Música e outras coisas
OS PRIMÓRDIOS DA BOSSA NOVA E O LEGADO DE JOHNNY ALF (um texto de José Domingos Raffaelli)
Como todas as artes, a bossa nova tem uma pré-história cujos principais precursores nos anos 40 foram o violonista Garoto, tocando harmonizações alteradas e dissonantes, o pianista Dick Farney e o compositor Custódio Mesquita, cujos maiores sucessos são dois fox-trots ao melhor estilo americano ("Mulher" e "Nada Além"). O conjunto Os Cariocas inovou a forma de cantar dos conjuntos vocais nacionais com harmonizações ousadas assimiladas dos grupos vocais americanos.
Os anos 50 revelaram músicos e compositores influenciados por jazz que introduziram novidades melódico-harmônicas, principalmente o pioneiro pianista e compositor Johnny Alf. Suas atuações no bar do Hotel Plaza, no Rio de Janeiro, em 1953/54, atraiam a atenção dos jovens músicos e cantores que, cativados por suas inovações, iam ouvi-lo todas as noites, entre eles João Gilberto, Candinho (violão), Luiz Bonfá (violão e compositor), Aurino Ferreira (saxofonista), João Donato (pianista, acordeonista e compositor), Bebeto Castilho e Manuel Gusmão (baixistas), Sylvia Telles, Claudete Soares e Alaíde Costa (cantoras), Luiz Eça (pianista) e Lucio Alves (cantor).
A influência de Alf mudou os rumos da música brasileira com suas composições rebuscadas, harmonicamente ousadas e sentido melódico de beleza invulgar. Foi um passo gigantesco para a renovação da linguagem que germinou a semente da bossa nova. Alf era o centro das atenções dos jovens. Um deles, o pianista-compositor Antonio Carlos Jobim, que seria outro artífice da bossa nova, fascinado pelas harmonizações de Alf, aprendeu com ele os segredos da sua concepção harmônica.
Com a gravação do clássico "Rapaz de Bem", que mudou a concepção melódico-harmônica da música popular brasileira, Alf apontava os rumos a seguir, sendo considerado o pai espiritual da bossa nova. Algumas das suas obras-primas, além de "Rapaz de Bem", são "Ilusão a Toa", "Céu e Mar", "Fim de Semana em Eldorado", Disa (outra maravilha que ficou esquecida na poeira do tempo), "O Que é Amar" e a seminal "Eu e a Brisa", provavelmente a maior de todas suas geniais obras.
Outra influência decisiva para o nascimento da bossa nova foi o disco "Brazilliance", do violonista Laurindo Almeida e o saxofonista Bud Shank, realizando uma inédita fusão de jazz com música brasileira, causando sensação pelas audaciosas improvisações de Shank, provando ser possível improvisar sobre temas brasileiros, algo inimaginável na época. Na época, um grande saxofonista brasileiro declarou solenemente "ser impossível improvisar sobre música brasileira"...
O violonista e compositor Luiz Bonfá deu sua contribuição ganhando fama internacional com "Manhã de Carnaval", carro-chefe da trilha do filme Orfeu do Carnaval, e "Samba de Orfeu". Outras obras suas de realce são "Menina Flor", "The Gentle Rain", "Saudade Vem Correndo" e "Mania de Maria".
Nos idos de 1956/57, João Gilberto ouvia exaustivamente o disco “Chet Baker Sings” numa cabine da lendária Lojas Murray. Impressionado pelo estilo coloquial de Baker, João mudou radicalmente sua maneira de cantar, deixando de imitar Orlando Silva para adotar o estilo vocal de Baker, transformando-se no maior ícone da bossa nova ao lado de Antonio Carlos Jobim. Sua batida de violão originou a característica rítmica essencial da bossa nova. Mundialmente famoso, João Gilberto continua cantando com grande sucesso em todo o mundo.
Outro notável talento foi João Donato, cujo estilo original influenciado pelo jazz é evidenciado em "Minha Saudade", "Silk Stop", "Até Quem Sabe" e "A Rã". Ele radicou-se em Los Angeles em 1959, onde morou até 1973, gravando e tocando com músicos de jazz e latinos. Donato continua em franca atividade, gravando e bastante requisitado para turnês nos Estados Unidos, Europa e Japão.
Historicamente, em 1958 coube à cantora Elizeth Cardoso gravar o primeiro disco de bossa nova: "Canção do Amor Demais", com participação de João Gilberto no violão. A essa altura, começava a frutífera parceria de Antonio Carlos Jobim com Vinicius de Morais, artífice das letras de inúmeras canções conhecidas em todo o mundo.
