Meade Lux Lewis, Chu Berry, Richie Powell, Clifford Brown, Eddie Costa, Scott La Faro, Stan Haaselgard, Bob Berg. Um laço comum une todos esses grandes músicos, além do extraordinário talento de cada um deles: todos morreram cedo demais, em decorrência de acidentes automobilísticos, deixando o jazz mais triste e mais pobre. Outro grande músico a perder a vida nas estradas americanas foi o contrabaixista Doug Watkins. Tinha apenas 27 anos e se firmava como um dos mais soberbos acompanhantes da época.
Mais um excepcional hardbopper de Detroit, Doug Watkins nasceu no dia 02 de março de 1934. Seus estudos musicais se iniciaram na Cass Tech High School e entre seus colegas de turma estavam Paul Chambers (seu primo) e Donald Byrd, dois dos maiores nomes do jazz. Aos 16 anos, estudou com o professor Gaston Brohan, ao tempo em que ensaiava os primeiros passos no mundo do jazz, participando de annimadas sessões nos clubes e casas noturnas da cidade. Suas primeiras influências foram Slam Stewart, Ray Brown e Percy Heath.
Suas primeiras gigs como profissional foram ao lado do pianista Barry Harris. Em 1953, uniu-se à banda de James Moody para uma excursão, deixando por algum tempo a cidade natal. Retornou no ano seguinte, para se juntar novamente ao amigo Barry Harris e nesse período, acompanhou diversos músicos em visita a Detroit, como Stan Getz, Charlie Parker e Coleman Hawkins.
Ainda em 1954, mudou-se para Nova Iorque, onde tocou com Tommy Flanagan, Billy Taylor, Gene Ammons, Dizzy Reece, Herbie Mann, Kenny Burrell, John Coltrane, Chet Baker, Billy Taylor, Donald Byrd, Frank Wess, Jimmy Raney, Big Joe Turner, Art Farmer, Mal Waldron, Tal Farlow, Jackie McLean, Milt Jackson, Roland Kirk, Curtis Fuller, Hank Mobley, Benny Golson, Lee Morgan, Tina Brooks, Phil Woods, Louis Smith, Pepper Adams e muitos outros.
Era um dos mais requisitados músicos de estúdio do período, registrando cerca de 350 participações em gravações, como sideman, especialmente para a Prestige, a Blue Note e a Riverside. Dentre os álbuns mais importantes em que atuou, destaque para o seminal “Saxophone Colossus”, de Sonny Rollins. Entre 1955 e 1956, integrou uma das primeiras formações dos Jazz Messengers, ao lado de Art Blakey, Horace Silver, Hank Mobley e Kenny Dorham e participou de dois álbuns antológicos da banda: “At The Café Bohemia” (Blue Note, 1955) e “The Jazz Messengers” (Columbia, de 1956).
Desligou-se da banda e uniu-se ao ex-parceiro Horace Silver, quando este criou o seu célebre quinteto, em 1956. O pianista conta que ele e Watkins, caretas assumidos, deixaram os Messengers porque estavam cansados das incursões da polícia nos bastidores dos shows e nos quartos dos hotéis em que se hospedavam, já que Dorham, Mobley e o líder Blakey eram malucaços de carteirinha. Naquele mesmo ano, o baixista lançaria, pela Transition, um dos seus dois únicos álbuns como líder: “Watkins At Large”
Em 1958 tocou regularmente com Donald Byrd, seu amigo desde os tempos de escola, e com ele excursionou à Europa. O grupo, que incluía o saxofonista Bobby Jaspar, o pianista Walter Davis Jr. e o baterista Art Taylor, tocou em diversos festivais no Velho Continente e gravou dois discos em Paris (“Byrd In Paris” e “Parisian Thoroughfare”, ambbos palo selo francês Gitanes). Na época, Watkins chegou a gravar com o pianista francês George Arvanitas.
No ano seguinte, integrou o trio de Red Garland, com quem gravaria o álbum “Stretching Out”. Músico versátil e altamente criativo, também tocava violoncelo e mantinha com os instrumentos uma relação quase orgânica, sendo bastante comparado a seu primo Paul Chambers, por conta de sua execução vigorosa e do seu fraseado robusto. Não por acaso, foi o escolhido por Charles Mingus para tocar em sua banda, em 1961, quando o gigantesco contrabaixista optou, temporariamente, pelo piano. Watkins atuou no explosivo “Oh Yeah!”, um dos discos mais complexos e intrigantes de Mingus.
