ARDIDO COMO PIMENTA
Música e outras coisas

ARDIDO COMO PIMENTA




1968. O ano que não terminou. Paris em chamas. Contracultura. Rebeldia. Contestação. Nas principais cidades do mundo, os jovens expressam a sua insatisfação com uma sociedade que lhes assegura uma vida próspera, mas absolutamente careta. Direitos civis. Guerra do Vietnã. Ofensiva do Tet. Paz e amor. Hippies. Panteras negras. Daniel Le Rouge. Os Beatles mergulham na cultura oriental e adotam o polêmico Maharishi Mahesh Yogi como guru. Primavera de Praga. Desobediência civil. No Brasil, o assassinato do estudante Edson Luís, pela polícia, desencadeia os maiores protestos contra a ditadura militar até então e o General Costa e Silva intensifica a repressão, levando o país para o tenebroso período do AI-5.


No jazz, movimentos como o free e o hard bop, liderados por músicos politizados como Albert Ayler, Archie Shepp, Max Roach e Charles Mingus radicalizam o discurso contra a ainda racista sociedade norte-americana. Há não muito tempo e negros e brancos sequer poderiam dividir o mesmo ambiente ou tomar água no mesmo bebedouro e o apóstolo da luta pacífica, Martin Luther King, havia sido assassinado no dia 04 de abril daquele ano. Apesar dos avanços, ainda há muitas feridas abertas.


No final desse ano tão conturbado, exatamente nos dias 11 e 12 de dezembro, cinco músicos se reuniram no Nola Sound Studios em Nova Iorque, sob a supervisão do engenheiro Tommy Nola, e gravaram um disco espetacular. É claro que esse disco não provocou abalos sísmicos nos índices de Wall Street. Nem foi guindado aos píncaros das Billboard e Cash Box da vida. Mas é uma prova de que em 1968 a sensibilidade e o bom gosto também tinham lá o seu espaço.


E também de que brancos e negros, desde sempre, poderiam conviver de forma pacífica, harmônica e fraterna. Afinal, estavam ali o baixista Ron Carter, o baterista Elvin Jones, o saxofonista Zoot Sims e o pianista Tommy Flanagan, sob a liderança do baritonista Peper Adams, tocando e interagindo com a habitual camaradagem que só o jazz pode proporcionar. E o resultado dessa reunião de músicos estelares é o magistral “Encounter!” – o ponto de exclamação colocado no título é mais do que pertinente – gravado para a Prestige.


Falemos um pouco sobre Adams, considerado um dos saxofonistas barítono mais completos de todos os tempos. Seu nome de batismo era Parker Adams III e ele nasceu no dia 08 de outubro de 1930, na cidade de Highland Park, Michigan. Sua família logo se mudou para Rochester, Nova Iorque, onde passaria a infância e parte da adolescência. Ali começou a receber as primeiras aulas de clarineta e saxofone tenor, agregando-se à banda da escola. Um de seus professores foi Elmer Skippy Williams, ex-integrante das bandas de Earl Hines e de Duke Ellington.


O amor pelo jazz havia sido despertado pelas audições, no rádio, das orquestras de Jimmy Lunceford, Cab Calloway, Count Basie e Duke Ellington e do piano bem humorado de Fats Waller. Seus primeiros ídolos foram Coleman Hawkins e Don Byas, dois dos mais vigorosos saxofonistas da era do swing.


Em 1946, mais uma mudança, desta feita para Detroit. Ali, Adams travaria contato e firmaria amizade com uma constelação de jovens e futuros astros do jazz, como Kenny Burrell, Barry Harris, Tommy Flanagan, Paul Chambers, Doug Watkins, Curtis Fuller, os irmãos Hank, Thad e Elvin Jones, Billy Mitchell, Yusef Lateef e, sobretudo, Donald Byrd, uma espécie de alma gêmea musical. Um cenário absolutamente instigante, perfeito para qualquer jovem músico interessado em aprender e se desenvolver musicalmente.


Seus primeiros trabalhos, como profissional, foram ao lado de Lucky Thompson, mas também acompanhou grandes nomes, de passagem por Detroit, como Lionel Hampton, Sonny Stitt, Milt Jackson (que embora tivesse nascido em Detroit, era mais velho e já estava estabelecido em Nova Iorque), Miles Davis e Wardell Gray. Nessa época, segunda metade da década de 40, Adams já havia trocado o sax tenor pelo barítono, o que ocorreu meio por acaso.


Com efeito, ele havia conseguido um emprego temporário em uma loja de instrumentos musicais, chamada Grinnell’s, que possuía uma oficina onde os instrumentos eram consertados. Um dos empregados que trabalhavam ali era amigo de Adams e mostrou a ele um sax barítono, deixado ali como parte do pagamento de outro instrumento.


