O INCONFORMISTA
Música e outras coisas

O INCONFORMISTA



Yusef Lateef não gosta da palavra “jazz” pois, segundo ele, rótulos são sempre muito perigosos e acabam por impor, ainda que inconscientemente, limites à criatividade artística. Daí porque ele nunca se restringiu a estilo ou tendência, embora tenha transitado com absoluta maestria pelas mais diversas correntes do jazz e de outros estilos musicais. Para além da religião islâmica, que abraçou ainda nos anos 50, seu verdadeiro credo é a música e sua profissão de fé é levá-la ao maior número possível de pessoas.

De fato, Lateef sempre foi considerado um músico sem fronteiras. Um espírito inquieto e desprovido de preconceitos, cuja força motriz parece ser desbravar territórios musicais inexplorados. Não é à toa que foi um dos primeiros músicos norte-americanos a despertar para a riqueza rítmico-harmônica da música oriental e inserir elementos de música árabe, indiana e japonesa, por exemplo, na linguagem do jazz.

Também teve uma importância capital na utilização de instrumentos pouco comuns ao idioma jazzístico, como o oboé, o fagote, o argol (espécie de clarinete), o shanai (espécie de oboé), o koto e a flauta de bambu. Como se não bastasse, o talentoso multiintrumentista, compositor, educador musical e arranjador, foi pioneiro na busca por novas sonoridades, apontando, ainda no início da década de 60, os caminhos para aquilo que, a partir dos anos 80, seria conhecido como World Music.

William Emanuel Huddleston, seu nome de batismo, nasceu em Chattanooga, Tennessee, no dia 09 de outubro de 1920. Todavia, em 1925 sua família se mudou para Detroit, cidade que lhe despertou o interesse pela música. Em 1932, após a separação dos pais, o jovem William foi morar com o pai em um apartamento próximo ao Arcadia Cinema onde, nas noites de sábado, aconteciam animados bailes, movidos ao som do swing. Ouvir a pulsação dos grupos e orquestras que se apresentavam ali foi uma experiência mágica, que definiu o destino do garoto. Logo em seguida, ele começaria o aprendizado musical.

O primeiro instrumento desejado pelo garoto foi um trompete, mas foi desencorajado pelo pai. Decidiu-se pelo saxofone e seu pai lhe propôs um trato: pagaria metade do valor do instrumento. O garoto passou a vender jornais e a economizar cada centavo, para realizar o sonho de possuir um instrumento. Quando conseguiu juntar 40 dólares, seu pai foi a uma loja de instrumentos musicais e cumpriu a promessa: comprou-lhe, por 80 dólares, um reluzente sax alto Martin.

Aos 20 anos de idade, após concluir o ensino médio e já casado com Sadie Harper, Lateef começou a carreira profissional, tocando no grupo de Amos Woodward, atração fixa do clube Ace High. Também costumava acompanhar cantores de blues como Wynonie Harris. A educação musical era levada a sério, com aulas no Detroit Conservatory of Music, pelas mãos de professores renomados, como Alvin Walls e Teddy Buckner. No início dos anos 40, influenciado por Coleman Hawkins e sua sonoridade robusta, trocou o sax alto pelo tenor.

Em pouco tempo, já se destacava na prodigiosa cena local, onde então pontuavam nomes como Milt Jackson, Hank Jones,Tommy Flanagan, Lucky Thompson e Matthew Rucker. Posteriormente, outros grandes nomes do jazz iriam despontar na Cidade dos Motores e muitos deles tiveram a sua primeira chance profissional em grupos liderados por Lateef, como Barry Harris, Paul Chambers, Donald Byrd, os irmãos Thad e Elvin Jones, Curtis Fuller, Kenny Burrell, Doug Watkins e inúmeros outros.

Durante toda a década de 40, Lateef acompanhou ou integrou grupos e orquestras de gente como Hartley Toots, Hot Lips Page, Roy Eldridge, George Hall, Herbie Fields e Lucky Millinder. Entre 1946 e 1947 morou em Chicago, onde tocou no grupo do baixista Eugene Wright (futuro membro do quarteto de Dave Brubeck), chamado “The Dukes of Swing”. A seu lado, um pianista de temperamento extrovertido e idéias musicais arrojadas, chamado Herman “Sonny” Blount, que passaria à historia como o inclassificável Sun Ra. Em 1949, veio a grande chance de sua carreira: foi convidado por ninguém menos que Dizzy Gillespie para excursionar com sua orquestra, substituindo James Moody.

