes”, do baixista Bill Crow, um sujeito boa-praça que tocava um contrabaixo finíssimo e que pode ser ouvido em gravações de Stan Getz, J. J. Johnson, Zoot Sims, Gerry Mulligan, Al Haig, Phil Woods e uma plêiade de outros grandes nomes.
Algumas das passagens mais hilariantes envolvem o baritonista Serge Chaloff, um dos mais talentosos e versáteis saxofonistas a despontar no cenário jazzístico da segunda metade dos anos 40. Maluco de carteirinha, elevou a irresponsabilidade a patamares quase impensáveis. Ele bebia horrores, usava quantidades astronômicas de heroína e aprontava como poucos. Podia não ser um G. G. Allin, o roqueiro punk mais pirado do universo, mas certamente estava longe de ser um monge beneditino.
Para se ter uma idéia das loucuras que ele perpetrava, leia-se o relato de Al Cohn, que foi seu companheiro na orquestra de Woody Herman: “Eu andava muito no carro do Serge. E ele, para variar, só dirigia bêbado. Uma noite, quando voltávamos de um show, ele reclamou que o carro estava trepidando muito. Paramos o carro e percebemos que ele havia invadido os trilhos do trem e vinha feito um louco, passando por cima das dormentes”.
Zoot Sims, que também era seu colega na banda de Herman e costumava dividir com ele o mesmo quarto de hotel, rememora: “Uma vez nós estávamos no quarto, quando eu o vi tentando acertar um sujeito com uma pistola de ar comprimido. O cara estava na rua, esperando o ônibus, e eu o adverti, dizendo que ele poderia cegá-lo. Ele se virou para mim e disse: ‘Eu não atiro tão bem assim’. E o pior é que o filho da mãe falava sério!”.
Os hotéis pareciam ser o palco favorito para as reinações de Chaloff, que muitas vezes dormia embriagado e com um cigarro aceso nas mãos, provocando furos de dez centímetros de profundidade nos pobres colchões. Em um outro momento impagável, o vibrafonista Terry Gibbs relata: “Uma vez Serge resolveu usar a porta do quarto como alvo e começou a praticar com a sua pistola. O gerente do hotel soube, foi até lá e, furioso, ameaçou: ‘Ou você paga 24 dólares, que é o preço da porta, ou vai em cana’. Ele pagou o prejuízo, mas quando deixou o hotel fez questão de levar a sua porta: ‘Ela é minha, eu paguei por ela’. E lá fomos nós para o ônibus da banda, carregando a malsinada porta”.
Cansado das presepadas de Chaloff, Herman resolveu dispensá-lo da banda. E aí, sabem o que o saxofonista fez? Pegou todas as partituras com as passagens do sax barítono e atirou no rio. Depois chamou o patrão, mostrou-lhe os papéis que flutuavam ao sabor da correnteza e disse: “Pronto! Agora eu quero ver você me mandar embora. Ali estão todos os arranjos para sax barítono de sua orquestra e eu sou a única pessoa no mundo que conhece de cor todas as passagens”.
As maluquices de Serge fariam o elegante Herman perder as estribeiras, pois além de pirado número um da banda, ele era também o fornecedor oficial de drogas para os colegas. Certa noite, durante uma gig em Washington, Woody percebeu que seus comandados estavam chapados e, pior de tudo, estavam tocando pessimamente. Ele chamou Serge, a quem chamava de Mr. Chaloff, para uma conversa nos bastidores e este, visivelmente fora de si, começou a chorar e a dizer que estava limpo e que não tinha nada a ver com aquela história.
Findo o show, o bandleader, chateado com o incidente, foi para o bar e pediu um drink. Fazia um calor dos diabos no clube e tudo o que ele queria era esquecer o episódio. O resto da história é ele mesmo quem conta: “Senti as mãos de uma pessoa me abraçando e escutei: ‘Ei, Woody, porque você falou daquele jeito comigo? Eu te amo cara. Eu estou limpo, cara’. Então eu lembrei de algo que Joe Venutti havia feito a algum tempo atrás e nem pestanejei. Fiz xixi nas pernas dele.”
É claro que essas histórias são hilariantes e ajudam a dar uma dimensão humana à figura de Chaloff. Mas para além das confusões e do folclore que cerca seu nome, ninguém pode duvidar de que se trata de um músico excepcional. De acordo com o Jazz Educators Journal, por exemplo: “Musicalmente, será difícil levar a sério um jovem saxofonista se ele não conhecer as gravações de Chaloff, especialmente se ele deseja seguir carreira como baritonista”.