Antes disso, Doug havia entrado no estúdio para gravar aquele que seria o seu segundo álbum como líder, intitulado “Soulnik”. As gravações, feitas para a Prestige sob a supervisão de Esmond Edwards, foram feitas nos Estúdios Van Gelder, no dia 17 de maio de 1960. Ao seu lado, três velhos companheiros das gigs em Detroit: Yusef Lateef na flauta e no oboé, Hugh Lawson no piano e Herman Wright no contrabaixo. Completa o quinteto o baterista Lex Humphies. Antes que o leitor imagine que a sessão contou com dois contrabaixos, uma explicação.
Tal como fizeram antes dele Harry Babasin, Ray Brown e Oscar Pettiford – e como faria Ron Carter depois – Doug Watkins também se arriscava no violoncelo. Reza a lenda que ele tocou o instrumento pela primeira vez apenas três dias antes da gravação. Se esse fato é verdadeiro ou não, o certo é que o resultado é saborosíssimo. Com o baixo fazendo apenas a parte rítmica, Watkins fica livre para demonstrar a sua recém adquirida intimidade com o cello. E que intimidade! Parece que músico e instrumento foram feitos um para o outro.
Sem fazer uso do arco, Doug dedilha as cordas do seu instrumento com tamanha entrega e doçura, que é difícil imaginar que ele não tenha deixado outros registros ao violoncelo. A abertura do álbum fica a cargo de “One Guy”, de Lateef. Flauta e cello dialogam em uníssono, para em seguida o som macio de Watkins dominar a cena por quase um minuto. A interação entre contrabaixo, piano e bateria é perfeita, assim como os solos de Lateef e Lawson, este último completamente encharcado de blues.
O velho standard “Confessin’ (That I Love You)” recebe tratamento privilegiado, com Watkins fazendo a belíssima introdução. Lateef é, sem dúvida alguma, uma das vozes mais originais do jazz em qualquer época e sua abordagem – seja com a flauta (que usa nesta faixa), seja com o oboé – é sempre estimulante. O líder ainda elabora dois ótimos solos, todos bastante entusiasmados.
Mais uma composição de Lateef, “Soulnik” é um blues em tempo médio, no qual o autor usa o oboé, com resultados que extrapolam o meramente satisfatório. Além de ser um instrumento pouco usado no jazz, o oboé remete o ouvinte a eventos misteriosos, como segredos sussurrados em uma abadia quase deserta. Lawson é blues puro e Humphries demonstra enorme habilidade com as escovinhas. Interessante perceber, durante o solo de Wright, como a sonoridade do contrabaixo é distinta da do cello – aquela é muito mais grave e encorpada.
A introdução que Watkins elabora em “Andre’s Bag”, de sua autoria, é um dos momentos mais sublimes do álbum. Há algo de música medieval e de música flamenca em seu toque, realçado pela percussão minimalista de Humphries e pelo piano quase fantasmagórico de Lawson. O clima, inicialmente sombrio, vai se transformando à medida em que os outros instrumentos vão se agregando, com destaque para a presença inebriante de Lateef e para o solo de Humphries, já na parte final do tema.
Dois outros standards complementam o set: “I Remember You”, cuja acelerada versão é assentada no idioma bop, e “Imagination”, única balada do álbum. Em ambas, Lateef usa a flauta com a habitual exuberância e o cello do líder é o destaque absoluto. Um disco impecável, feito com extrema sensibilidade e bom gosto.
Watkins faleceu no dia 05 de fevereiro de 1962, em Holbrock, Arizona, em virtude de um acidente automobilístico, quando viajava para San Francisco, a fim de tocar com Elmo Hope e Philly Joe Jones. O baixista dirigia o carro quando, provavelmente, dormiu ao volante e perdeu o controle da direção, chocando-se com um caminhão que vinha na direção oposta. No carro estavam o saxofonista Roland Alexander e o trompetista Bill Hardman, que felizmente escaparam ilesos.
No entanto, o jazz perdeu um de seus mais perfeitos acompanhantes, sobre quem Mark Gardner escreveu: “Outro dom que Watkins possuía era a habilidade de tocar exatamente a nota certa de um determinado acorde, a fim de acompanhar o solista. Ele jamais impunha obstáculos àquilo que o solista estava executando”.
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