Dono de uma técnica invejável e profundo conhecedor de todas as vertentes da música afro-americanas, como o blues, o R&B, o gospel e os spirituals, Yusef não demorou muito tempo para firmar seu nome entre os mais disputados músicos da época. Ademais, o trabalho com Dizzy permitiu-lhe conviver diretamente com outros grandes músicos que ali atuavam, como J. J. Johnson, Al McKibbon, Milt Jackson, Ray Brown, Kenny Clarke, Chano Pozo, Johnny Hartman, Sabu Martinez e muitos outros.

No ano seguinte, desligou-se da orquestra de Gillespie e, após tocar algum tempo com Art Blakey, retornou a Detroit, disposto a retomar os estudos musicais. Dois fatos extremamente relevantes ocorreram naquele ano: a conversão ao islamismo, que implicou na adoção do nome islâmico Yusef Abdul Lateef, eis que até então ele usava o nome artístico de William Evans, e o ingresso na Wayne State University, onde estudaria flauta e composição. Também data do início dos anos 50 o interesse pelo oboé, tendo recebido as primeiras lições de Ronald Odemark, músico que integrava a Detroit Symphony Orchestra.

Para dar conta das despesas do lar, arranjou um emprego como operário da Chrysler, ao mesmo tempo em que acompanhava figuras importantes do blues, como T-Bone Walker e Clarence Gatemouth Brown. Além disso, o incansável Lateef ainda encontrava tempo para estudar teoria musical, desta feita na Larry Teal’s School of Music. Ufa!

Apesar da rotina extenuante, tendo que conciliar o trabalho na fábrica com os estudos e a atuação como músico freelancer, Lateef conseguiu imprimir ainda maior dinamismo à carreira solo, criando seus próprios conjuntos e firmando-se como referência de primeira grandeza no cenário jazzístico de Detroit. Alguns de seus mais constantes parceiros, durante os anos 50, foram o trombonista Curtis Fuller, o pianista Hugh Lawson, o baterista Louis Hayes e o trompetista Wilbur Harden. Em 1956 começou a gravar seus próprios álbuns como líder, para selos como Savoy, Riverside, New Jazz, Prestige, Contemporary, Impulse e Atlantic.

Um dos melhores momentos dessa discografia é o fabuloso “Cry! –Tender”, gravado no dia 16 de outubro de 1959, nos estúdios Van Gelder, e lançado pela Prestige. À frente de um quinteto que incluía o trompetista Lonnie Hillyer, o pianista Hugh Lawson, o baixista Herman Wright e o baterista Frank Gant, Lateef utiliza, pela primeira vez em estúdio, o oboé, instrumento que já vinha sendo usado por ele em concertos ao vivo.

A atmosfera do disco é bastante reflexiva e sua sonoridade reflete a influência dos ritmos orientais, sem jamais resvalar no exotismo vulgar. Ao contrário, todas as execuções primam pelo mais elevado bom gosto, da primeira à última faixa. E a primeira é uma versão hipnótica de “Sea Breeze”, de Al Hoffman e Dick Manning, que mescla a sensualidade do oriente com a malemolência do bolero, com um resultado belíssimo. Munido do oboé, o líder cria um clima de encanto e mistério que fascina o ouvinte.

“Cry! – Tender” é, na própria definição de Lateef, um poema tonal, feito após uma visita ao hospital, onde sua esposa estava internada. A composição expressa, a um só tempo, angústia, sofrimento e esperança e essa dicotomia se revela pelo uso do oboé e do sax tenor. Hillyer, então com 20 anos, entrega um dos mais belos solos do álbum, de um lirismo enternecedor. Destaque também para a atuação de Lawson, que acentua as notas graves para criar uma maior tensão e reforçar a intensidade dos sentimentos do líder. Um tema desafiador, mas nunca hermético.

“Dopolous”, baseada no folclore grego, tem uma introdução sombria, feita por Wright, que usa tanto o arco quanto o pizzicato. A flauta é o instrumento utilizado por Lateef, autor do tema, que a emprega com maestria, criando um clima de mistério e espiritualidade. As discretas intervenções de Gant e Lawson ajudam a compor a atmosfera envolvente e lírica.