O exigente Richard Cook é outro ardoroso fã do estilo de Chaloff que, segundo ele, “protagonizou, certamente, alguns dos momentos mais pungentes da história do sax barítono jazzístico”. Esse músico incrivelmente talentoso nasceu no dia 24 de novembro de 1923, em Boston, em uma família que se pode chamar de verdadeiro berço esplêndido musical.
Seus pais, Margaret e Julius Chaloff, eram pianistas e respeitados educadores musicais na cidade. O pai era descendente de imigrantes russos e, além de tocar piano e lecionar, era compositor erudito, arranjador e regente. Integrou por muitos anos a Boston Symphony Orchestra e fez inúmeras excursões à Europa. A mãe foi professora Boston Conservatory of Music e da Berklee School of Music e por suas mãos passaram diversos músicos importantes, como Richard Twardzik, Keith Jarrett, Steve Kuhn, Kenny Werner, Chick Corea, Toshiko Akiyoshi e Herbie Hancock.
Por causa da influência dos pais, o jovem Serge iniciou os estudos musicais de piano clássico, ainda durante a infância. Em seguida, passou para o clarinete, tendo estudado com Manuel Valerio, companheiro do seu pai na Boston Symphony, até que, finalmente, optou pelo sax barítono. Tinha então doze anos e suas primeiras influências foram Jack Washington e Harry Carney, que tocavam, respectivamente, com Count Basie e Duke Ellington.
Na segunda metade da década de 40, não escaparia à monumental presença de Charlie Parker, que se tornaria a sua principal referência musical. Chaloff começou a tocar profissionalmente em 1943, na orquestra de Boyd Raeburn. Seguir-se-iam trabalhos nas bandas de Georgie Auld, Ina Ray Hutton, Tommy Reynolds, Shep Fields e Jimmy Dorsey, onde aportou em 1945 e logo se distinguiu como um dos primeiros baritonistas a dominar a linguagem bop.
Durante sua temporada com Dorsey, em setembro de 1946, Chaloff gravou pela primeira vez como líder, para a Dial Records. No final daquele ano, Serge se juntou à big band de Woody Herman, que então era chamada de Second Herd. Ali formou, juntamente com Stan Getz, Zoot Sims e Herbie Stewart o naipe de saxophones que passaria à história do jazz como “The Four Brothers”. O apelido proveio de uma composição homônima, de autoria de Jimmy Giuffre, que na época era também o diretor musical e um dos arranjadores da orquestra de Herman.
Em 1947 Chaloff fez, para a Savoy, uma nova série de gravações como líder, tendo a seu lado o trombonista Red Rodney, o tenorista Earl Swope, o pianista George Wallington, o baixista Curley Russell e o baterista Tiny Kahn e despertou a atenção dos fãs do jazz. Em 1949, depois de quase três anos de uma relação conturbada com Herman, Serge finalmente foi demitido da orquestra.
Durante algum tempo, ele viveu em Nova Iorque, onde chegou em 1950 e logo montou um grupo com Bud Powell e Earl Swope, cujo trabalho não teve grande repercussão. Na Meca do Jazz, fez alguns trabalhos com Dizzy Gillespie e Oscar Pettiford e liderou um quinteto que se apresentava com habitualidade no Birdland. Seus companheiros mais constantes naquelas loucas noites de farra eram os também piradíssimos Brew Moore e Red Rodney.
Quando Count Basie desfez a sua orquestra, em 1951, devido a motivos de ordem financeira, montou em seguida o célebre hepteto, onde também atuavam Clark Terry, Buddy DeFranco e Wardell Gray e Freddie Green. O baritonista chegou a participar de alguns concertos com a banda, mas não foi efetivado no conjunto – provavelmente porque nenhum grupo conseguiria resistir à presença simultânea de Gray e Chaloff em seus quadros.
Um dos melhores momentos de Serge naquele período foi a sua participação, também em 1951, na Metronome All-Stars, ao lado de feras como Miles Davis, Stan Getz, George Shearing e Max Roach. Todavia, o temperamento errático, a exaustão decorrente da vida instável e, principalmente, o abuso do álcool e das drogas não deixaram que Chaloff progredisse muito na Grande Maçã e ele resolveu retornar para a cidade natal, em 1952.
