Chicago não é para principiantes. Conhecida como Windy City, ou Cidade dos Ventos, é a capital do estado de Michigan. O clima frio ajuda a compor uma paisagem física e humana que nada tem de amena. Há uma certa rudeza na alma dos homens da cidade, outrora marcada pelo domínio dos gângsters, sendo o mais célebre deles o impiedoso Al Capone. A música feita por lá também reflete esse estado de espírito: é austera, incisiva, contundente. Música feita por e para homens durões.
Não é à toa que o blues eletrificado por gente como Muddy Waters ou B. B. King surgiu ali. A mítica Chess Records, berço fonográfico do próprio Muddy Waters, de Howlin’ Wolf e de Etta James não poderia ter surgido em outro lugar. O jazz de Chicago também possui como uma de suas características mais marcantes essa aspereza natural, essa aridez atávica, essa urgência tipicamente urbana. Um dos selos mais tradicionais do jazz, a Delmark, também nasceu na cidade e em seu cast abrigou jazzistas de enorme personalidade, como Jimmy Forrest, Von Freeman ou Johnny Griffin.
Muito longe dali, no dia 1º de maio de 1931, em Washington, D. C., nascia Ira Brevard Sullivan Jr., destinado a ser um dos mais talentosos, e obscuros, representantes daquilo que se convencionou chamar de Chicago Sound. Sua assombrosa musicalidade pode ser medida pelo seguinte fato: ele começou a aprender tocar trompete com inacreditáveis três anos. Isso mesmo, três anos. As aulas eram ministradas pelo pai, um músico amador, na própria cidade natal.
Pouco tempo depois a família se mudaria para Chicago e o pequeno Sullivan se dedicou ao aprendizado de um novo instrumento, o sax tenor. Desta vez, as aulas ficaram a cargo da mãe e, em pouquíssimo tempo, o garoto já era titular na orquestra da escola. Inicialmente influenciado por Clyde McCoy e Harry James, Sullivan ficou completamente chapado quando ouviu pela primeira vez Dizzy Gillespie e o seu hipnotizante bebop. Com apenas 12 anos, liderou o seu primeiro conjunto, em uma formação que incluía saxofone, tocado por ele, acordeão e bateria.
Aos poucos, Sullivan foi se integrando à movimentada cena jazzística de Chicago, travando amizade e tocando com diversos músicos locais, como os pianistas Junior Mance e Eddie Higgins, o baixista Wilbur Ware e os saxofonistas Lee Konitz, John Gilmore e Johnny Griffin. Aos 20 anos, liderou um grupo que contava com os talentos de Stan Getz, Nat Adderley e Johnny Hartman.
Além dos músicos da própria cidade, os clubes eram repletos de atrações como Gene Ammons, Lester Young, Wardell Gray, Dexter Gordon, Sonny Rollins ou Sonny Stitt. Certa feita, ninguém menos que Charlie Parker desembarcou em Chicago e o jovem Sullivan teve a honra de acompanhá-lo durante uma semana, no ano de 1955.
Segundo o Mestre Pedro "Apóstolo" Cardoso, uma das maiores autoridades brasileiras em jazz (com mestrado, doutorado e pós doutorado em Charlie Parker), os shows aconteceram nos dias 11, 12, 13 e 14 de fevereiro, no clube "Bee Hive Lounge". Nessa série de concertos, Bird e Sullivan foram acompanhados pelo pianista Norman Simmons, pelo baixista Vic Sproles e pelo baterista Bruz Freeman.
Ira parece ser o único músico do mundo a ter tocado trompete com Charlie Parker e sax tenor com Roy Eldrige, o que demonstra quão hábil pode ser nos dois instrumentos. Após tocar com Parker, Sullivan foi convidado por este para juntar-se à sua banda, em Nova Iorque. Lamentavelmente, a decisão de se mudar para a Grande Maçã somente seria tomada em 1956, quando Bird já havia falecido.
A breve, porém intensa, convivência com Parker marcou-o profundamente e ele lembra: “Ele me convidou para ir a Nova Iorque, tocar em seu grupo, mas infelizmente, morreu um mês depois do convite. Naquela época, ele parecia bastante saudável e nós passamos ótimos momentos, apenas tocando e conversando sobre arte e literatura. Ele sempre buscava o conhecimento e foi uma das pessoas mais calorosas que já tive a oportunidade de conhecer”.
Mesmo sem a figura protetora de Parker, Sullivan resolveu tentar a sorte em Nova Iorque. Pouco depois de sua chegada, foi convidado para se juntar ao a Art Blakey e seus Jazz Messengers, despertando enorme interesse por parte da crítica especializada, sobretudo por causa de sua extrema perícia com o trompete e o sax tenor.