"Butter's Blues” tem uma estrutura bop mais ortodoxa, mas ainda assim traz inovações, como a bela introdução em ritmo de valsa. Os solos de Wright, Hillyer e Gant, são muito bem construídos e instigantes, mas é o líder, com o seu majestoso sax tenor, quem merece o maior destaque. Sua atuação é nada menos que soberba, uma lição de criatividade, destreza e arrojo capaz de impressionar até o mais experimentado dos ouvintes.

Quando se pensa que um standard gravado centenas de vezes não pode apresentar mais nenhuma aspecto surpreendente, Lateef e seus homens perpetram uma sensacional versão de “Yesterdays”. Novamente com o oboé, o líder é o responsável pela introdução quase etérea, que, aos poucos, dá lugar a uma interpretação bop de excelente cepa. O carismático Hillyer extravasa toda a sua habilidade técnica, elaborando um solo complexo e muito imaginativo.

Bebop de primeira linha também pode ser encontrado em “The Snow Is Green”, com suas linhas sinuosas e quase abstratas. Grandes atuações de Lawson, sempre bastante hábil e criativo, e de Wright que, com seu baixo pululante. O sax tenor de Lateef é inquieto e efusivo, com frases que remetem a outro gigante, Sonny Rollins. A lamentar apenas a curta duração da faixa, com seus pouco mais de três minutos.

Outro momento mágico é a interpretação que o quinteto faz de “If You Could See Me Now”, na qual o tenor de Lateef transborda lirismo e sensualidade. Uma das baladas mais classudas da história do jazz, a composição de Tadd Dameron ganha um arranjo que realça suas qualidades. Piano e saxofone dialogam com elegância superior e Hilyer comete um solo primoroso.

O disco encerra com a deliciosa “Ecaps”, faixa bônus onde a banda que acompanha Lateef é a seguinte: Hugh Lawson no piano, Wilbur Harden no flugelhorn, Ernie Farrow no baixo e Oliver Jackson na bateria. Bebop de elevada temperatura, com um pé no R&B, que nada fica a dever às demais faixas do disco. Harden e Lawson, precisos e nada econômicos, fazem miséria em seus respectivos instrumentos e o líder, outra vez com o tenor, mostra porque é um dos maiores nomes da história do jazz.

Um álbum extraordinário, certamente o mais sofisticado de toda a extensa obra de Lateef e que serviu como ponto de partida para o incensado “Eastern Sounds”, de 1961, provavelmente sua obra mais conhecida. Se a mistura de jazz com música oriental lhe agrada, este disco se casa à perfeição com o seu gosto. Se essa mistura lhe desagrada, este disco certamente irá fazê-lo mudar de opinião.

No mesmo ano, Lateef se estabeleceria em Nova Iorque, tendo causado uma ótima impressão na fervilhante cena jazzística local, não apenas pela excelência de suas habilidades, como, sobretudo, pela capacidade para manejar, virtualmente, qualquer instrumento de sopro, incluindo alguns considerados exóticos ou mesmo alheios ao jazz. Em seus discos, a presença de elementos multiculturais é sempre muito intensa, chegando a provocar reações furiosas de alguns puristas. Por outro lado, o seu mergulho na sonoridade oriental influenciou ninguém menos que John Coltrane e a música profundamente espiritualizada que este faria a partir do início da década de 60, especialmente em sua fase na Impulse.

No início da década seguinte, apesar de haver integrado os conjuntos de Charles Mingus, Donald Byrd e Cannonball Adderley, não deixou de gravar e excursionar com seus próprios combos. Não obstante, além da carreira solo, continuou a ser um requisitado acompanhante, gravando com músicos do quilate de Doug Watkins, Miles Davis, Babatunde Olatunji, Clark Terry, Randy Weston, Grant Green, Freddie Hubbard, Art Blakey, Buddy DeFranco e muitos outros. No final da década, gravou alguns álbuns bastante impregnados de funk, soul e R&B, como “The Blue Yusef Lateef” e “Yusef Lateef Detroit’s”, que tiveram boas vendagens mas, novamente, receberam críticas acerbas por parte dos puristas.

Lateef resolveu dar continuidade aos estudos na reputada Manhattan School of Music, onde graduou-se em Teoria Musical em 1969, concluindo o mestrado em Educação Musical no ano seguinte. Em 1975 doutorou-se em Educação pela University of Massachusetts, e a sua dissertação,“An Overview of Western and Islamic Education”, é considerada obra de referência. Na área de teoria musical, destacam-se as obras “Yusef Lateef's Flute Book of the Blues”, “A Repository of Melodic Scales and Patterns” e “123 Duets for Treble Clef Instruments”.