O cenário musical da cidade era bastante movimentado, fato que ajudou-o a recuperar o entusiasmo. Ele logo organizou uma pequena orquestra de 12 instrumentos, onde se ouviam, além dos tradicionais saxofone, piano trompete, contrabaixo e bateria, instrumentos bem menos utilizados no jazz, como a viola e o violoncelo.
Com um capital de 600 dólares fornecido pela mãe de Serge, a banda teve a tranqüilidade para ensaiar durante quase dois meses e os arranjos ficaram a cargo de Nat Pierce e Sonny Truitt. Contratada para uma temporada no clube Hi-Hat, onde dividiria o set com Roy Eldridge, a orquestra foi sumariamente ignorada pelo público, que achou aquele negócio pra lá de estranho. O saxofonista Sam Rivers, que mais tarde se tornaria bastante conhecido por seus trabalhos com Miles Davis e por sua associação com o free jazz, fez parte daquele grupo, que realizou apenas dois concertos.
Após essa experiência frustrante, Serge desmanchou o grupo, mas não se deixou abater. Imediatamente, decidiu formar uma nova banda, tendo ao piano um ex-aluno de sua mãe, o virtuose Dick Twardzik. Completavam o grupo, o trombonista Sonny Truitt, o baixista Jack Lawlor e o baterista Jimmy Weiner. Um influente disc jockey da cidade, Bob Martin, tornou-se grande fã de Chaloff e trabalhou intensamente para divulgar o trabalho do grupo.
Graças a Martin, o quinteto apareceu em programas televisivos, como o The Steve Allen Show e se tornou atração fixa do clube Jazzorama, em Beantown. Em 1954, foi contratado pelo produtor George Wein, proprietário do pequeno selo Storyville, e ali gravou “The Fable of Mabel”, que contou com as presenças do saxofonista Charlie Mariano e do trompetista Herb Pomeroy, figuras de relevo no cenário musical de Boston.
No ano seguinte, montou uma nova banda, desta feita em parceria com o altoísta Boots Mussulli. Com uma formação que incluía Herb Pomeroy e outros músicos da cidade, como o pianista Ray Santisi e o baixista Everett Evans, o grupo gravou, para a Capitol, o ótimo “Boston Blow-Up!”, com produção de Stan Kenton, que usou seu prestígio pessoal junto à gravadora para viabilizar o disco.
Serge estava livre das drogas e aos poucos recuperava a credibilidade perante o meio musical, tendo participado de gravações sob a liderança de Sonny Stitt, Nat Pierce, Buddy DeFranco e Allen Eager. Temporadas em Chicago, ao lado de Lou Donaldson, e em Los Angeles, onde dividiu os créditos com Sonny Stitt, ajudaram a colocar seu nome em evidência novamente, como o sax barítono que melhor havia assimilado a linguagem bop.
A recuperação do seu prestígio não surpreendeu quem acompanhava o mundo do jazz dos anos 40 e 50. De fato, até o surgimento de Gerry Mulligan, que despontaria para o mundo do jazz com seu célebre quarteto sem piano do início dos anos 50, Serge abocanharia quase todos os prêmios de melhor baritonista do ano, concedidos por revistas especializadas como Metronome e Downbeat.
1956 foi um ano bastante movimentado para Chaloff. Ele se mudou para Los Angeles e ali montou um quarteto com o pianista Kenny Drew, o baixista Leroy Vinnegar e o baterista Philly Joe Jones, que, embora tivesse sobrevivido por um período de poucos meses, se tornaria um dos pequenos conjuntos mais cultuados dos anos 50. Foi com essa formação, exceto pelo pianista Drew, substituído pelo não menos talentoso Sonny Clark, que o saxofonista produziu aquele que é considerada a sua obra-prima: o primoroso “Blue Serge”.
O álbum foi gravado para a Capitol, em duas sessões distintas, realizadas em 14 e 16 de março daquele ano. O azeitado quarteto abre o disco com uma irretocável interpretação de “A Handful of Stars”, de Jack Lawrence e Ted Shapiro. Executada em um cativante tempo médio, ele permite que se percebam as nuances que Chaloff consegue extrair do seu instrumento, indo dos timbres graves aos agudos com fluência e naturalidade. O irrequieto Philly, com um trabalho de pratos assombroso, e o piano bluesy de Clark são outros grandes destaques.
