Música e outras coisas
A PERCUSSÃO CAVALHEIRESCA DE ROY HAYNES
Roy Haynes é um perfeito cavalheiro e um dos músicos mais elegantes que o jazz já produziu – em todos os sentidos. Sempre envergando ternos bem cortados, que o fizeram ser considerado pela revista Esquire um dos homens mais bem vestidos do show business, o baterista consegue extrair do seu instrumento uma sonoridade de pura classe, bastante parecida com a sua forma de se trajar. Esse mestre da percussão se destaca por ser sutil em um ambiente que, aparentemente, valoriza muito mais o vigor físico que a delicadeza. Daí porque bateristas de execução mais robusta, como Art Blakey ou Elvin Jones, possuem uma popularidade consideravelmente maior que a de Haynes.
A bem da verdade factual, três coisas precisam ser ditas. A primeira é que tanto Jones quanto Blakey também sabiam imprimir à sua forma de tocar uma classe e uma sutileza dignas de um Connie Key, um dos grandes mestres da arte de tocar bateria como se acariciasse a pele da mulher amada. A segunda é que nunca faltaram a Haynes os predicados técnicos necessários para equipará-lo aos três gigantes anteriormente mencionados. A terceira é que o versátil Roy também era capaz de emular um dínamo de altíssima potência e detonar, sem remorso, os couros de sua bateria.
Roy Owen Haynes nasceu em 13 de maio de 1925, em Roxbury, distrito de Boston, Massachusetts. Começou a tocar bateria ainda durante a adolescência, em Boston. Em 1945 já era profissional, tendo se mudado para Nova Iorque, onde se apresentava regularmente com Luis Russo, na orquestra do Savoy Ballroom. Ao mesmo tempo, era um assíduo freqüentador das jams sessions da Rua 52, firmando, assim, seu nome entre os exigentes integrantes da cena musical da Big Apple. De 1945 até os dias de hoje, Haynes tocou, virtualmente, com todos os grandes nomes do jazz.
O currículo do baterista é impressionante. Dentre os músicos com quem tocou, estão Louis Armstrong, Lester Young, Charlie Parker, Bud Powell, Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Lee Konitz, Kenny Burrell, Miles Davis, Stan Getz, Kai Winding, Andrew Hill, Wardell Gray, Lennie Tristano, Art Pepper, Chick Corea, Phineas Newborn Jr., Sonny Rollins, John Lewis, Eric Dolphy, John Coltrane, Gerry Mulligan, Jackie McLean, Duke Jordan, entre uma infinidade de outros. Sua discografia como líder é relativamente pequena, com cerca de trinta álbuns em mais de sessenta anos de carreira, mas excepcional do ponto de vista qualitativo, incluindo os antológicos “Just Us” e “We Three”.
Sua proverbial criatividade o tornava apto a transitar entre os mais diversos formatos – de pequenos combos a big bands – com extrema naturalidade. Também se sentia bastante confortável em qualquer contexto jazzístico, indo sem nenhuma dificuldade do swing ao hard bop e do bebop ao free. Uma excelente demonstração da inventividade de Haynes e de sua capacidade de se adequar a qualquer escola é o extraordinário “Out Of The Afternoon”, considerado um dos mais relevantes de sua carreira. A banda que o acompanha é bastante heterogênea e, por isso mesmo, deveras estimulante.
No piano, um músico tão elegante e versátil quanto o líder, o sempre ótimo Tommy Flanagan, cujo fraseado lírico e altamente melódico lhe valeu o apelido de “The Jazz Poet”. No contrabaixo, o habilidoso Henry Grimes, mais conhecido por sua colaboração com músicos ligados à vanguarda. No sax tenor, flauta, manzello (sax soprano de origem espanhola) e stritch (uma espécie de sax alto), o inclassificável Rahsaan Roland Kirk, o homem para quem tocar dois ou três instrumentos simultaneamente era algo tão natural quanto o ato de respirar. O quarteto se reuniu nos dias 16 e 23 de maio de 1962, nos estúdios Van Gelder, para gravar um dos melhores álbuns do catálogo da Impulse, que traz no repertório sete músicas, sendo três composições do líder e quatro standards.
A primeira delas é “Moon Ray”, antiga canção de Artie Shaw, na qual Kirk toca o manzello e o sax tenor com igual desenvoltura. Flanagan presenteia o ouvinte com um solo magistral. O trabalho do baterista e do baixista é notável, travando um diálogo arrebatador e, dessa forma, auxiliando a criar um clima de blues nada convencional. O quarteto subverte a clássica “Fly Me To The Moon”, de Bart Howard, transformando-a em valsa-bop de elevada combustão, com um impressionante discurso de Kirk, que distorce a melodia até torná-la irreconhecível.
“Raoul” é um hard bop com textura latina, evocando trabalhos de semelhante natureza gravados por Art Blakey – inclusive no tocante ao impressionante solo do líder. O piano de Flanagan adota um fraseado que conjuga agilidade e leveza e Grimes usa o arco para executar um dos melhores solos do disco. Em outra composição do líder, “Snap Cracker” (apelido que lhe foi dado por Al McKibbon), quem reina absoluto é o Roland Kirk, que usa simplesmente todo o seu arsenal: sax tenor, flauta, manzello e stritch. A sessão rítmica, por óbvio, sustenta com maestria as intrincados e convulsivas harmonias do saxofonista.
No talvez melhor momento do álbum, uma versão irreverente de “If I should Loose You”, onde Kirk, sempre ele, faz gato e sapato da melodia original. Flanagan faz com que o seu piano, etéreo, baile o tempo todo, enquanto Grimes e Haynes se desdobram para manter intacta a estrutura harmônica. Baixista e baterista também têm espaço para perpetrar solos magnificamente bem construídos. Na desconcertante “Long Wharf”, um bebop sinuoso, o compositor Haynes comete outro solo simplesmente antológico, com igual destaque para Grimes, que mais uma vez usa o arco. Fechando o disco em altíssimo estilo, a balada “Some Other Spring” merece um arranjo extraordinário, que realça toda a beleza da melodia. O piano de Flanagan é só doçura e o sopro de Kirk, mais contido que nas demais faixas, é simplesmente sublime.
No esplendor dos seus muito bem vividos 84 anos, Haynes continua em plena atividade. Em 1994 foi agraciado com o título de Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras, um dos mais prestigiosos da França e em 2004 foi eternizado no Down Beat Hall of Fame. Em 2000, lançou o excepcional “The Roy Haynes Trio Featuring Danilo Perez & John Pattitucci”, acompanhado de dois dos músicos mais completos da nova geração. Em 2001 foi a vez do elogiado “Birds Of A Feather”, ao lado de Roy Hargrove, Dave Holland e Kenny Garrett, e em 2004 o emblemático “Fountain Of Youth”, cuja água o baterista parece ter bebido em boa quantidade.
Ele também é figurinha fácil em festivais de jazz do mundo inteiro, nos quais é, invariavelmente, aclamado de maneira efusiva. Carismático, inventivo e elegante, Roy Haynes é um músico superlativo, pertencente à especialíssima estirpe daqueles que não fizeram outra coisa na vida a não ser dignificar o jazz. No caso dele, sempre a bordo de ternos muito bem cortados e de gravatas sempre muito bem escolhidas.
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PS.: Post dedicado ao amigo André Tandeta, confesso discípulo de Haynes, cujo talento pode ser conferido no indispensável “Uma guitarra no Tom”, ao lado dos grandes Victor Biglione e Sérgio Barrozo.
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