Em 1972 começou a ensinar no Manhattan Community College, onde foi professor de futuros astros do jazz e da música pop, como o pianista Kenny Barron e o cantor Donny Hathaway. Também lecionaria em outras instituições renomadas, como na University of Massachusetts (onde foi admitido em 1987 e tinha como colegas de cátedra luminares como Max Roach e Archie Shepp), no Smith College, no Amherst College e no Hampshire College. Atuaram em seus grupos dos anos 60 e 70 músicos de primeira linha, como Kenny Barron, Albert Heath, Roy Brooks, Ernie Farrell, Cecil McBee, Bob Cunningham, Adam Rudolph, Charles Moore, Ray Barretto, Eric Gale, Richard Tee, Joe Zawinul, Ray Bryant e muitos outros.

Suas composições na área da música erudita, que incluem suítes orquestrais, sinfonias, concertos para piano e para instrumentos de sopro, foram interpretadas por orquestras de prestígio, tanto nos Estados Unidos, como a Atlanta Symphony Orchestra, a Detroit Symphony Orchestras, a Symphony of the New World e a New Century Playersquanto na Europa, como a WDR Radio Orchestra, da Alemanha. Em 1987 o disco “Yusef Lateef’s Little Symphony” recebeu o Grammy de melhor álbum na categoria “New Age”.

Nos anos 80 residiu em Zaria, na Nigéria, lecionando no Centro de Estudos Culturais Nigerianos, ligado à Universidade Ahmadu Bello, como professor convidado. Na década seguinte, direcionou seu interesse ao free jazz, tendo trabalhado com alguns dos expoentes do estilo, como os saxofonistas Archie Shepp e Von Freeman. Em 1992 criou o seu próprio selo, o YAL Records, por onde tem lançado seus discos, e uma editora, a Fana Music.

Lateef também é escritor, tendo publicado diversos romances e coletâneas de contos, como “A Night in the Garden of Love”, “Another Avenue” e “Rain Shapes”, boa parte deles lançados por sua própria editora. Também escreveu a sua autobiografia, chamada “The Gentle Giant”, em parceria com o jornalista Herb Boyd. Além da literatura, dedicou-se nos últimos anos à pintura e seus quadros estão expostos em diversas galerias dos Estados Unidos. Em 2007 foi eleito “Artista do Ano” pela University of Massachusetts e em 2010 recebeu o título de Jazz Master pela National Endowment for the Arts – NEA. Apesar da idade, Lateef se mantém ativo e continua a se apresentar em concertos e festivais pelo mundo, exibindo, às vésperas dos seus 90 anos, uma vitalidade e uma disposição invejáveis.

=================================




loading...

- The Last Trip To San Francisco
Meade Lux Lewis, Chu Berry, Richie Powell, Clifford Brown, Eddie Costa, Scott La Faro, Stan Haaselgard, Bob Berg. Um laço comum une todos esses grandes músicos, além do extraordinário talento de cada um deles: todos morreram cedo demais, em decorrência...

- Um Petardo Sonoro Chamado Curtis Fuller
Curtis DuBois Fuller é considerado pela crítica especializada o trombonista mais importante do hard bop, com relevância comparável à que teve J. J. Johnson (uma de suas mais significativas influências, ao lado de Jimmy Cleveland e Urbie Green)...

- Sonoridades Diversas, Conjunto Perfeito
Rob Mazurek permitiu que nosso ano musical tivesse início em grande estilo. Ao reunir um sexteto improvável no palco do Sesc para duas apresentações nesse fim de semana, com uma seleção que dificilmente se repetirá, o trompetista de Chicago conseguiu...

- Quem Tocará Com Mr. Lateef
Agora sim é oficial. Nosso amigo Thiago Miotto, do Sonora Aurora, arrumou o material de divulgação no qual estão estampados os nomes do pessoal que subirá ao palco com Yusef Lateef. Nada de Drake. Mas Parker está lá. ps: vender Yusef Lateef como...

- William Parker E Hamid Drake Em Sp?
Em resposta à indagação feita aqui sobre quem irá acompanhar Yusef Lateef nos shows no Sesc, em fevereiro, começam a surgir algumas informações preciosíssimas. Segundo nosso amigo J. S., é o trompetista Rob Mazurek, que trouxe Pharoah Sanders...



Música e outras coisas








.