Adams experimentou o instrumento, gostou da sonoridade e decidiu levá-lo. Por ser empregado da loja, ganhou um desconto, usou seu salário do mês e mais um valor emprestado por um amigo e adquiriu o vistoso saxofone. Algum tempo depois, conseguiria comprar um novo em folha, da célebre marca Selmer, e, desde então, adicionou Harry Carney e Serge Chaloff ao panteão de influências e não deixou mais de tocar o barítono, tornando-se uma dos seus maiores expoentes.


De 1951 a 1953 esteve no exército, tendo servido na Guerra da Coréia. De volta à vida civil, continuou tocando em clubes de Detroit, como o Bluebird Inn, e participando de gigs na fantástica cena local. Em 1956, graças a uma indicação de Oscar Pettiford, Adams foi convidado a integrar a orquestra de Stan Kenton, mudando-se para Nova Iorque. No final daquele ano a orquestra retornou a Los Angeles, onde gravaria o álbum “Opus In Beige”, para a Contemporary.


Entre os companheiros de Adams na célebre big band estavam Bill Perkins, Pete Candoli, Lennie Niehaus, Charlie Mariano, Richie Kamuca e Mel Lewis. Em 1957, Adams deixou Kenton e se uniu a Shorty Rogers, com quem tocaria por quase um ano, tendo participado do ótimo “Portrait Of Shorty”. Ainda em Los Angeles, o saxofonista atuaria por um breve período com o trompetista canadense Maynard Ferguson e com o baixista Howard Rumsey, além de ter participado das gravações do álbum “The James Dean Story”, de Chet Baker e Bud Shank.


Ainda em 1957, Adams retorna a Nova Iorque e um dos seus primeiros trabalhos foi no álbum “Dakar”, de John Coltrane. Depois vieram trabalhos Lee Morgan, Curtis Fuller e Quincy Jones. Nesse mesmo ano, liderando seu próprio conjunto, Adams gravou álbuns como “The Cool Sound of Pepper Adams”, “Critics’ Choice” e “My One and Only Love”, que lhe renderiam o prémio de New Star daquele ano, concedido pela revista Down Beat.


No ano seguinte, tocou com Benny Goodman e deu início à parceria com o velho amigo de Detroit Donald Byrd, ao lado de quem gravaria uma enormidade de ótimos discos para a Blue Note, até 1961. Em sua discografia, merece destaque o clássico “Ten to Four at the Five Spot”, gravado ao vivo, em 1958, ao lado de Donald Byrd, Doug Watkins, Elvin Jones e Bobby Timmons.


Outra associação prolífica foi com o trombonista Jimmy Knepper, com tocou e gravou com regularidade entre 1958 e 1963. Sem deixar de atuar como músico de estúdio, Adams acompanhou Charles Mingus no seminal “Blues And Roots” e participou das gravações de “Thelonious Monk Orchestra at Town Hall”, ambos de 1959.


Durante os anos 60, a agenda do saxofonista continuou apertada. Afinal, era um dos mais requisitados baritonistas da época e tocava com gente como Freddy Hubbard, Duke Pearson, Joe Williams, Howard McGhee, Aretha Franklin, Red Garland, Oliver Nelson, Bem Webster, Brook Benton, Joe Zawinul, Blue Mitchell, Jimmy Witherspoon, Stanley Turrentine, Lou Donaldson, Esther Phillips, Herbie Mann, Herbie Hancock, Lionel Hampton, Jimmy Forrest, Dakota Staton, Roland Kirk, Jimmy Smith, Carmen McRae, Helen Merrill, Mose Alison, Richard Davis, Toots Thielemans, Hank Jones, Frank Wess, Dizzy Gillespie e muitos outros.


Como se não bastasse, em 1966 integrou-se à orquestra de Thad Jones e Mel Lewis, atração fixa nas segundas-feiras do Village Vanguard e ali permaneceria até 1978. Também foi presença constante nos álbuns de Elvin Jones, gravados entre o final da década de 60 e os primeiros anos da década de 70.


No final daquela década, Adams presenteou o mundo com o extraordinário “Enconuter!”, aquele do ponto de exclamação. Pois bem, falemos agora um pouco mais sobre o álbum que talvez seja o mais importante legado jazzístico de 1968. Secundado por dois velhos amigos, Flanagan e Jones, seus parceiros de gigs em Detroit, Pepper está muito à vontade, fazendo pleno uso de sua técnica arrojada e do seu proverbial vigor, que lhe rendeu o apelido de “The Knife”, pelo som às vezes cortante e agressivo do seu saxofone.


