UM BRASILEIRO DO MUNDO (OU DE COMO A BARCA SAIU DE NITERÓI, ATRAVESSOU A BAÍA DA GUANABARA, ATRACOU NA TERRA DE TIO SAM E POR LÁ FICOU ATÉ HOJE)
Música e outras coisas

UM BRASILEIRO DO MUNDO (OU DE COMO A BARCA SAIU DE NITERÓI, ATRAVESSOU A BAÍA DA GUANABARA, ATRACOU NA TERRA DE TIO SAM E POR LÁ FICOU ATÉ HOJE)



Um álbum que conta com os talentos de Art Farmer, Phil Woods e Hubert Laws é, indiscutivelmente, um disco de jazz, correto? E um álbum que conta com a exuberância de Antônio Carlos Jobim, Tião Neto e Chico Batera é, certamente, um disco de bossa nova, não é verdade? E quando o disco conta com essas seis feras, capitaneadas por um certo Sérgio Santos Mendes, o que é que pode sair daí?

Essa discussão pode durar anos, mas a resposta é de uma simplicidade absurda: daí só pode sair música de excelente qualidade e ponto final. Afinal de contas, seria absolutamente impossível que craques desse nível pudessem produzir um mísero acorde ruim em sua alvissareira reunião. Como diria um querido amigo, “errinho à toa bom só aquela bossa do Roberto Menescal e do Ronaldo Bôscoli”. Mas esse disco, chamado apropriadamente de “Bossa Nova York”, não tem erro.

Antes de falar sobre o álbum, porém, conheçamos um pouco da vida e da trajetória de Sérgio Mendes. Ele nasceu em Niterói, no dia 11 de fevereiro de 1941, em uma família de classse média – o pai era de uma severidade monástica. Durante muito tempo foi obrigado a usar um pesado colete ortopédico. As aulas de piano clássico vieram ainda na infância e na adolescência, a paixão que iria durar por toda a vida: o jazz. As primeiras influências, dentro deste estilo, foram Stan Kenton e, mais tarde, Horace Silver.

Estudou com o maestro Moacir Santos, integrou-se à primeira leva de músicos da bossa nova (era uma espécie de mascote da turma) e aos vinte anos já estava tocando profissionalmente, integrando conjuntos como o Sexteto Bossa Rio e o Brazilian Jazz Sextet, nos quais pontuaram alguns dos maiores músicos do país, como Paulo Moura, Dom Um Romão e Djalma Ferreira.

O amor pelo jazz se cristalizou nas incontáveis noitadas no célebre Beco das Garrafas. Ali, tocando, ouvindo e fazendo jams, conviveu com instituições do calibre de Edson Machado, Luiz Eça, Milton Banana, Paulo Moura, Raul de Souza, Antônio Adolfo, J. T. Meireles, Djalma Ferreira, Bebeto Castilho, Tião Neto, Dom Um Romão, entre outros. Naquele ambiente enfumaçado e boêmio nasceu o mais perfeito amálgama entre as linguagens do samba e do jazz – não por outro motivo chamado, exatamente, de “samba jazz” ou, denominação menos usada, de “hard bossa nova”.

A ligação entre o samba (e, por conseguinte, a bossa nova) e o jazz é óbvia. Recorro ao querido mestre José Domingos Raffaelli, que em um artigo denominado “História do Samba Jazz” desnuda a ponte entre esses dois estilos, cujas origens comuns remontam ao continente africano:

“As relações entre o jazz e a música brasileira são muito mais íntimas do que possam aparentar. É uma intimidade que surpreende após a sua constatação. Suas origens são exatamente as mesmas, provenientes da cultura negra trazida pelos escravos africanos originários das mesmas regiões da costa ocidental do continente africano. Entregues à própria sorte, os escravos trabalhavam exaustivamente de sol a sol sem qualquer descanso e, freqüentemente, sob a chibata implacável dos feitores. O único lenitivo que lhes amenizava o sofrimento era o canto que entoavam durante o trabalho, os lamentos à noite, os cânticos religiosos e a música de ninar das mães escravas. O destino separou os irmãos africanos pelos hemisférios das duas Américas, porém suas raízes foram as mesmas.”

Pois dentre os grandes pianistas que circulavam pelas noites de Copacabana, como os já citados Luiz Eça e Antônio Adolfo (e ainda Dom Salvador, Tenório Júnior, Luís Carlos Vinhas e muitos mais), a reputação de Sérgio Mendes só crescia – ele, embora muito novo, já pertencia ao primeiro time dos pianistas cariocas. Tanto é que em 1961 gravou o seu primeiro disco como líder, chamado “Dance Moderno” (Phillips) e em 1962 lançou o seminal “Você Ainda Não Ouviu Nada!”, trazendo arranjos de Tom Jobim e Moacir Santos.

Ainda em 1962, participou do célebre Festival da Bossa Nova, realizado no Carnegie Hall, em Nova Iorque. O show, apesar do alto grau de amadorismo e de uma certa precariedade, rendeu bons frutos e funcionou como porta de entrada da música brasileira (especialmente da bossa nova) nos Estados Unidos. A participação de Sérgio rendeu-lhe um convite de Cannonball Adderley, para participar do seu bem sucedido “Cannonball’s Bossa Nova”, lançado no mesmo ano pela Capitol.

