Tocou com regularidade na banda de Mingus, participando de alguns dos seus mais relevantes trabalhos, como o “Mingus In Wonderland”, “Blues And Roots”, “Mingus Ah-Um” e “Mingus Dinasty”. Também colaborou com certa assiduidade com o pianista Randy Weston, outro músico bastante heterodoxo em suas abordagens e extremamente influenciado pelas sonoridades africanas. Ao mesmo tempo em que atuava como um prolífico sideman, Booker também dava início a uma das mais originais e relevantes discografias dos anos 60, lançando discos primorosos, sobretudo para a Prestige, embora também tenha gravado para a Blue Note, Candid, Savoy e outros selos.
Apesar de se conservar dentro da tradição texana de saxofonistas viris e de muita força física, como Arnett Cobb, Dewey Redman e Illinois Jacquet, Ervin se difere de seus conterrâneos por suas arrojadas concepções harmônicas e por imprimir ao seu fraseado uma carga de emotividade bastante intensa. Entre 1963 e 1965, Ervin presenteou o mundo com a soberba “Tetralogia Book”, composta dos excepcionais “The Freedom Book”, “The Song Book”, “The Blues Book” e “Space Book”, todos gravados para a Prestige.
Assim como Mingus, Booker tem uma enorme reverência pela tradição da música negra norte-americana, mas faz releituras bastante ousadas do blues, dos spirituals e de outras formas antecedentes ao jazz. Por outro lado, embora seja reconhecido pela crítica como um grande inovador, jamais granjeou o mesmo prestígio que um John Coltrane ou um Eric Dolphy (antigo companheiro nos combos de Mingus).
Gravado em 3 de Dezembro de 1963, nos estúdios Van Gelder, “The Freedom Book” se destaca não só por ser o primeiro como, também, por conta da expressiva quantidade de informações musicais manipuladas por Ervin na construção de sua obra tão pessoal. Tradição e vanguarda interagem e se complementam nesse disco atemporal, de sonoridade áspera e rascante, mas ao mesmo tempo lírica e delicada, daí porque ser o título bastante apropriado ao conteúdo do álbum. Secundando o saxofonista, três músicos que também transitam com bastante intimidade entre as abordagens mais tradicionais e as mais contemporâneas do jazz: o pianista Jaki Byard, o baixista Richard Davis e o baterista Alan Dawson, que compõem uma verdadeira trinca de ases.
A faixa de abertura, “A Lunar Tune”, evoca nosso satélite natural, com seu relevo irregular, fraturado, cheio de saliências e cavidades. Uma composição nada linear do líder, a meio caminho entre o hard bop de um Hank Mobley e o avant-garde de um Ornette Coleman – outro representante nada ortodoxo da escola texana – mas com um pé muito bem assentado no blues. O piano de Byard e o saxofone de Ervin dialogam telepaticamente, criando uma atmosfera ao mesmo tempo opulenta e intimista – um blues do século XXI, composto e executado quase quarenta anos antes.
Perturbadoramente bela, “Cry Me Not” é uma não-balada, uma canção cuja aridez lembra a poesia de João Cabral de Melo Neto, emocionante mas completamente avessa ao sentimentalismo vulgar. A composição de Randy Weston, de um lirismo nada convencional, é dissecada pelo quarteto de modo vigoroso, explorando todas as suas possibilidades harmônicas, com destaque para o insinuante piano de Byard. “Grant’s Stand”, também de autoria de Ervin, possui um formato menos heterodoxo, mas ainda assim causa estranheza. O hipnótico baixo de Davis e a caudalosa bateria de Dawson, eficientíssimos, dão o suporte necessário para viabilizar alguns dos mais belos solos do disco, com o líder fazendo discretas citações às tradições musicais do oriente.
A textura oriental também pode ser percebida em “A Day To Mourn” e “Al’s In”, com suas variações climáticas e citações aos spirituals. São composições que, em muitos momentos, se alinham à corrente free, com os músicos fazendo suas incursões de forma aleatória, mas que jamais se afastam completamente das formas mais tradicionais. Em “Al’s In”, Dawson brilha ao perpetrar um solo genial e o saxofone de Ervin, por vezes, lembra o lamento de um muezim, chamando os fiéis para a mesquita. Essa interlocução aparentemente desarticulada entre os instrumentos, vai-se costurando aos poucos, até que, ao final de cada uma das músicas, percebe-se quão coesa é a banda e quão arrojadas são as suas execuções. Na canção mais ortodoxa do disco – e uma das melhores também – o standard “Stella By Starlight” ganha um brilho novo, inscrevendo-se entre as mais emocionantes versões do clássico de Victor Young e Ned Washington.
Ervin permaneceu entre nós por breves 39 anos. No dia 31 de julho de 1970 ele abandonou a existência física, em decorrência de problemas renais, e ascendeu para tomar seu lugar na grande orquestra celestial. Como testemunho de sua passagem, legou-nos alguns dos textos sonoros mais belos do jazz, escritos no magnânimo idioma da genialidade. Um grande artista, que jamais obteve o reconhecimento merecido, mas cuja obra – bela, consistente, seminal e invulgar – clama por ser descoberta pelos jazzófilos. “The Freedom Book” é, certamente, a melhor porta de entrada para uma prazerosa leitura. Atrevamo-nos!
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