O SOM!
Música e outras coisas

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Stanley Gayetsky foi considerado por Alain Gerber como um dos cinco tenoristas mais importantes de toda a história do jazz. Na lista do respeitado crítico francês, figuram ainda Coleman Hawkins, Lester Young, Sonny Rollins e John Coltrane. O também francês André Francis o reputa músico mais importante do cool jazz. O exigente Richard Cook aplica a ele o adjetivo magnífico. Nada mal para o filho de imigrantes judeus ucranianos que vieram tentar a sorte nos Estados Unidos no começo do século XX e se fixaram na Filadélfia. Ali Stanley nasceu, no dia 02 de fevereiro de 1927, nas dependências do St. Vincent Hospital. Cinco anos mais tarde, em 1932, os Gayetskys se mudaram para Nova Iorque, estabelecendo-se no Bronx.

Na Grande Maçã, o garoto descobriu o jazz e aos treze anos começou os estudos de saxofone alto, logo trocado pelo tenor. Além do aprendizado musical na All City High School Orchestra, a recebeu aulas particulares de Simon Kovar, fagotista da Filarmônica de Nova Iorque. Aos 15 anos começou a tocar profissionalmente e seu primeiro emprego foi na big band de Dick Rogers, que animava as noites do clube Roseland, ganhando 35 dólares por semana.

Em janeiro de 1943, com apenas 16 anos, foi tocar na orquestra do veterano Jack Teagarden, ganhando 70 dólares semanais, e no dia seguinte à sua contratação viajou com a big band para Boston. Naquela época, o jovem saxofonista já havia simplificado o nome e atendia pelo singelo pseudônimo de Stan Getz – muito mais fácil do que Stanley Gayetsky, convenhamos. Embora Teagarden fosse um grande músico, sua orquestra possuía uma sonoridade que Getz considerava ultrapassada, basicamente fundada no dixieland e no swing.

Naquele mesmo período e na mesma Nova Iorque onde Stan foi criado, outros jovens faziam uma verdadeira revolução no jazz, adaptando o estilo aos novos tempos e modernizando a sua linguagem. Nascia o bebop, que impunha a seus artífices e executantes, quase todos jovens tão talentosos quanto irrequietos, um novo patamar de habilidade técnica, inventividade e destreza. Tocar aquela música desafiadora e inóspita era tudo o que Getz queria para si.

Mas antes de mergulhar nas tempestuosas águas do bebop, Stan ainda passaria um bom tempo ao lado de músicos menos ousados estilisticamente. Fez alguns trabalhos ocasionais com Nat King Cole e Buddy Morrow até que, em 1944, foi contratado pelo pianista e bandleader Stan Kenton, trabalho que lhe rendeu a maior visibilidade que já havia desfrutado até então. Poucos dias após assinar com Kenton, Getz participou das gravações de “And Her Tears Flowed Like Wine”, que trazia Anita O'Day nos vocais e que vendeu a astronômica quantia de 400.000 cópias, galgando o quarto lugar na parada de sucessos.

Em abril de 1945, deixou a orquestra de Kenton, e foi trabalhar com Jimmy Dorsey, passando a seguir para a big band de Benny Goodman. No dia 07 de novembro de 1946, casou-se com Beverly Byrne, vocalista da banda de Gene Krupa, com quem teria três filhos. Nesse período, gravou para a Savoy Records sua primeira sessão como líder, à frente de um quarteto formado por Hank Jones, Curly Russell e Max Roach. O álbum não obteve maior repercussão e Getz continuou a trabalhar como músico contratado.

Ainda em 1946, fez parte da orquestra do trompetista Tommy de Carlo, que tocava em bailes da região de Los Angeles. Apesar de bastante comercial, a banda possuía um belíssimo quarteto de saxtenoristas: além de Stan, tocavam ali Herb Steward, Zoot Sims e Jimmy Giuffre. Os quatro chamaram a atenção de Ralph Burns, pianista e arranjador da orquestra de Woody Herman, que indicou ao patrão aqueles jovens e talentosos saxofonistas. Herman não pestanejou e levou os garotos para a sua própria orquestra.

