"Free Bossa": visitas pouco ortodoxas ao mais internacional dos sons brasileiros
Música e outras coisas

"Free Bossa": visitas pouco ortodoxas ao mais internacional dos sons brasileiros



"Tom Jobim como figura humana era uma coisa extraordinária: gostava de passarinho, da natureza... Mas não venha dizer para mim que ele é uma expressão da cultura brasileira, não é! As harmonias são americanas, ele chupava música americana. E não é um cara original: ‘Samba de uma nota só’ é ‘Mr. Monotony’, de Irving Berlin, gravado por Judy Garland; ‘Desafinado’ é um samba do Estácio, de Bide e Marçal. Não tem criação! Uma vez  escrevi que Jobim era barriga de aluguel da música popular. Quando o inseminavam, ele produzia coisa boa. Se não fosse inseminado não produzia nada." (José Ramos Tinhorão)



A bossa nova e seu mais difundido compositor nunca chegaram a ser unanimidade (apesar de alguns acharem isso...). Nunca faltou quem acusasse o gênero de monotonia e repetição, com suas letras açucaradas e alienadas, além de ser apenas um híbrido de samba-canção com cool jazz... Mas não dá para discutir o fato de a bossa nova ser o rebento musical brasileiro que mais rompeu fronteiras para ser abundantemente absorvido e deglutido no exterior.


Quem, dos que viviam a cena musical carioca de meados dos anos 1950, poderia imaginar o impacto e a repercussão décadas futuras adentro do que estavam realizando e/ou presenciando? Nem mesmo Tom Jobim (1927-1994) em suas noites de maior inspiração e devaneio conseguiria vislumbrar os rumos que sua cria tomaria. Cantada em português, a bossa nova poderia ter ficado restrita ao nosso cenário, como tantas outras manifestações musicais locais, com pequenas incursões no mercado internacional. Mas o encantamento provocado por aquela doce sonoridade em músicos norte-americanos que passavam pelo Rio de Janeiro no início dos anos 60 acabou por fazer com que a história fosse outra...
Quando o não tão famoso guitarrista americano Charlie Byrd (1925-1999) desembarcou no Brasil em meio a uma turnê pela América do Sul, na primavera de 1961, foi apresentado ao gênero e saiu daqui arrebatado. Ao retornar aos EUA, se encontrou com o amigo saxofonista Stan Getz e mostrou os discos que havia levado na mala. No ano seguinte, Byrd e Getz lançariam o álbum “Jazz Samba”, com ‘Desafinado’, ‘O Pato’ e ‘Samba de Uma Nota Só’, selando o frutífero casamento da bossa nova com o jazz. Em 1963, Getz se juntaria a João Gilberto, Tom e Astrud para gravar o clássico Getz/Gilberto, consumido por milhões nas décadas seguintes.

É difícil mensurar o que foi a bossa nova para o público dos EUA, especialmente naqueles anos 60s, se o gênero se tornou realmente uma febre sonora, se foi uma suave-devastadora onda ou se ocupou apenas o espaço de mais um ritmo latino sedutor dentre outros degustados pelo público. Mas não se pode fechar os olhos à repercussão que aquela música teve nos ouvidos dos jazzistas: basta verificar a imensa lista de músicos, jovens e veteranos, que visitaram o cancioneiro bossanovístico. Dos pioneiros Byrd e Getz, passando pelos ícones Coleman Hawkins, Dexter Gordon, Dizzy Gillespie e Modern Jazz Quartet, considerando os míticos encontros de Tom Jobim com Frank Sinatra, as interpretações de Sarah Vaughan, lembrando de “Ella abraça Jobim” da diva Ella Fitzgerald, sem falar em Cannonball Adderley, Ron Carter, Oscar Peterson, Harry 'Sweets' Edison, Stéphane Grappelli, Ramsey Lewis, Michel Petrucciani, Milt Jackson, Herbie Mann, Art Pepper, Gene Ammons, McCoy Tyner, Larry Young, Eddie ‘Lockjaw’ Davis, Fred Hersch, Paul Desmond, das orquestras de Quincy Jones, Lalo Schifrin e Benny Goodman, Oliver Nelson, Joe Henderson, Elvin Jones, Jimmy Smith, Wes Montgomery e até mesmo Miles Davis (que gravou ‘Corcovado’ em 1963): foram vastos e variados os encontros travados entre jazzistas e a bossa nova.


