Música e outras coisas
A CASA DO POETA TRÁGICO
33 anos. Uma idade emblemática para a mitologia cristã. Imolação e sacrifício já marcaram a vida e a morte de um outro homem, muitos séculos antes daquele fatídico 19 de fevereiro de 1972. No caso de Lee Morgan, o fato mais intrigante é que ele não morreu por causa das drogas. A muito custo, havia conseguido se livrar do terrível vício da heroína, com o qual convivera por quase metade da sua curta existência. Um único tiro, certeiro como seus solos devastadores, encerrou a vida e a carreira do mais importante trompetista dos anos 60. A autora do disparo foi namorada Helen More e o local do sacrifício foi a porta do clube Slug’s, de Nova Iorque, onde Lee havia acabado de se apresentar.
Um destino tragicamente diferente daquele que o casal Otto e Nettie Morgan sonhou para o adorado filho caçula. O pequeno Edward Lee, nascido em 10 de julho de 1938, aprendeu os rudimentos da música com a irmã mais velha, Ernestine, cantora e organista de uma igreja de sua Filadélfia natal. Foi Ernestine quem lhe deu o primeiro trompete, um reluzente Martin, e o estimulou a freqüentar o curso de música da renomada escola Jules E. Mastbaum, onde estudaram, entre outros, Red Rodney e o fabuloso Buddy DeFranco. Discos, muitos discos, de Charlie Parker, Miles Davis e Dizzy Gillespie, ajudavam a compor o alegre ambiente familiar dos Morgan e a definir o futuro musical do jovem Lee.
Em 1954, teve aulas particulares com o mitológico Clifford Brown, com quem muitas vezes viria a ser comparado. Talentoso e bastante aplicado, Lee também era, nessa época, tremendamente arrogante. É famosa a história da jam em que o experiente Sonny Stitt deu uma lição no abusado trompetista, que teria dito ao lendário altoísta que tocaria a música que ele quisesse. O implacável Stitt tocou Cherokee em um tom extremamente difícil e altamente veloz. Morgan não conseguiu acompanhá-lo e, humilhado, passou vários meses sem aparecer nos clubes da cidade.
Nesse período de recolhimento, Morgan ensaiava com afinco e disciplina, depurando seu estilo e aperfeiçoando o seu fraseado. Em 1956, tocou algum tempo com Art Blakey, que se apresentava em um clube local, mas não obteve autorização da família para acompanhar o célebre baterista até Nova Iorque. Alguns meses mais tarde, Lee realizaria o sonho de qualquer jovem jazzista: foi aprovado em um teste para integrar a orquestra do ídolo Dizzy Gillespie e se tornou o mascote da companhia. O crítico Nat Hentoff sintetizou o efeito que a aparição de Lee causou no mundo do jazz:
“Todo ouvinte jazz teve algumas experiências tão surpreendentes que são, literalmente, inesquecíveis. Uma das minhas teve lugar durante uma temporada da orquestra de Dizzy Gillespie no Birdland, em 1957. Eu estava de costas para o palco, quando a banda começou a tocar “A Night In Tunisia”. De repente, um trompete se destacou na orquestra, com uma execução tão viva e brilhante que todas as conversas cessaram e aqueles de nós que estavam gesticulando ficaram estáticos, com as mãos estendidas a esmo. Após o impacto daquele trovão, eu me virei e vi que o trompetista era um jovem sideman da Filadélfia, chamado Lee Morgan.”
Lee deixou a big band de Dizzy Gillespie em 1958, quando, finalmente, integrou-se aos Jazz Messengers. Paralelamente, iniciaria uma prolífica carreira solo, gravando incessantemente para a Blue Note, não apenas como líder mas também como um dos mais assíduos acompanhantes da companhia fundada por Alfred Lion. Participou de sessões antológicas, ao lado de John Coltrane, Joe Henderson, Jackie McLean, Benny Golson, Art Farmer, Grant Green, Curtis Fuller, Clifford Jordan, Johnny Griffin, Gene Harris, Elvin Jones, Jimmy Smith, Wayne Shorter e Hank Mobley.