Conhecida como Herman's Second Herd, a big band tinha uma abordagem moderna e adicionava um tempero bop bastante acentuado às suas interpretações. Naquele contexto bem mais interessante, formou-se um naipe de saxofones dos mais extraordinários de qualquer época: Stan, Herbie Steward e Zoot Sims nos tenores e o Serge Chaloff (que entrou no lugar de Giuffre, que assumiu a direção musical e os arranjos da banda) no saxofone barítono. Essa formação ficou conhecida como The Four Brothers, em homenagem ao tema homônimo, composto por Jimmy Giuffre e que era uma das marcas registradas da orquestra.

Um dos pontos altos na carreira de Getz naquele período foi o portentoso solo criado para “Early Autumn”, em uma gravação de 1948, que o catapultou para a fama. Mal havia entrado na casa dos vinte anos e ele já demonstrava possuir duas características fundamentais para se estabelecer no competitivo cenário musical da época: muita personalidade e uma sonoridade bastante original. Quer dizer, original em termos, pois o seu timbre nítido, seu fraseado cristalino e a quase completa ausência de vibrato decorrem, em boa medida, de Lester Young.

Sempre bem-humorado, Young teria dito certa vez, quando Stan era um dos músicos de jazz  mais bem-sucedidos  dos anos 50: “Eu invento o som e o Stan fica com o dinheiro” (um trocadilho, pois Getz em inglês tem a mesma sonoridade que “gets” – fica). De qualquer forma, a orquestra de Herman, onde Stan permaneceu até março de 1950, foi um grande aprendizado e ajudou-lhe a lançar as bases da carreira solo, iniciada no ano seguinte.

Os motivos de sua saída são atribuídos ao trauma que vivenciou por conta de um trágico acidente em que, de certa forma, se viu envolvido. Stan e outros músicos da banda se dirigiam aos arredores de Chicago, onde iriam se apresentar, quando o carro pifou. Nevava bastante e os músicos estavam atrasados para o show. Eles então acenaram para um trem que passava próximo ao local e, provavelmente por perceber que se tratava de uma orquestra, o maquinista diminuiu a velocidade do trem. Antes que este parasse completamente, o outro maquinista desceu para investigar o que se passava. Ele escorregou e foi esmagado pelas rodas do trem, ainda em movimento.

Sem perceber o que havia acontecido, os músicos embarcaram em um dos vagões, cantando e fazendo brincadeiras uns com os outros. Ocorre que os passageiros que estavam no vagão já tinham sido informados do acidente e interpelaram os músicos de forma hostil, alguns deles culpando os integrantes da orquestra pelo ocorrido. Traumatizado pelas circunstâncias do acidente, Stan saiu da banda pouco tempo depois.

Aquele ano marcou também o início dos muitos pequenos conjuntos liderados por Getz ao longo da década. Alguns dos grandes nomes que passaram por seus grupos foram o guitarrista Jimmy Raney, o baterista Roy Haynes, o pianista Al Haig e o contrabaixista Tommy Potter. Em dezembro, fez uma temporada no “Birdland”, dividindo os letreiros com Charlie Parker e Lester Young. As outras atrações do clube no mesmo período. Stan também participou do concerto de Natal daquele ano, realizado no Carnegie Hall e que trazia, entre outros, Miles Davis, Serge Chaloff, Sonny Stitt, Max Roach, Bud Powell, Parker, Sarah Vaughan e Lenny Tristano.

1950 seria um ano realmente glorioso, pois Stan foi eleito pela Metronome o melhor saxofonista tenor do ano (na votação da Down Beat ficou com um honroso segundo lugar). A mesma Metronome o escolheu como Músico do Ano, honraria que dividiu com o ótimo Lee Konitz. Getz participou, em 1952, das gravações de “Moonlight in Vermont”, sob a liderança do guitarrista Johnny Smith e que foi um grande sucesso. Entre 1953 e 1954, co-liderou um quinteto com o trombonista Bob Brookmeyer.

Um dos músicos lançados por Stan foi ninguém menos que Horace Silver, que foi seu pianista no início daquela década. O saxofonista, ao mesmo tempo em que tocava com figuras seminais do bebop como Dizzy Gillespie, Max Roach, Al Haig e J. J. Johnson, ajudou a fazer uma releitura mais suave do estilo. Essa versão “esfriada” do bebop recebeu o nome de cool jazz e teve em Chet Baker, Gerry Mulligan e Miles Davis, outros parceiros constantes de Getz na época, alguns dos seus precursores.