A acelerada “The Goof and I” foi composta por Al Cohn, seu companheiro na banda de Woody Herman, e serve como vitrine de uma outra faceta de Serge: a do solista indomável e avesso a fórmulas pré-concebidas. Suas frases são cortantes, precisas e furiosas, retrato muito bem acabado de um músico que conseguiu, como poucos, traduzir para o sax barítono, um instrumento bem menos ágil que o sax tenor, toda a inquietude harmônica do bebop.
“Thanks for the Memory” é fruto da parceria entre Leo Robin e Ralph Rainger e a versão do quarteto possui enorme personalidade. O líder sopra com a candura de um Lester Young, exprimindo em seu toque uma sensação de melancolia e desamparo. Econômico nas notas, Clark consegue ser bastante expressivo, lembrando a velha lição de Miles Davis de que menos é mais. Vinnegar tem uma atuação destacada e seu acompanhamento robusto ajuda a compor o clima sombrio e algo nostálgico do tema.
Canção das mais conhecidas de Jerome Kern e Oscar Hammerstein II, “All the Things You Are” recebe uma interpretação vivaz e ensolarada. A versatilidade de Chaloff e seu domínio quase sobrenatural do instrumento são o amplo destaque. Trafegando com desenvoltura entre os tons graves e os agudos e exibindo total intimidade com as sintaxes do swing e do bebop, ele se apresenta como um músico maduro e imaginativo, capaz de acrescentar novas tinturas a um tema gravado por quase todos os grandes nomes do jazz.
A serelepe “I've Got the World on a String”, de Harold Arlen e Ted Koehler, encanta desde os seus primeiros acordes. Uma introdução relaxada, a cargo de Vinnegar, dá a deixa para a entrada de Chaloff e, pouco a pouco, os quatro instrumentos começam a dialogar entre si, de maneira despretensiosa e colorida. É talvez a mais envolvente e charmosa faixa do disco.
Na fogosa “Susie’s Blues”, Chaloff, que também assina o tema, brinda o ouvinte com outro momento avassalador. Seu ímpeto criativo e sua autoridade como improvisador conduzem a uma fascinante experiência auditiva. Sua sonoridade é opulenta e seus diálogos com o piano soam tão espontâneos quanto numa jam session. Impõe dizer que Clark entrega aqui um dos solos mais fulgurantes do disco. Destaque também para a polirritmia e para os recursos aparentemente inesgotáveis de Philly.
A arrepiante versão “Stairway to the Stars”, de Frank Signorelli, Matty Malneck e Mitchell Parish, emerge como uma das mais extraordinárias já feitas. O fraseado rico em tonalidades, a engenhosidade no uso do vibrato e a elegância na articulação da melodia revelam que Chaloff também é um majestoso intérprete de baladas. A sessão rítmica atua com discrição e bom gosto, criando uma atmosfera intimista para que o saxofonista possa extravasar a sua verve lírica.
“How About You?”, composição de Burton Lane, James Van Heusen e Ralph Freed recebe uma versão ardorosa e muito inspirada, com atuações estupendas de Chaloff e Jones. Este é, certamente, um dos discos mais cultuados dos anos 50 e mostra um artista maduro, inteligente e extremamente criativo. Um mestre absoluto do sax barítono e que poderia ter se tornado ainda mais importante para a história do instrumento.
Infelizmente, Serge não pôde desfrutar do prestígio e da visibilidade que essa nova fase sinalizava. Sua saúde estava seriamente abalada por um câncer na coluna vertebral, que lhe impunha severas dores e limitava-lhe os movimentos. Em uma de suas últimas aparições em um estúdio de gravação, em fevereiro de 1957, participou do sensacional álbum “The Four Brothers: Together Again!” (RCA-Victor), que reuniu novamente os talentos de Al Cohn, Zoot Sims e Herbie Steward.
Debilitado e locomovendo-se em uma cadeira de rodas, Chaloff ainda conseguiu realizar uma performance memorável, mas suas intervenções limitaram-se aos solos. Nos acompanhamentos, o sax barítono foi pilotado por Charles O’Kane. Serge morreria poucos meses depois dessa gravação, no dia 16 de julho daquele ano, em Boston. Tinha apenas 33 anos e deixou uma lacuna que dificilmente será preenchida.
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