Música e outras coisas
O SAXOFONE ACADÊMICO DE GERRY MULLIGAN
Fosse um pintor e Gerry Mulligan estaria mais para o academicismo exuberante de um Rembrandt que para o vanguardismo abstracionista de um Jackson Pollock. Como o autor de “A lição de Anatomia do Dr. Tulp”, também Mulligan viveu uma sucessão de revezes e teve, por diversas ocasiões, o próprio talento questionado. Mas felizmente, em um universo marcado por injustiças históricas, ele pôde desfrutar em vida de prestígio e popularidade à altura de sua importância para o jazz.
Mulligan não foi apenas um dos fundadores do cool jazz e um dos mais destacados nomes do West Coast. Foi também um compositor personalíssimo (são dele, por exemplo, “Jeru” e “Line For Lyons”), arranjador inventivo e bandleader de elevada competência, além de ter sido um dos principais nomes do sax barítono, rivalizando, em técnica e habilidade, com os maiores do instrumento, como Serge Chaloff, Pepper Adams e Sahib Shihab.
Não bastassem essas qualidades, foi um dos músicos norte-americanos mais entusiasmados com a bossa nova, tendo acolhido como um irmão o nosso maestro Tom Jobim, quando este foi tentar “fazer a América”, no início dos anos 60. Mulligan, até o fim da vida, foi um dos grandes divulgadores da música brasileira nos EUA, tendo gravado composições de diversos autores brasileiros em seus discos (chegou a gravar um álbum ao lado da cantora Jane Duboc).
A história de Gerald Joseph Mulligan, nascido em Nova Iorque, no dia 06 de abril de 1927, é bastante curiosa. Seu primeiro instrumento foi o piano, tendo recebido as primeiras lições aos sete anos. Aos onze, ganhou de presente uma clarineta e passou a se dedicar, exclusivamente, aos instrumentos de sopro. Aos dezesseis, mudou-se com a família para a Filadélfia, onde conseguiu o primeiro emprego, como auxiliar de escritório.
O suado dinheirinho, economizado por meses a fio, foi suficiente para adquirir um saxofone tenor. Além das aulas na escola, do trabalho e dos treinos ao saxofone, o jovem Gerry encontrava tempo para fazer os arranjos da orquestra da West Philadelphia Catholic High School. Em pouco tempo, estaria fazendo arranjos para as orquestras das rádios locais, a convite do pianista Elliot Lawrence. Como boa parte dos adolescentes da época, nutria uma verdadeira adoração pelo bebop e por seus principais representantes: Charlie Parker e Dizzy Gillespie.
Nessa época, o inesperado resolveu fazer-lhe uma boa surpresa. Parker e Gillespie fariam alguns shows em Filadélfia, cuja abertura ficaria a cargo da orquestra em que Mulligan tocava. Ocorre que o saxofonista que acompanhava Bird e Dizzy sofreu um acidente e o embevecido Gerry foi convidado a substituí-lo. Durante duas noites, o jovem conheceu o Nirvana musical, tocando com os ídolos.
Em 1946, de volta a Nova Iorque, foi contratado pela orquestra de Gene Krupa, ao lado de quem viajou pelo país, até se fixar em Los Angeles. No ano seguinte, após desentender-se com Krupa, Mulligan uniu-se à orquestra de Claude Thornhill e voltou para Nova Iorque. Por volta de 1948, dois fatos marcaram a vida do saxofonista: a opção definitiva pelo sax barítono e as reuniões no apartamento de Gil Evans, que então iniciava a sua vitoriosa carreira de arranjador.
Participavam dessas reuniões, além de Mulligan e Evans, alguns dos músicos mais importantes das décadas vindouras, como os pianistas John Lewis e George Russell, e o trompetista Miles Davis. Este, aliás, foi o catalisador das complexas idéias harmônicas do grupo, tendo gravado, em 21 de janeiro de 1949 o fabuloso “Birth of the Cool”. Integravam o célebre noneto: Miles Davis (trompete), Lee Konitz (sax alto), Al Haig (piano), Gerry Mulligan (sax barítono), Joe Schulman (baixo), Kai Winding (trombone), Max Roach (bateria), John Barber (tuba) e Junior Collins (trompa).