Embora caminhasse rapidamente para se tornar uma estrela, pelo menos para os padrões do jazz, Stan enfrentava sérios problemas com o álcool e a heroína. Em 1954 chegou a ser preso, ao tentar roubar morfina de uma farmácia em Seattle e foi condenado a seis meses de prisão. Durante o período na carceragem, Beverly deu à luz o terceiro filho do casal. Quando Getz ganhou a liberdade, o casamento estava em frangalhos e não duraria muito tempo.

Em 1956, divorciou-se de Beverly e casou-se com a aristocrática Monica Silfverskiold, filha de uma das famílias mais tradicionais da Suécia. Ele conheceu a nova mulher naquele ano, durante uma excursão aos países escandinavos, que rendeu, além do casamento, o excelente “Stan Getz In Stockholm” (Verve), onde se apresenta ao lado de uma sessão rítmica formada apenas por músicos suecos.

Os problemas com as drogas vinham desde a década anterior, quando Stan ainda tocava na orquestra de Herman e quase custaram, naquela época, a vida do saxofonista – não por causa de uma overdose, como se poderia imaginas, mas porque ele quase foi devorado por... um urso! O inusitado episódio deu-se da seguinte maneira: A orquestra de apresentava no mesmo local em que era realizado um show de vaudeville. O altoísta Sam Marowitz e mais Chaloff, Sims, Al Cohn (que havia entrado no lugar de Stewdard) e Getz estavam tocando, chapadíssimos quando um urso de quase dois metros de altura que escapou do controle do treinador e investiu para cima daquele bando de malucos.

Menos afetado pelas, digamos, substâncias alucinógenas, Marowitz percebeu a encrenca e deu no pé. Os outros quatro pensaram que o urso fazia parte da “viagem” e não ligaram para a presença do nada amistoso animal. Felizmente, o urso foi dominado pelo treinador antes de atingir os quatro malucos e o jazz pôde contar, ainda por muito tempo (no caso de Chaloff, falecido em 1957, nem tanto tempo assim) com quatro de seus mais talentosos – embora loucos de pedra – saxofonistas.

No a partir de 1957, Stan foi um ativo integrante da caravana Jazz At The Philarmonic, sob a tutela do produtor Norman Granz e se tornou um dos artistas mais prolíficos das gravadoras deste, a Clef, a Norgran e, sobretudo, a Verve. Nesta última, lançou dezenas de álbuns, entre os anos 50 e 70, onde divide os estúdios com feras do calibre de Oscar Peterson, Stan Levey, Leroy Vinnegar, Count Basie, Louis Bellson, Ray Brown, Buddy DeFranco, Herb Ellis, Buddy Rich, Gerry Mulligan, Coleman Hawkins, Illinois Jacquet, Flip Phillips, Connie Kay, Hank Mobley, J. J. Johnson, Cal Tjader, Sonny Stitt, Lionel Hampton, Vince Guaraldi, Scott LaFaro, Billy Higgins e muitos outros.

Muitos dos concertos feitos para o Jazz At The Philarmonic foram realizados na Europa, para onde o tenorista se mudou em 1958, fixando residência em Copenhague, na Dinamarca. A idéia inicial era fugir do ambiente musical dos Estados Unidos, extremamente vulnerável às drogas, mas Stan só conseguiria se livrar do vício, em definitivo, na década de 80. De qualquer modo, ele permaneceu no Velho Continente até 1961.

Um dos seus maiores amigos ali foi o baixista Oscar Pettiford, outro músico norte-americano exilado na Europa. Os dois fizeram diversos shows juntos, boa parte deles contando com a participação do grande Kenny Clarke. A morte de Pettiford, em setembro de 1960, abalou bastante o saxofonista, que fez diversos concertos destinados a arrecadar fundos para a família do falecido amigo.

De volta aos Estados Unidos, gravou o elogiado álbum “Focus” (Verve), com composições e arranjos de Eddie Sauter. A sonoridade buscada por ele e Sauter remetia ao experimentalismo que Coltrane levava adiante naquele período. Aliás, Coltrane era um grande admirador de Stan e chegou mesmo a declarar em uma entrevista: “A verdade é a seguinte: todos nós soaríamos como Stan, se pudéssemos”.

No ano seguinte, Getz se uniu ao guitarrista Charlie Byrd para as gravações de “Jazz Samba”, um dos primeiros discos a levar a bossa nova para o ambiente jazzístico. O repertório traz composições de Antonio Carlos Jobim (“Desafinado” e “Samba de uma nota só”), Ary Barroso (“Na baixa do sapateiro” e “É luxo só) e Baden Powell (“Samba triste”) e foi muito bem recebido por crítica e público.