A saída dos Jazz Messengers foi traumática. Morgan e Bobby Timmons, o pianista da banda e compositor do seu maior sucesso, “Moanin”, foram sumariamente demitidos pelo patrão Blakey, por conta da completa incapacidade em cumprir suas respectivas obrigações para com o grupo. Corria o ano de 1961 e, poucos meses depois desse episódio Blakey foi atacado por um traficante, na porta do Apollo Theater. Como resultado da agressão, o trompetista perdeu alguns dentes e se exilou em Filadélfia por quase dois anos. De volta à ativa, a feérica “The Sidewinder”, lançada no álbum de mesmo nome em 1963, escancarou-lhe as portas do mercado fonográfico, tendo alcançado um honroso 25º lugar na parada pop e ficado entre os dez mais vendidos da parada de R&B.
Mas o sucesso comercial apenas era o reverso do pesadelo em que Morgan ainda chafurdava, por conta da terrível dependência da heroína. Até o início da década de 70, quando finalmente se livraria do vício, Morgan se submeteria a situações verdadeiramente degradantes, como fugir de restaurantes para não pagar a conta ou de vender nas ruas cópias de seus LP’s, que ele retirava da sede da Blue Note como uma espécie de adiantamento. Muitos anos antes desses episódios lamentáveis, quando ainda era uma promessa de dezenove anos, o trompetista deu ao mundo uma pequena amostra do seu incomensurável talento.
O álbum se chama “Candy”, a gravação ocorreu em duas sessões distintas (dias 18 de novembro de 1957 e 02 de fevereiro de 1958) e os companheiros de jornada eram o pianista Sonny Clark, o baixista Doug Watkins e o incansável Art Taylor na bateria. O repertório é composto basicamente de standards, sendo que alguns merecem versões eletrizantes, como “Who Do You Love, I Hope”, de Irving Berlin, e “All At Once You Love Her”, de Richard Rodgers e Oscar Hammerstein, na qual o trabalho de Watkins é nada menos que exuberante e os solos do líder são de uma complexidade técnica assombrosa.
A saborosa versão da canção-título é um momento sublime. Taylor exibe muito vigor na condução do ritmo e Morgan simplesmente desmonta e reconstrói o standard de Mack David, Alex Kramer e Joan Withney, com direito a solos altamente criativos. Na lânguida “Since I Fell For You”, de Buddy Johnson, o líder disseca todas as possibilidades harmônicas desta balada em forma de blues, onde o piano de Clark se encarrega de criar uma atmosfera doce e sedutora. Como curiosidade, as duas canções foram compostas em 1945.
Hard bop de excelente safra, com muito groove e altamente energético, é o mote da clássica “C. T. A.”, de Jimmy Heath, executada em tempo bastante acelerado, servindo de veículo perfeito para que o prodigioso trompetista de vazão à sua criatividade aparentemente inesgotável. Em mais uma balada irrepreensível, Morgan incorpora o fraseado delicado e lírico de Art Farmer para encantar o ouvinte, a bordo de uma emocionante releitura de “All The Way”, de Jimmy Van Heusen, em uma interpretação que merece o epíteto de “poema sonoro”. A cativante “Personality”, outra gema de Van Heusen, ganha uma roupagem encantadora, e sobre a performance do líder pode-se dizer que é ensolarada como um dia de verão.
Para além de todos os problemas com as drogas e de todos os percalços em sua carreira, Lee Morgan será sempre lembrado com uma das vozes mais originais do trompete, um músico extremamente criativo e um solista capaz de se expressar de maneira alucinante. Expandiu as fronteiras do jazz ao adicionar à sua receita fartas doses de soul, funk, R&B, tornando-o bastante viável do ponto de vista comercial, mas sem abrir mão da qualidade nem render-se a simples modismos.
O tiro disparado por Helen More, aparentemente inconformada pela iminência de perder o companheiro com quem vivera por quase quatro anos e que ajudara a sair do tormentoso pântano das drogas, deixou órfãos inúmeros fãs do mundo inteiro. Essa jornada de paixão, ciúmes e loucura ainda teria mais um capítulo: depois de assassinar Morgan, a tresloucada Helen deu cabo à própria vida. O jazz perdia um dos seus mais talentosos expoentes mas o seu delirante fabulário ganharia um novo mito – mais uma história de tragédia e violência, ódio e desvario, como tantas outras marcam as incontáveis lendas associadas ao jazz.
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