Houve outras versões do noneto e outras gravações foram incluídas nesse álbum histórico (em 22 de abril de 1949 e em 09 de março de 1950), com a participação de músicos como Al McKibbon, Kenny Clark, Nelson Boyd, J. J. Johnson, e outros. De qualquer forma, o cool jazz ganhou força como movimento estético e todos os seus líderes, de uma forma ou de outra, firmaram seus nomes na concorrida cena jazzística de então.
Durante algum tempo, Mulligan tocou com George Russell, Brew Moore e Kai Winding, mas não estava satisfeito com a pouca repercussão do seu trabalho. Em 1952, mudou-se para a Califórnia, onde fez alguns arranjos para a orquestra de Stan Kenton. Ali pôde, pela primeira vez, montar um combo à sua imagem e semelhança. Arregimentou o baixista Bob Whitlock, o baterista Chico Hamilton e um jovem trompetista que vinha causando furor na cena jazzística da Costa Oeste: Chet Baker. Era o primeiro dos seus (muitos) grupos sem piano – e certamente o mais mítico deles.
Baker e Mulligan se odiaram à primeira vista. O primeiro era desorganizado, intuitivo, irresponsável e genial. O segundo compensava o menor talento (que, embora considerável não merecia, de forma alguma, o adjetivo “genial”) com uma seriedade e uma dedicação férreas. Nos shows, um não falava com o outro e ambos chafurdavam no pantanoso mundo das drogas. A comunicação se dava ao nível do inconsciente – e nada poderia ser mais cool.
Enormes filas se formavam em frente ao Haig, clube onde o quarteto se apresentava e, na audiência, era comum verem-se astros e estrelas de Hollywood. Os discos vendiam horrores (pelo menos para os padrões do mercado jazzístico) e Mulligan e Baker abiscoitavam prêmios nas revistas especializadas. No ano seguinte, o inferno pareceu desabar sobre a cabeça do saxofonista. As brigas constantes com Baker desfizeram a parceria e uma prisão, por porte de heroína, deixou-o longe da ribalta por três longos meses.
Ao sair da cadeia, o ambiente era inóspito para Mulligan. Tido como não confiável, teve que recomeçar do zero. Montou um novo quarteto, com Bob Brookmeyer, em 1954, ampliado para sexteto no ano seguinte, com a entrada do fabuloso Zoot Sims. Em 1957, montou uma orquestra de relativo sucesso, com a qual se apresentou, com bastante regularidade, até o início dos anos 60.
Nesse ínterim, a Columbia, maior gravadora de jazz da época (ou, pelo menos, a mais rica e onde pontuavam luminares como Duke Ellington, Miles Davis, Thelonious Monk e Charlie Mingus), resolveu fazer uma aposta arriscada. Contratou Mulligan e lhe deu carta branca para gravar um disco do jeito que quisesse. E ele não decepcionou. O resultado, que recebeu o insolente título “What Is There To Say?” (algo como “O que mais há para dizer?”), realmente calou a boca dos detratores e é um marco na carreira do saxofonista.
A escolha dos acompanhantes foi o primeiro dos muitos acertos. Art Farmer (trompete), Bill Crow (baixo) e Dave Bailey (bateria) formam uma trinca coesa e experiente, capaz de dar asas aos modernos conceitos harmônicos do líder mas, ao mesmo tempo, hábil o suficiente para fazê-lo com um swing autêntico (e, por vezes, incontido). O repertório, mesclando standards e composições de Mulligan, Farmer e Crow, também é outro acerto. O terceiro foi a escolha do produtor, o polivalente Teo Macero.
O diálogo de abertura da primeira faixa, que dá nome ao disco, é um exemplo da sofisticação quase minimalista de Mullligan. Ele e Farmer se comunicam como velhos camaradas, um fazendo o contraponto ao outro e ambos abusando do lirismo e da delicadeza. “Just In Time”, de Jule Styne, Betty Comden e Adolph Green, recebe um arranjo swingado, mas nada esfuziante, epíteto do estilo cool, com um maravilhoso trabalho da dupla Crow e Bailey.