Mais importante: praticamente abriu um novo – e lucrativo – filão mercadológico, não apenas para músicos norte-americanos como Herbie Mann, Bud Shank e Paul Winter, mas também para diversos brasileiros que foram tentar a sorte na Terra de Tio Sam, como Sérgio Mendes, João Gilberto, Luiz Bonfá, Eumir Deodato e o próprio Tom Jobim. Logo depois da experiência com Byrd, o saxofonista lançou “Big Band Bossa Nova”, com arranjos do vibrafonista Gary McFarland, e “Jazz Samba Encore!”, ao lado do violonista Luiz Bonfá.

Getz voltaria a beber na fonte da bossa nova muitas outras vezes, mas o ponto alto de suas incursões pela música brasileira é, sem dúvida, o álbum “Getz / Gilberto”. Gravado para a Verve em março de 1963, com produção de Creed Taylor, o LP vendeu inacreditáveis três milhões de cópias e fez de Stan um homem rico. Os brasileiros que participaram da gravação foram Tom Jobim, responsável pelo piano e arranjos, João Gilberto nos vocais e no violão, Tião Neto no contrabaixo e Milton Banana na bateria.

Meio sem querer, a então esposa de João Gilberto, Astrud, assumiu o vocal em algumas faixas – “Corcovado”, traduzida como “Quiet Nights”, e “The Girl From Ipanema” – e iniciou ali a sua meteórica carreira de cantora. Credita-se a ela e à sua voz pequena mas muito afinada, boa parte do sucesso do álbum, já que ela cantava num inglês perfeito. Essas faixas foram lançadas em forma de compacto e venderam mais de um milhão de cópias ao redor do mundo. Cada uma! O cachê recebido por Astrud foi singelo. Apenas 168 dólares, de acordo com a tabela do Sindicato dos Músicos de Nova Iorque.

As gravações não foram lá um mar de rosas. João Gilberto implicava com a sonoridade de Getz, barulhenta demais para um álbum de bossa nova, e não fazia a menor questão de esconder o seu descontentamento. Dizia para Tom: “Tomzinho, esse gringo é muito burro!”. Getz, que não entendia patavinas de inglês, mas que sabia que João falava dele, perguntava a Tom o que o baiano havia dito. Numa sinuca de bico, Tom dava um migué: “He’s telling you are a great musician, Mr. Getz!” (“Ele está dizendo que você é um grande músico, Sr. Getz.”). E o gringo respondia: “Engraçado! Não parece que é isso que ele está dizendo”.

De qualquer forma, o disco, lançado no ano seguinte, vendeu mais que os Beatles nos Estados Unidos, abocanhou cinco prêmios Grammy (incluindo o de Álbum do Ano) e é considerado um marco na história do jazz e da bossa nova. Com o dinheiro ganho com as vendas do álbum, Getz comprou uma mansão que, segundo Ruy Castro, tinha 23 quartos e que havia pertencido à irmã dos compositores George e Ira Gershwin.

Ainda assim, Getz reclamou do modesto cachê pago a Astrud. Quando soube disso, Zoot Sims, seu ex-companheiro na banda de Woody Herman, comentou: “É bom saber que o sucesso não alterou Stan. Ele continua a ser o mesmo filho-da-puta de sempre”. Mas parece que o bom senso – ou o bolso – falou mais alto e Stan trabalhou com a cantora muitas vezes, incluindo uma série de concertos e a participação de Astrud no disco “Getz Ao Go Go”, que ficou por quase cinqüenta semanas no Top 25 da Billboard. Também foi feita uma nova tentativa de reeditar o sucesso “Getz / Gilberto”, com o lançamento, no ano seguinte, de “Getz / Gilberto # 2”, bastante inferior ao primeiro, do ponto de vista da qualidade artística, e que não teve a mesma acolhida nas paradas.

Vida que segue, Getz retornou ao jazz e ainda em 1964 foi lançado o álbum “Stan Getz & Bill Evans” (Verve), um marco na discografia destes dois artistas extraordinários. No ano seguinte, Stan foi o principal nome da trilha sonora do filme “Mickey One”, composta e arranjada por Eddie Sauter (a direção do filme é de Arthur Penn). Grande descobridor de talentos, o saxofonista abrigou em suas bandas dos anos 60 e 70 nomes que, futuramente, se tornariam nomes de peso no cenário jazzístico, como Chick Corea, Joanne Brackeen, Steve Swallow e Gary Burton, entre outros.