No mesmo ano, um grupo de jovens empolgados pelas tendências da nova música reunia-se na casa da cantora Nara Leão para explorarem novo repertório. Alguns participantes desses encontros foram Roberto Menescal, Ronaldo Boscoli, Carlos Lyra, Chico Feitosa, Durval Ferreira e Oscar Castro Neves, que muito contribuíram para o sucesso do movimento.
Paralelamente, a música fervilhava nos quatro clubes do lendário Beco das Garrafas, réplica carioca da Rua 52, de New York. Todas as noites alguém trazia uma nova composição, uma nova idéia, um novo arranjo. Naqueles clubes apresentaram-se os pianistas Luiz Carlos Vinhas, Luiz Eça, Sérgio Mendes, Toninho Oliveira, Dom Salvador e Tenório Junior; violonistas Baden Powell, Neco, Rosinha de Valença, Waltel Branco e Oscar Castro Neves; cantoras Claudete Soares, Leny Andrade, Alaíde Costa e Sylvia Telles; trombonistas Raul de Souza e Edson Maciel; baixistas Sérgio Barrozo, Tião Neto e Manuel Gusmão; saxofonistas Jorge Ferreira da Silva, J. T. Meirelles e Aurino Ferreira; bateristas Edison Machado, Victor Manga, Milton Banana e Dom Um Romão; e gaitista Maurício Einhorn.
Os músicos começaram a desenvolver o samba-jazz inspirados nas improvisações do disco "Brazilliance", de Laurindo Almeida e Bud Shank, despontando os conjuntos Tamba Trio, Bossa Três, Salvador Trio, Trio 3-D e Rio 65 Trio. A juventude brasileira foi arrebatada pela bossa nova com o disco "Chega de Saudade", de João Gilberto, definindo as bases do novo idioma com inovações na melodia, harmonia e no ritmo, sendo cultuado por músicos, cantores e ouvintes.
Pouco a pouco, a nova música começou a ganhar fama internacional a partir de 1959, com quatro acontecimentos decisivos para seu sucesso no exterior. Primeiro, o guitarrista Charlie Byrd fez uma turnê brasileira e, encantado com o que ouviu, na volta aos USA gravou vários discos com músicas brasileiras. Segundo, quando vieram ao Brasil o conjunto American Jazz Festival e o quinteto do trompetista Dizzy Gillespie, em 1961; ao regressarem, Gillespie, Lalo Schifrin (piano), Zoot Sims e Coleman Hawkins (sax), Herbie Mann (flauta) e Curtis Fuller (trombone) gravaram discos de bossa nova. Terceiro, em 1962, Charlie Byrd e o saxofonista Stan Getz gravaram o LP "Jazz Samba", e "Desafinado" tornou-se um sucesso monumental da noite para o dia. Sua repercussão originou a organização de um concerto de bossa nova no Carnegie Hall com músicos brasileiros, abrindo um mercado internacional de trabalho para os artistas nacionais.
No ano seguinte, Stan Getz gravou com João Gilberto e Antonio Carlos Jobim o disco que transformou "Garota de Ipanema" na marca registrada de Jobim e da bossa nova, no qual Astrud Gilberto estreou como cantora. A essa altura, Jobim era o grande nome da bossa nova; mundialmente famoso, seu prestígio era cada vez maior e suas composições eram sucessos retumbantes em quase todos os países do planeta.
A bossa nova conquistou o público com suas belas melodias, harmonias sofisticadas e seu ritmo sutil e original. Entre incontáveis sucessos, ficaram para a posteridade "Chega de Saudade", "Desafinado", "Garota de Ipanema", "Samba de Uma Nota Só", "Meditação", "Corcovado", "O Amor em Paz", "Samba do Avião", "Inútil Paisagem", "Dindi", "Triste", "A Felicidade", "Lígia", "Vivo Sonhando", "Se Todos Fossem Iguais a Você", "Só Danço Samba" e "Insensatez" (Jobim); "Influência do Jazz", "Primavera", "Minha Namorada", "Maria Ninguém", "Se É Tarde Me Perdoa", "Lobo Bobo" e "Você e Eu" (Carlos Lyra), "Barquinho", "Rio", "Você" e "Vagamente" (Roberto Menescal), "Batida Diferente", "Chuva" e "Estamos Aí" (Maurício Einhorn)
Com o sucesso do rock e dos Beatles, a bossa nova deixou de ser a música da juventude brasileira, embora continuasse prestigiada no exterior até hoje. Na geração pós-bossa nova destacaram-se Edu Lobo, Chico Buarque, Djavan, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Marcos Valle, mas somente este aderiu ao estilo.
Após longo período de estagnação, nas últimas duas décadas houve um renascimento da bossa nova no Brasil com shows, festivais, gravações e reedições de discos daquele período que continua sendo o mais criativo da música popular brasileira de todos os tempos.
