UM MÚSICO DE MUITAS PELES
Música e outras coisas

UM MÚSICO DE MUITAS PELES


O compositor, arranjador, multiinstrumentista e educador musical Kenneth Arthur McIntyre nasceu em Boston, Massachusetts, no dia 07 de setembro de 1931. Filho de pais jamaicanos, o contato com a música caribenha sempre lhe foi algo bastante natural, assim como a aptidão com os instrumentos musicais. Embora tenha se dedicado com maior intensidade ao sax alto, ele também tocava com extrema desenvoltura flauta, clarinete baixo, oboé, contrabaixo, bateria e piano.

A aprendizagem musical começou ainda na infância, pelas mãos da afamada Sra. Finegold, com quem estudou piano dos nove aos catorze anos. Na segunda metade dos anos 40, o jovem Ken já era um fiel discípulo de Charlie Parker, a quem teve a honra de assistir ao vivo, em 1948, e o bebop uma espécie de religião pagã, a qual se devotava com raro entusiasmo.

Graças à influência de Bird, decidiu comprar das mãos de um amigo, por suados quarenta e cinco dólares, o primeiro saxofone. Tinha 19 anos e somente então recebeu algumas aulas do saxofonista Rodney Smith. Praticando e estudando de forma obsessiva, McIntyre conseguiu recuperar o tempo perdido e se tornou um saxofonista de enorme capacidade técnica, inventividade e destreza. Após, vieram estudos com outros saxofonistas célebres da região de Boston, como Andrew McGhee, Gigi Gryce e Charlie Mariano. Esteve no exército por cerca de dois anos (entre 1953 e 1954), tendo servido no Japão, e atuou na banda da corporação por algum tempo.

De volta a Boston, retomou os estudos e graduou-se pelo prestigiado Boston Conservatory, em 1958. No ano seguinte, e na mesma instituição, concluiria o mestrado em composição musical. Em 1960 desembarcaria em Nova Iorque, com a experiência de já haver lançado um álbum em seu nome, chamado “Stone Blues”, acompannhado por alguns músicos de sua cidade natal. Nessa época, já estava antenado com a revolução desencadeada por Ornette Coleman e sua música já se orientava para as correntes de vanguarda.

Em sua alentada carreira, McIntyre dividiu os palcos e estúdios com grandes vultos do jazz, como Nat Adderley, Walter Bishop Jr., Joanne Brackeen, Jaki Byard, Ron Carter, Charlie Haden, Richard Harper, Bill Dixon, David Murray, Richard Davis, Sam Jones, Charlie Persip, Art Taylor, Cecil Taylor, Reggie Workman e muitos outros.

Uma de suas parcerias mais importantes foi com outro talentoso multiinstrumentista, o cerebral Eric Dolphy. Eles se conheceram em março de 1960, em uma gig no mítico Minton’s Playhouse. Após a sessão, que incluiu a participação de monstros como Freddie Hubbard e Blue Mitchell, os dois passaram horas conversando e descobriram, além das afinidades musicais, diversos pontos em comum.

Ambos possuíam um profundo interesse pela música negra, incluindo aí o jazz, o blues, a música caribenha e a africana. Além disso, eram politizados e extremamente preocupados com a situação do negro nos Estados Unidos, onde o preconceito e a segregação racial eram elementos muito presentes, sobretudo nos estados do sul. Por fim, eram dois ases em diversos instrumentos e um álbum reunindo talentos tão singulares pareceu uma ótima idéia.

Coube à Prestige fazer com que essa idéia tomasse forma e foi o que aconteceu, poucos meses depois. Produzido por Esmond Edwards e gravado nos estúdios Van Gelder em 28 de junho de 1960, o álbum “Looking Ahead” é um dos momentos mais memoráveis na carreira desses dois músicos tão especiais. McIntyre toca sax alto e flauta e Dolphhy, além desses dois instrumentos, ainda usa o clarinete baixo. Para acompanhá-los, foram recrutados três dos músicos mais experientes da época: o pianista Walter Bishop Jr., o baixista Sam Jones e o baterista Art Taylor.

Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, não se trata de um álbum hermético ou “difícil”. Tampouco possui uma abordagem “vanguardista” ou não ortodoxa do cânone jazzístico. Na verdade, é um disco calcado na tradição bop, com muitas referências à música negra norte-americana, especialmente o blues, os spirituals e o r&b, extremamente bem concebido e executado. Das seis músicas, cinco são de autoria de McIntyre, cujo talento composicional surpreende pela altíssima qualidade.