Embora tenha lançado outros grandes discos, o cenário norte-americano parecia só ter olhos e ouvidos para o jazz de vanguarda. Desencantado, em 1970 o saxofonista voltou a se estabelecer na Europa, retornando aos Estados Unidos em 1972. A nova década marcou o flerte do saxofonista com o fusion, no controvertido “Capitain Marvel” (Columbia, 1972), com a participação de alguns integrantes da banda “Return To Forevewr”, como o pianista Chick Corea, o baixista Stanley Clarke, o baterista Tony Williams e o percussionista Airto Moreira.

Getz também voltaria a se encontrar com João Gilberto, no álbum “The Best Of Two Worlds” (Columbia), de 1975. Naquele mesmo ano, seria gravado um dos discos mais líricos da carreira de Stan: “The Peacocks”, em duo com o fabuloso pianista Jimmy Rowles (que além de tocar, ainda canta em três faixas). No dia 17 de junho de 1978, Stan foi pessoalmente convidado pelo Presidente Jimmy Carter para as comemorações do 25º aniversário do Newport Jazz Festival, que incluíram um grande concerto nos jardins da Casa Branca.

Na década seguinte, assinaria com a Concord, e pela nova gravadora lançaria alguns discos bastante elogiados, incluindo “Spring Is Here” (1981), “The Dolphin” (1981), “Blue Skies” (1982) e o formidável “Pure Getz”. Como se pode intuir pela mera leitura do título, o disco apresenta um Stan Getz em seu estado mais puro de lirismo, clareza e sofisticação.

Gravado nos dias 29 de janeiro e 05 de fevereiro de 1982, nos estúdios Coast Recorders, em San Francisco, e Soundmixers, em Nova Iorque, o disco teve produção de Carl Jefferson, que não poupou esforços e nem recursos para obter uma sonoridade impecável. A banda era integrada pelo pianista James McNeely, pelo contrabaixista Marc Johnson e pelo baterista Victor Lewis (substituído pelo igualmente talentoso Billy Hart em “Very Early”, “I Wish I Knew” e “Come Rain or Come Shine”).

A faixa de abertura, “On the Up and Up”, é de autoria de McNeely e tem uma estrutura bastante contemporânea, com inflexões à Coltrane e ecos discretos de bossa nova, sobretudo graças à percussão calorosa de Lewis. O autor do tema se mostra versátil e inventivo, trafegando pelo bebop quebradiço de um Thelonious Monk e pela contagiante escola cubana de um Chucho Valdez com idêntica desenvoltura.

O quarteto faz uma fantástica releitura de “Blood Count”, de Billy Strayhorn, na qual o talento do líder sobressai-se, impávido e comovente. Sobre essa versão, basta reproduzir o que escreveu o crítico Gary Giddens: “Com “Blood Count”, Getz se junta ao relativamente pequeno grupo de estilistas do jazz que conseguem imprimir uma assinatura absolutamente pessoal em tudo que fazem, por conta de sua notável integridade interpretativa”.

“Very Earle” é uma composição pouco conhecida de Bill Evans, com andamento de valsa e executada com extrema sensibilidade pelo quarteto. Johnson, o último baixista do trio do pianista, morto em setembro de 1980, transita com elegância pelas sofisticadas harmonias do tema. O sax de Getz esparrama notas plenas de doçura e alguma melancolia, em um arranjo que prima pelo bom gosto e pela emotividade algo contida, características comum tanto em Stan quanto em Evans.

“Sippin' at Bell's” foi composta por Miles Davis e possui um balanço discreto, com um leve acento de blues e genealogia indiscutivelmente bop. Johnson tem uma atuação destacada, exercendo a marcação com firmeza e seu solo tem uma opulência sonora que remete ao melhores momentos de Paul Chambers. A performance de Getz é calorosa, mas sem exibicionismos e seu domínio dos registros graves do saxofone não encontra paralelo na história do jazz moderno. A batida de Lewis é precisa e o trabalho com os pratos consegue empolgar sem deixar de lado a precisão.