A BOSSA NOVA
A bossa nova foi o grande divisor de águas da nossa música popular, gerando a maior revolução melódico-rítmico-harmônica de todos os tempos que inaugurou a era moderna da MPB. A bossa nova foi para a música brasileira o equivalente do bebop para o jazz nos anos 40, e o lendário Beco das Garrafas representou o que foi a Rua 52, em Nova York. Foi nos quatro clubes daquele pequeno quarteirão de Copacabana que parte dos futuros astros da bossa nova iniciaram suas carreiras.
Freqüentei assiduamente o Beco das Garrafas, que fervilhava todas as noites com a pulsação dos novos rumos que tomava nossa música, sendo testemunha ocular e auditiva daquele movimento desde seu nascedouro, cuja beleza melódica conquistou ouvintes em todo o mundo, abrindo um mercado internacional de trabalho para nossos músicos, compositores e cantores. Naqueles anos dourados, entre 1958 e 1963, a bossa nova foi a música da nossa juventude, que se rendeu aos encantos das suas melodias e versos poético-românticos.
Muito foi escrito sobre a bossa nova, embora a grande maioria jamais tenha pisado no Beco das Garrafas ou tenha freqüentado seus quatro clubes, limitando-se a transcrever entrevistas com opiniões de terceiros, nem sempre confiáveis. Ao festejar seu cinqüentenário, a bossa nova conquistou uma enorme audiência em todos os países do mundo, sendo o maior e melhor artigo de exportação do Brasil.
JOHNNY ALF
A música popular brasileira teve uma perda irreparável com o desaparecimento de Johnny Alf (Alfredo José da Silva), dia 04 deste mês, aos 80 anos. Alf foi o pai espiritual da bossa nova, cujas sementes ele plantou na Cantina do César, em 1950/51 e em 1953/54 tocando no bar do Hotel Plaza, no Rio de Janeiro. Todas as noites iam ouvi-lo Luiz Eça, Sylvinha Telles, Neco, Bebeto, Oscar Castro Neves, Edson Maciel, Edison Machado, Baden Powell, Cipó, Aurino Ferreira, Carlos Lyra, Mauricio Einhorn, Pedro Paulo, Tião Neto, Manuel Gusmão, Mario Castro Neves, Oscar Castro Neves, Dom Um Romão, Marcos Szpillman, Jorginho Ferreira da Silva, João Luiz Maciel, Paulo Moura, Duba, Alfredo de Paula, Alaíde Costa, Ed Lincoln, Tom Jobim e tantos outros. Fascinado pelas harmonizações avançadas de Alf, Jobim (que era pianista da noite do Clube da Chave), pediu que lhe desse aulas para aprender a harmonizar de forma moderna.
Alf era muito educado, atencioso e tratava todos muito bem. Eu o conheci num sebo de discos, em 1949. Estávamos lado a lado na seção de música americana e depois de algum tempo começamos a conversar enquanto olhávamos os discos. Depois de comprar o que queríamos, saímos da loja conversando e paramos para tomar um café. Quando nos despedimos, ele perguntou se eu queria ir ao Sinatra-Farney Fã Clube, do qual era sócio.
Fui e lá conheci muita gente jovem e vários deles tornaram-se meus amigos. Depois de alguns dias, encontrei na rua o apresentador de rádio Cesar de Alencar, que era muito popular. Ele disse que ia inaugurar uma casa noturna (chamou-se Cantina do César) e precisava de um bom pianista que cantasse em português e inglês. Na mesma hora disse-lhe que conhecia o melhor de todos: Johnny Alf. Surpreso por não conhecer Alf, pediu que falasse com ele sobre o trabalho. Não deu outra: Johnny foi lá e estreou logo depois. Foi um grande sucesso. Logo espalhou-se a notícia que um novo pianista na Cantina do César era um fenômeno, tocava harmonias audaciosas como ninguém no Brasil.
Assim começou a carreira profissional dele. Infelizmente, ele nunca teve o reconhecimento que deveria receber, apesar dos verdadeiros conhecedores sempre o admirarem e prestigiarem. Johnny Alf foi um gênio, um músico à frente da sua época que deixou uma obra fenomenal, valiosa e repleta de canções admiráveis, verdadeiras obras-primas que chamavam a atenção dos músicos e cantores e permanecerão para sempre na história da MPB. Para mim, Johnny Alf foi o maior compositor brasileiro de todos os tempos. Sem ele não existiria a bossa nova. JOHNNY ALF, "All I can add is There'll Never Be Another You".
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PS.: O texto do mestre Raffaelli foi escrito em março de 2010, pouco tempo depois da morte de Johnny Alf, ocorrida no dia 04 daquele mês.
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