Na faixa de abertura, “Lautir”, Dolphy usa a flauta e McIntyre, responsável pelo primeiro solo, toca sax alto. É um blues enviesado e complexo, mas a soberba presença de Jones e Taylor não deixa dúvidas sobre o seu pedigree: o Delta do Mississipi está ali em toda a sua inteireza e exuberância. Os solos magníficos de Dolphy e de Bishop também merecem uma audição mais atenta.

Celebrando o eterno ídolo Parker, “Curtsy” honra a tradição bop, com seu discurso harmônico sinuoso. Ambos os líderes tocam o sax alto e os solos são nada menos que primorosos (McIntyre elabora o primeiro deles e Dolphy é o responsável pelo segundo). Excelência técnica aliada a uma dosagem cavalar de energia, com destaque também para a atuação de Taylor, espetacular sob todos os sentidos.

Uma versão irreverente de “They All Laughed”, dos irmãos Gershwin, mostra toda a capacidade improvisativa dos líderes. Ambos usam o sax alto e os instrumentos parecem ganhar vida própria, tamanha a maestria e a criatividade de Dolphy e McIntyre. A ressaltar, a fabulosa atuação de Bishop, que imprime um acento bluesy ao tema.

“Geo’s Tune” é talvez a faixa menos convencional e mais ousada, do ponto de vista harmônico, com expressas citações aos ritmos africanos e uma opulência rítmica que fisga o ouvinte desde o primeiro acorde. Em diversas passagens, a percussão de Taylor assume um caráter tribal e seu solo é intenso e vigoroso. A seu turno, o solo de McIntyre, com o sax alto, é bem-humorado, cheio de efeitos sonoros, evidenciando uma alegria contagiante. Dolphy é uma usina de criatividade e subverte o idioma bop até torná-lo irreconhecível e seu solo está entre os melhores do disco.

“Head Shakin’” é uma viagem espiritual pela tradição do blues, incorporando elementos estilísticos de vanguarda, mas sempre com muito groove. Sam Jones é um baixista de muita pegada, sólido como uma muralha e dono de um swing todo especial. Ele e o versátil Bishop são os mestres de cerimônia deste tour de force, permitindo aos líderes (Dolphy no sax alto e McIntyre na flauta) que se desprendam de qualquer amarra durante os solos vertiginosos. Certamente é a mais notável exibição de virtuosismo do álbum.

Para encerrar, uma valsa nada convencional, “Dianna”, que exala distanciamento e fragilidade. A atmosfera hipnótica é reforçada pelo uso da flauta, por McIntyre, e do clarinete baixo, por Dolphy, e ambos estão fabulosos. A emotividade contida que Bishop extrai do piano é outro ingrediente notável e seu solo é um primor de concisão e objetividade. Por tantos predicados, este é, sem dúvida, um dos melhores discos dos anos 60, inflelizmente muito pouco conhecido, mas que merece ser descoberto e ouvido muitas e muitas vezes.

A partir de meados da década de 60, McIntyre priorizou suas atividades como educador musical e foi professor em diversas escolas e universidades. Em 1971 fundou o primeiro programa de música afro-americana dos Estados Unidos, no New York College, onde trabalhou por quase trinta anos, até se aposentar em 1995. Também ensinou na Fordham University, na Wesleyan University, no Smith College e na New School for Jazz and Contemporary Music. Doutorou-se pela University of Massachusetts, em 1975 e no início dos anos 90 passou algum tempo na Bolívia, trabalhando como professor convidado e artista residente.

O incansável educador também criou, em 1983, a The Contemporary African American Music Organization (CAAMO), instituição dedicada à preservação da memória musical afro-americana e cuja orquestra já se apresentou no prestigioso Carnegie Hall. Em 1991, durante uma excursão à África, resolveu acrescentar Makanda a seu nome, palavra que na língua N’debele significa “muitas peles”. Em 1998, atuou como Embaixador do no Oriente Médio, numa iniciativa conjunta do Kennedy Center e do Departamento de Estado norte-americano.

McIntyre também lançou alguns álbuns, por selos como United Artists, Serene e SteepleChase, tendo atuado durante algum tempo ao lado do pianista Cecil Taylor e integrado a Liberation Music Orchestra de Charlie Haden. Como compositor, seu legado chega a 400 músicas, incluindo trilhas sonoras para o cinema e a TV, abordando não apenas formas de expressão popular, como o jazz e o blues, mas também a música erudita. Integrou diversas instituições ligadas à música e às artes, como a National Endowment for the Arts, a International Association of Jazz Educators e a National Black Music Caucus. Faleceu no dia 13 de junho de 2001, vítima de um enfarto, em sua casa, no Harlem.

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