Em “I Wish I Knew”, de Harry Warren e Mack Gordon, o proverbial lirismo de Getz se manifesta em sua plenitude. Suas frases longas e sinuosas, seu fraseado rouco, sua infalível noção de tempo, todas essas características se deixam perceber com rara nitidez. Destaque para as graciosas intervenções de McNeely e para o swing discreto de Johnson, cujo balanço contido é responsável por boa parte do charme desta deliciosa versão. “Come Rain or Come Shine”, de Harold Arlen e Johnny Mercer, ganha um arranjo sóbrio, no qual a delicada percussão de Hart e a preciosa articulação de Getz merecem toda a atenção do ouvinte.

Para encerrar o disco, uma poderosa leitura de “Tempus Fugit”, de Bud Powell, um clássico do bebop, na qual o quarteto transborda energia, vitalidade e expertise técnica. Construindo solos muito fluentes e bem concatenados, Getz mostra soube amadurecer como vinho de excelente safra. Sua performance irrepreensível revela porque ele é um dos paradigmas do tenor moderno, alinhando-se aos grandes renovadores do instrumento, como John Coltrane, Sonny Rollins e Dexter Gordon, sem abrir mão da herança clássica legada por Coleman Hawkins, Ben Webster ou Don Byas. As exuberantes atuações de  McNeely e do vulcânico Nash contribuem para tornar a faixa uma das mais notáveis do disco.  

Ao longo dos anos 80, Getz gravaria por outros selos, como Sony, Dreyfus, Emarcy, Groove Note e Black Hawk. Aquele período também ficou marcado pelas inesquecíveis parcerias com dois talentosos pianistas: Albert Dailey (com quem gravaria o estupendo “Poetry”, para a Blue Note, em 1983) e Kenny Barron (seu parceiro mais constante nos anos finais da vida e da carreira, a quem Stan, carinhosamente, chamava de “minha cara-metade musical”). Em 1983, fez uma turnê pela Europa com o instável Chet Baker.

Em 1985, Getz mudou-se para o norte da Califórnia e permaneceu por cerca de quatro anos como artista residente e professor na Universidade de Stanford, em Palo Alto. Um de seus muitos alunos na época foi o baixista Larry Grenadier, mais conhecido por seus trabalhos com o pianista Brad Mehldau. Em maio de 1987, Stan recebeu o diagnóstico de um câncer no pulmão. Em setembro daquele ano, depois de ter excursionado pela Europa e de ter participado do JVC Jazz Festival, o saxofonista foi submetido a uma cirurgia para extrair o tumor. A cirurgia foi bem-sucedida, mas a luta contra aquele insidioso inimigo estava apenas começando.

Em 1988, Stan recebeu um novo diagnóstico de câncer, desta vez no fígado e impossível de ser retirado pela via cirúrgica. Corajoso, ele não se afastou dos palcos e estúdios e manteve-se em atividade praticamente até o fim da vida. Em julho daquele ano, Getz participou de um tribute ao baterista Buddy Rich, realizado no Carnegie Hall, em Nova Iorque. No ano seguinte, nova excursão à Europa e a gravação do álbum “Just Friends”, da cantora Helen Merrill.

Ainda em 1989, Stan foi um dos laureados com o título de Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras. Ele estava em ótima companhia, pois na mesma oportunidade, outros grandes nomes do jazz foram agraciados com a comenda, a mais alta concedida pelo governo da França: Dizzy Gillespie, Max Roach, Hank Jones, Phil Woods, Milt Jackson, Percy Heath e Jackie McLean. No dia 16 de junho, esses mestres retribuíram a honoraria com um grande espetáculo em Paris, intitulado “All-Stars Tribute to Charlie Parker”.

Em 1990, Stan foi uma das atrações do Festival de Monterey. Em fevereiro de 1991, participou do álbum “You Gotta Pay The Band”, da cantora Abbey Lincoln. No mês seguinte, ocorreram as gravações daquele que seria o seu último disco, “People Time”. Gravado no clube Montmartre, em Copenhague, é um emocionante duo de piano e saxofone, no qual Stan destila todo o seu lirismo, ao lado do fiel companheiro Barron.

Pouco mais de dois meses depois, no dia 06 de junho de 1991, ele perderia a luta contra a doença, e morreria, em decorrência de uma grave hemorragia interna causada pelo câncer. Em 1988 a respeitada Berklee School of Music, prestou-lhe uma bela homenagem, ao dedicar saxofonista uma ala denominada “Stan Getz Media Center and Library”, construída com doações da Herb Alpert Fundation.

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