A abertura não poderia ser mais alvissareira. Logo em sua introdução, com frases de Pepper, Zoot e Flanagan se repetindo uma após a outra e cada vez mais complexas, “Inanout”, de autoria do líder, é uma estilosa releitura do blues. Sinuosa e com evocações a Monk, sobretudo na parte final, a faixa ainda traz alguns solos bastante intensos de Jones e uma assistência segura e discreta por parte de Carter.


A reflexiva “Star-Crossed Lovers”, de Duke Ellington e Billy Strayhorn, com seu clima onírico e viajante, recebe do quinteto uma interpretação sutil e despojada. Os saxofones dialogam de maneira bastante delicada, e o sofisticado Flanagan, mestre na execução de baladas, cria uma atmosfera envolvente, costurando a ligação entre os metais e a sessão rítmica com extremo lirismo.


A desenvoltura da banda nos tempos mais acelerados impressiona. Em “Cindy’s Tune” Adams e Zoot duelam o tempo inteiro, alternando suas intervenções ao estilo “pergunta e resposta”, num diálogo esfuziante. O voluntarioso Jones detona a pobre bateria, numa das atuações mais inflamadas do disco. Carter, às vezes criticado por seu academicismo, entra no clima e perpetra um solo descontraído. A irresistível levada bop é uma cortesia de Flanagan, que incorpora o fraseado de Bud Powell e se mostra particularmente inspirado nesse tema.


Composição de Joe Henderson, “Serenity” é uma espécie de pausa para descanso, com seu clima relaxado, onde se destacam o fabuloso solo de Carter e a textura impressionista que Adams imprime ao seu saxofone. O quinteto volta a extrapolar os limites de velocidade em “Elusive”, hard bop de autoria de Thad Jones. Incansável, líder se esmera em solos tecnicamente perfeitos, desafiando o indócil Sims a fazer o mesmo. A percussão de Elvin é uma soberba mistura de energia e ritmo, especialmente com os pratos. Flanagan, sempre muito exigido, é impecável na parte rítmica e altamente criativo em seu solo.


Em “I’ve Just Seen Her”, admiravelmente bem executada, Adams paga tributo ao maestro Duke Ellington, impregnando de lirismo essa lindíssima balada. Atenção para o solo de Flanagan, de uma delicadeza ímpar. Mantendo a atmosfera contemplativa, outra pérola de Henderson, a plácida “Punjab”, é uma balada nada ortodoxa, com ecos de Wayne Shorter. Zoot leva o ouvinte ao Nirvana musical, perpetrando com uma execução e relaxada comovente. O líder e Flanagan, altamente reflexivos, também merecem uma audição mais atenta.


Para finalizar, “Verdandi”, bebop de autoria de Flanagan, traz de volta o clima energético. Uma das faixas de maior volatilidade, que mostra porque Jones é considerado um verdadeiro dínamo – seu esplendoroso solo é o destaque absoluto e dura praticamente metade dos 3min47seg da faixa. Um disco extremamente representativo na carreira de Adams e que merece ser ouvido sempre e sempre. Afinal, 1968 ainda não terminou!


As décadas de 70 e 80 continuaram sendo de muito trabalho para Pepper, que além da participação na Thad Jones/Mel Lewis Orchestra, com quem gravou diversos álbuns, e ainda voltou a trabalhar com Charles Mingus, tendo participado de seus dois últimos discos.


Como líder, gravou alguns álbuns para selos como Enja, Uptown, Muse e Quicksilver, dando espaço para novos músicos, como os pianistas Bess Bonnier e Hod O'Brien, o guitarista Peter Leitch e o trompetista Kenny Wheeler. Nesse período, também participou de álbuns de Lalo Schifrin, Nick Brignola, Frank Foster, George Benson, David Fathead Newman, Hank Crawford e outros.


Pepper Adams morreu no dia 10 de setembro de 1986, em decorrência de um câncer no pulmão. Passou à história como um dos músicos mais originais de todos os tempos, cuja contribuição para a modernização do sax barítono é tão importante quanto a de Serge Chaloff ou de Gerry Mulligan, por exemplo. Seu legado reverbera até hoje, na obra de músicos como Nick Brignola, Ronnie Cuber e James Carter, discípulos confessos do seu estilo.


Sobre ele, nada melhor que as palavras do mestre Luiz Orlando Carneiro: “Adams foi o mais rápido, ágil e contundente dos que sopraram o pesado instrumento no estilo hard bop, enfrentando com sucesso – sem perder a lucidez e a beleza do seu discurso melódico – o registro grave do instrumento com a mesma facilidade com que chegava ao agudo”.


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