Gravou com Blakey um álbum para Columbia, tocando sax tenor, e sob a liderança do tenorista J. R. Montrose gravou um disco para a Blue Note (nesta sessão, ladeado pelos fabulosos Horace Silver, Wilbur Ware e Philly Joe Jones, Sullivan toca trompete). Ira também tocou algum tempo com Thelonious Monk e Billy Taylor, mas não se adaptou ao ritmo da cidade.
A louca vida ao lado dos Messengers assustou um pouco o tranqüilo Sullivan. Segundo o bem-humorado trompetista/saxofonista, Blakey “tinha umas 11 esposas e antes de viajar tinha que visitar todas elas e deixar dinheiro para as despesas de todos. Às vezes, nós saíamos em cima da hora de tocar. Nós sempre chagávamos nos shows no último minuto. Mas a música era espetacular”. De qualquer forma, ele havia se tornado pai recentemente – sua filha estava com apenas quatro meses, quando ele viajou para Nova Iorque – e a saudade da família começou a pesar.
De volta a Chicago, Sullivan continuou a sua carreira, de forma discreta, acompanhando gente do calibre de Rahsaan Roland Kirk, Eddie Harris, Philly Joe Jones, Red Garland, Hank Jones, Louie Bellson, Roy Haynes, Elvin Jones, Ron Carter, Nat Adderley, Dexter Gordon, Billy Higgins e muitos outros. Em 1958 conheceu o trompetista Red Rodney, um dos pioneiros do bebop, com quem manteve uma sólida amizade e uma parceria que perduraria, com algumas interrupções, até hoje.
Nessa época, ainda em Chicago, conheceu um jovem e talentoso pianista chamado Herbie Hancock, então estudante de engenharia na University of Chicago. Com apenas 18 anos e já considerado uma das maiores revelações da cena jazzística da cidade, o jovem certa feita abordou Sullivan e lhe deu o seu cartão. Timidamente, disse: “Mr. Sullivan, se algum dia você precisar de alguma coisa, aqui está o meu cartão”.
Algumas décadas depois, no intervalo de uma apresentação, Sullivan encontrou com Hancock nos bastidores e lhe contou a história. Para provar, exibiu, orgulhoso, o cartão que lhe fora dado pelo jovem pianista, para espanto do incrédulo Herbie. É provável que hoje esse cartão valha alguns milhares de dólares no mercado de colecionadores, mas provavelmente Ira ainda o mantém, como lembrança de uma época marcante em sua vida.
Em 1959, Sullivan gravou para a Delmark um dos seus raros discos como líder, chamado “Blue Stroll”. As gravações ocorreram no dia 26 de julho, com produção de Richard Cunliffe e o líder dá uma aula de versatilidade e talento, tocando trompete, sax tenor, sax barítono, sax alto e tuba. A seu lado, o não menos talentoso Johnny Griffin, dobrando no sax alto, no tenor e no barítono, além de três outros respeitados músicos de Chicago: o pianista Jodie Christian, o baixista Vic Sproles e o baterista Wilbur Campbell.
Campbell, aliás, foi involuntariamente responsável por uma situação hilária: como o seu kit de bateria estava armazenado no depósito de um clube local, ele teve que pedir emprestado uma bateria de quinta categoria e se virar com o precário instrumento. É claro que a sua enorme capacidade técnica não permite que o ouvinte perceba o mico, mas o certo é que no final da sessão a pobre bateria não servia mais para nada.
De qualquer forma, além de talentoso baterista, Campbell também é um compositor de mão cheia e a faixa de abertura, “Wilbur’s Tune”, é de sua autoria. Calcado no bom e velho hard bop, o tema abre espaço para todos os músicos brilharem em seus respectivos solos. A interação entre piano, baixo e bateria é total, com destaque para o magistral solo de Sproles. Griffin e Sullivan, este a bordo do trompete, fazem um duelo não menos que exuberante.
Em seguida, o standard “My Old Flame”, serve de vitrine para a versatilidade do líder, que aqui maneja, com indiscutível perícia, o sax barítono. Sullivan reforça a intensidade dos registros mais graves, criando um clima soturno, bem de acordo com a atmosfera da canção. Fazendo contraponto a essa abordagem sombria, o piano de Christian é lírico, etéreo, e o resultado é emocionante.
“Blue Stroll” é uma composição de Christian, com ecos de R&B e no estilo do que se chamaria, na década seguinte, de soul jazz. Demonstrando muita intimidade com as formas tradicionais da música negra e com os estilos pianísticos do passado, o autor capricha no stride e em uma abordagem típica das eras pré-bebop. Mais uma vez ao trompete, Sullivan incendeia a sessão e seu companheiro Griffin, considerado o saxofonista mais rápido do jazz, mantém elevada a temperatura, com um solo que conjuga velocidade e ousadia.