E mesmo na seara free jazzística (e fusion) houve quem arriscasse diálogos com o idioma jobiniano (o que teria dito Vinicius de Moraes, que não simpatizava muito nem com o bebop ou o hard bop, dessas leituras radicais?).
Esses raros e nada prováveis encontros foram experimentados por algumas figuras maiores da música livre, como Don Cherry, Archie Shepp e Anthony Braxton. Difícil imaginar o free se embrenhando pela bossa: por isso, garimpamos algumas dessas preciosidades inventivas, captadas entre 1965 e 2003, para mostrar possibilidades nada ortodoxas de encontros entre vertentes menos tradicionais (oriundas) do jazz e o cancioneiro bossanovístico. Confira:


"Free Bossa"

. A Felicidade/Orfeo Negro (Don Cherry)
. Samba de Verão (Ivo Perelman)
. Garota de Ipanema (Archie Shepp)
. Desafinado (Anthony Braxton)
. Garota de Ipanema (Ran Blake)
. Corcovado (Eugene Chadbourne / Zu)
. Once I loved [Amor em Paz] (Tony Willians/Lifetime)
. Dindi (Wayne Shorter)


Notas da coletânea:

**Don Cherry estava em turnê com seu quinteto, que contava com Gato Barbieri no sax, em 1966 pela Europa. Foi em Stuttgart que mostrou que andava ouvindo bossa, tocando nos shows uma releitura de A Felicidade, creditada como 'Orfeo Negro' (referência ao clássico filme de Marcel Camus, de 59, que trazia a canção e muito ajudou a exportar a nova sonoridade).

**Ivo Perelman foi quem explorou de forma bastante aguda alguns temas da bossa nova, tendo relido ‘Samba de Verão’, ‘Desafinado’ e ‘O Morro’. Em sua versão de ‘Samba de Verão’, que traz Rashied Ali na bateria, o músico se concentra nos primeiros acordes do tema original, retomando-os de forma cíclica entre solos ásperos. Permitindo que a faixa seja identificável por qualquer ouvinte bossanoveiro profissional, cria uma leitura com densidade muito distinta do extrato original.

**Archie Shepp gravou sua ‘Garota de Ipanema’ em 65, com um sexteto quente que contava com nomes como Marion Brown. É curioso que o músico tenha preservado certos extratos da forma original –notem como Joe Chambers conduz sua batida. Maior liberdade apenas para o sax.

**Anthony Braxton foi quem desses mais recentemente visitou o cancioneiro jobiniano: gravou seu “Desafinado” em 2003, no álbum "23 Standards (Quartet)". Como não é surpresa, realizou a versão mais abstrata e mais distante da bossa nova desse conjunto. Só se percebe com clareza o tema original lá pelos 3 minutos... Na mesma sessão, Braxton gravou também um “Black Orpheus”.

**Ran Blake é um curioso pianista que, apesar de suas entradas no território free, muito fez pelo chamado Third Stream. Parceiro antigo de Jeanne Lee, tocou alguma bossa em seus encontros em duo com ela. Aqui, aparece solo desfiando também Garota de Ipanema.

**O excêntrico Eugene Chadbourne levou a bossa a um encontro com Han Bennink (no disco ‘21 Years Later’, de 2001), repetindo a dose quando se uniu aos italianos do Zu. Essa Corcovado é a versão mais decepcionante do conjunto, considerando-se a ferocidade do Zu e o perfil experimentador de Eugene, que acabaram aplacados pela doce brisa carioca...

**Do campo fusion brotaram também versões bem interessantes e livres. Tony Williams e seu Lifetime criaram uma atmosfera de densa espacialidade, em muito amparada nos teclados de Larry Young, para realizar sua visita à Once I Loved (Amor em Paz).

**E Wayne Shorter encontrando Dindi em 1969, no disco "Super Nova", quando adentrava esferas free fusion com sua música. A extensa leitura se divide em três etapas: forte entrada inicial de sopro e percussão; a calmaria centrada no vocal feminino, aí bem bossa; e o retorno dos instrumentos que acabam por apagar qualquer sombra restante de Dindi...

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Credits:

1) Don Cherry (pocket trumpet); Gato Barbieri (tenor); Karl Berger (piano, vibes); Bo Stief (bass); Aldo Romano (drums). Bootleg: 1966.
2) Ivo Perelman (tenor); Rashied Ali (drums); Guilherme Franco e Cyro Baptista (percussion). Álbum: Aquarela do Brasil: 1999.
3) Archie Shepp (tenor); Marion Brown (alto); Reggie Johnson (bass); Joe Chambers (drums); Joseph Orange (trombone); Ted Curson (trumpet). Álbum: Fire Music: 1965.
4) Anthony Braxton (sax); Kevin O’Neil (guitar); Andy Eulau (bass); Kevin Norton (percussion). Álbum: 23 Standards: 2003.
5) Ran Blake (piano solo). Bootleg: 1968.
6) Eugene Chadbourne (vocal, guitar); Massimo Pupillo (bass); Roy Paci (trumpet); Luca Mai (sax); Jacopo Battaglia (drums). Álbum: Motorhellington: 2001.
7) Tony Williams (vocal, drums); Larry Young (keyboards); John McLaughlin (guitar); Jack Bruce (bass). Álbum: (Turn it Over!): 1970  
8) Wayne Shorter (soprano); John McLaughlin, Sonny Sharrock (guitar); Miroslav Vitous (bass); Chick Corea (vibes, percussion); Airto Moreira (percussion); Maria Booker (vocal); Jack DeJohnette (drums). Álbum: Super Nova: 1969.



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