Entre idas e vindas aos Estados Unidos, Sérgio foi se tornando figurinha fácil nos circuitos jazzísticos daquele país, além de ter feito amizade com muitos músicos norte-americanos que tocaram no Brasil no início dos anos 60, como Paul Winter, Stan Getz, Herbbie Mann e Dizzy Gillespie. Também fez excursões à Europa e ao Japão, em 1963, ao lado de Nara Leão, em uma turnê patrocinada pela Rhodia.

Em 1964, já residindo nos Estados Unidos, gravou o espetacular “Bossa Nova York”, para a Elenco, que é considerado um marco na sua carreira. O álbum foi gravado nos estúdios da Atlantic Records, em Nova Iorque, sob a batuta do aclamado Tom Dowd (um dos mais importantes engenheiros de som do mundo, que trabalhou com grandes nomes do jazz, do R&B e da música pop).

Basicamente, é um disco do Sérgio Mendes Trio (Tião Neto no contrabaixo e Chico Batera na bateria), com as excelsas participações de Tom Jobim (violão), Art Farmer (flugelhorn), Phil Woods (sax alto) e Hubert Laws (flauta). Poucas vezes o jazz e a bossa nova caminharam juntos de maneira tão harmônica – parece que foram feitos um pro outro (e sujeitos como Stan Getz, Laurindo de Almeida, Charlie Byrd, Luís Bonfá acabara provando que foram mesmo).

O disco abre com uma versão fabulosa de “Maria Moita”, clássico bossanovístico de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes. E é maravilhoso ouvir a influência de jazz na obra de Lyra, certamente um dos maiores melodistas da bossa nova. A atuação de Woods é primorosa, cheia de modulações e frases absurdamente belas. Sérgio se revela um improvisador extremamente competente e seu solo tem uma ginga tipicamente brasileira, mas é jazzístico até medula. “Só tinha que ser com você” ganha um arranjo delicado, doce como o flugelhorn de Farmer, que extrai dele uma sonoridade de canção de ninar anjos.

O Beco das Garrafas se faz presente em “Batida diferente”, talvez a composição mais conhecida de Durval Ferreira e Maurício Einhorn. Chico Batera detona todas, percutindo com uma energia contagiante e Mendes inventa mil e uma estripulias a bordo de suas teclas. Um Hubert Laws extremamente à vontade injeta, com seu fraseado malemolente, o delicioso molho jazzístico a essa refinada iguaria.

Woods volta a brilhar em “Só danço samba”, na qual Tião Neto elabora um senhor solo, e “Vivo sonhando”. “Pau Brasil”, com seu clima meio oriental, encanta pelo charme hipnótico da flauta Laws, que volta à cena para adicionar lirismo à consagrada “Garota de Ipanema”. Em “Inútil paisagem” Art Farmer, incomparável baladeiro, dialoga sensacionalmente com o nosso maestro soberano Antônio Carlos Jobim (autor da música, ao lado de Aloysio de Oliveira), construindo aí uma atmosfera intimista e acolhedora – só falta a janela para o Redentor, que lindo!

Em “Consolação” e “O morro não tem vez” atua apenas o Sérgio Mendes Trio e a atmosfera do Beco das Garrafas permanece. “Primavera” completa o set, com a graciosidade que seus autores (Lyra e Vinícius) tinham em mente quando a compuseram – a flauta de Law e o piano de Mendes, mais uma vez, esbanjam elegância e fluência. Um disco para se levar para uma ilha deserta e que tem cadeira cativa no coração dos amantes do jazz e da bossa nova.

A partir desse disco, a carreira de Sérgio deslanchou nos States. Gravando para selos prestigiados, como Capitol e Atlantic, fundou o Sérgio Mendes & Brasil 66, um fenômeno de vendas da época, graças a uma versão demolidora de “Mas que nada”, de Jorge Ben. Lançado em 1966 pela A&M Records, o álbum recebeu o nome de “Herb Albert Presents Sergio Mendes & Brasil 66” e fez sucesso no mundo inteiro – nos Estados Unidos chegou à casa de 1 milhão de cópias.

Durante os anos 60 ele foi, de longe, o artista brasileiro mais bem-sucedido no exterior. Em 1967, teve a honra de se apresentar na Casa Branca e os discos seguintes, com cover de Jorge Ben (“Chove chuva”), além de versões de músicas dos Beatles (“Fool On The Hill”), Simon & Garfunkel (“Scarborough Fair”) e Otis Redding (“Sittin' On The Dock of the Bay”), continuaram a fazer de Sérgio Mendes um dos nomes mais quentes do cenário pop internacional.

Nos anos 70, a fórmula usada por Mendes pareceu sofrer um desgaste. Seus discos vendiam pouco, não havia hits nas rádios e mesmo a mudança de gravadora (foi para a Elektra) pareceu surtir pouco efeito na revitalização de sua carreira. Somente em 1983, de volta à A&M, o pianista fez as pazes com sucesso, graças ao mega-hit “Never Gonna Let You Go”, que chegou ao quarto lugar na lista da Billboard.

Em 1992, outro retorno às paradas de sucesso, devido ao álbum “Brasileiro”, que lhe valeu um Grammy no ano seguinte, na categoria World Music. Seu disco mais recente, chamado “Timeless” e lançado pela Concord em 2006, conta com um elenco de grandes nomes da música pop, como Stevie Wonder, Justin Timberlake, Erycah Badu e Black Eyed Peas e também vendeu horrores. O garoto de Niterói que conquistou o mundo ainda continua a aprontar das suas – e a barca continua a singrar os mares.




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