Sullivan também é um compositor criativo e cheio de recursos. O blues “63st Street Theme”, belíssimo, é de sua autoria, assim como a energética “Bluezinbee”. Na primeira, o quinteto magnetiza a atenção do ouvinte, com uma levada intensa, rústica mas cheia de feeling, como deve ser qualquer blues de ótima cepa. Mais uma vez ao trompete, o líder exala emotividade por todos os poros, enquanto Griffin, no sax alto, comete um dos solos mais pungentes do disco.
No tema seguinte, o quinteto faz uma abordagem bastante sinuosa, com muito espaço para a sessão rítmica, em especial Christian. Com referências explícitas ao blues, mas com um andamento mais acelerado que o habitual, a faixa, de efervescentes 18min46s, apresenta Sullivan, mais uma vez, ao sax barítono, além de valer-se do sax alto, do trompete e da tuba. Demonstrando nada dever a outros expoentes do instrumento, especialmente Pepper Adams ou Serge Challoff, o líder descortina uma vasta gama de variações harmônicas e não nega as suas origens boppers. Como um atrativo a mais, o álbum traz um take alternativo de “Wilbur’s Tune”, tão vibrante quanto o take original.
Nos anos 60, Sullivan trocou a fria Chicago pela ensolarada Miami. Ele havia viajado para visitar seus pais e gostou da cidade, decidindo estabelecer-se ali com a família. Um amigo, o baterista Guy Viveros, cuidou de familiarizá-lo à cena local. Em pouco tempo, já estava completamente adaptado, fazendo shows em vários lugares, inclusive na Disneylândia, cujo clube Lake Buena Vista é considerado pelo saxofonista como um dos melhores locais para se tocar jazz na cidade. As gigs no clube muitas vezes incluíam o trompetista Idrees Sulieman, velho amigo dos tempos de Nova Iorque e então residindo na Dinamarca, que também costumava tocar sax alto nesses animados encontros.
Sullivan continuou a gravar de forma episódica, incluindo-se no rol de álbuns do período o elogiado “Horizons”, de 1967, para a Atlantic. Em 1975, gravou para a A&M o disco “Ira Sullivan”, que possui o mérito de revelar ao mundo o talento de Jaco Pastorious, provavelmente o maior nome do contrabaixo elétrico no jazz. Também investiu na carreira de educador musical, trabalhando como professor convidado do departamento de jazz da University of Miami, a partir do início dos anos 70. Um de seus alunos foi um jovem guitarrista chamado Pat Metheny.
Insatisfeito com a pequena quantidade de instrumentos que já dominava, Ira aproveitou seu exílio dourado na Flórida para acrescentar à sua coleção três novos brinquedos: o flugelhorn, o sax soprano e a flauta, que usa com enorme desenvoltura. Reza a lenda que o aprendizado foi conseguido no espaço de pouco mais de quatro horas e graças a uma única aula, ministrada pelo também multiinstrumentista Eddie Caine, conhecido por seu trabalho ao lado de Miles Davis e Gil Evans.
Nem mesmo um sério problema bucal foi capaz de mantê-lo fora dos palcos e estúdios. O uso contínuo de instrumentos de sopro ao longo de tantos anos havia comprometido a sua embocadura e o saxofonista tinha uma enorme dificuldade para tocar, além de sentir dores intensas. Após um tratamento que recuperou-lhe a estrutura dental, o jovial Sullivan superou essa adversidade – aliás, costuma dizer que sua embocadura está perfeita, como na época em que tinha 19 anos.
Mantendo-se ainda em intensa atividade, seja como educador musical ou seja simplesmente tocando, Ira foi um dos destaques de um tributo a Jaco Pastorious realizado no Beacon Theatre, onde também se apresentaram o pianista Gil Goldstein, também responsável pelos arranjos, e o trompetista Randy Brecker. Foi indicado cinco vezes para o Grammy. Também participou de álbuns do vibrafonista Jim Cooper, do pianista Bob Albanese, do trombonista Scott Whitfield e do guitarrista Joe Diorio.
Além das habituais apresentações ao lado do velho companheiro Red Rodney, Sullivan costuma excursionar com o talentoso saxofonista Eric Alexander, em uma formação que inclui o pianista Harold Mabern, o baixista John Weber e o baterista Joe Farnsworth. Nesses concertos, Sullivan costuma flauta, trompete e sax soprano, deixando o tenor para Alexander.
Sobre a sua ausência dos estúdios, Sullivan dá uma aula de desprendimento e de amor à música: “Eu nunca me interessei muito em gravar álbuns. Eu me interesso apenas em tocar. Eu só gravo quando alguém insiste muito. Eu odeio aqueles fones de ouvido, eles tiram o feeling da palheta e, conseqüentemente, do próprio instrumento. Para mim, tocar é tudo que importa”.
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