“News From Blueport” é um mergulho nas águas do Mississipi, ao estilo Mulligan. Ou seja, o tema, composto por Farmer, é executado com doses generosas de elegância e sofisticação. O trompetista e o saxofonista travam verdadeiras batalhas em seus solos, desafiando-se reciprocamente, sem que haja um vencedor – este é, certamente, o ouvinte, extasiado com tamanha exibição de talento e criatividade.
Nas três composições de sua autoria (“Festive Minor”, “As Catch Can” e “Utter Chaos”), observa-se melhhor a preocupação estilística que revela o acadêmico Mulligan. Nada aqui é óbvio, com falsos começos, reviravoltas, notas espaçadas e todos os recursos que só um verdadeiro mestre é capaz de manusear com brilho e distinção. Em “As Catch Can”, deve-se atentar para o lancinante solo de Farmer e o vigoroso trabalho de Bailey. Em “Utter Chaos”, o conhecimento enciclopédico de Mulligan permite-lhe trafegar pelo dixieland, pelo cool e até pelo jazz modal do antigo companheiro George Russell.
Bill Crow assina a animada “Blueport”, cujo destaque é a fabulosa integração entre trompete e saxofone, navegando com a maior segurança em um sinuoso bop-blues, com citações aos heróicos tempos do swing. O arranjo, desta que é a mais longa faixa do álbum, é nada menos que soberbo, com espaço para que todos brilhem, inclusive o discreto compositor.
E, finalmente, há “My Funny Valentine”. Não há outra explicação para que essa música tenha sido incluída no álbum, a não ser o fato de que Mulligan, que não havia digerido a saída de Chet Baker do seu grupo, desejava provar, a todo custo, que poderia ir muito longe, mesmo sem o Anjo Caído do jazz. Bom, temos no trompete o lírico (e baladeiro até a medula) Art Farmer e a pergunta que se faz é: Chet quem?
Um disco que atesta a maturidade de um grande artista e revela bastante sobre os seus múltiplos talentos: uma vez posto à prova, Mulligan conseguiu perpetrar uma pequena obra-prima do jazz, à altura do que melhor se fez nos imorredouros anos 50. Não é à toa que guias respeitáveis como o Allmusic e o Penguin dediquem ao álbum tantas (e merecidas) estrelas.
O exigente Mulligan gravou discos antológicos, ao lado de lendas vivas do jazz, como Duke Ellington, Thelonious Monk, Ben Webster, Dave Brubeck, Paul Desmond, Johnny Hodges e Stan Getz. Era capaz de dialogar, fluentemente, tanto com músicos historicamente ligados ao swing quanto com os boppers mais arrojados. Dentre os selos para os quais trabalhou, destacam-se: Prestige, Pacific Jazz, Capitol, Columbia, Verve, CTI, Chiaroscuro, Concord e Telarc, entre outros.
Ainda na década de 50, participou, interpretando a si próprio, do filme “I Want To Live”, de Robert Wise, que renderia a Susan Hayward o Oscar de melhor atriz e ao próprio Mulligan um dos seus melhores discos (executando, ao lado de grandes nomes do West Coast, a maravilhosa trilha sonora de Johnny Mandell). Outra trilha sonora da qual participou foi a do filme “The Subterraneans”, esta composta por Andre Prévin.
Foi um dos músicos mais ativos dos anos 60 aos 90, gravando incessantemente e participando de concertos e festivais ao redor do mundo. Em 1974, lançou “Summit”, gravado na Itália, ao lado do extraordinário Astor Piazzolla e, em novembro do mesmo, reencontrou o antigo parceiro e desafeto Chet Baker para um concerto antológico no Carnegie Hall, o qual foi lançado em disco pela CTI – um belo e emocionante acerto de contas com o passado dos dois.
Gerry Mulligan morreu no dia 20 de janeiro de 1996, devido às complicações causadas por uma infecção no joelho, após ser submetido a várias cirurgias. Tinha 68 anos. Sobre ele, o amigo Dave Brubeck disse a célebre frase: “Em Mulligan, ouvimos o passado, o presente e o futuro do jazz”. Alguém aí vai querer contestar as palavras do mestre?
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