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Apelidado de “O Ravel do Saxofone”, por causa da doçura com que interpretava baladas, Benjamin Francis Webster nasceu no dia 27 de março de 1909, em Kansas City, Missouri. Dono de uma personalidade forte e complexa, capaz de praticar os atos mais ternos e os mais execráveis, seu fraseado refletia essa dualidade, podendo soar meigo ou agressivo, romântico ou iracundo, dependendo do estado de espírito do momento. Daí porque recebeu outros apelidos menos lisonjeiros, como “The Brute” (O Bruto) ou “The Frog” (O Sapo).

De qualquer maneira, e para além de qualquer discussão sobre a sua personalidade errática, é certo que ele inscreveu o seu nome entre os grandes nomes do jazz e, em matéria de influência, são poucos os saxofonistas que conseguem superá-lo. Há um certo consenso entre a crítica especializada, que o coloca em um patamar ligeiramente abaixo de Coleman Hawkins e Lester Young, dentre os saxofonistas surgidos na era do swing, no que se refere à importância para o desenvolvimento do saxofone jazzístico. Entre os músicos ligados ao jazz moderno, apenas Charlie Parker, John Coltrane e Sonny Rollins podem ombrear-se a ele.

Ainda na infância, aprendeu a tocar piano – durante algum tempo, ganhou a vida como pianista de filmes mudos, em Oklahoma e no Texas, e nessa qualidade atuou nas orquestras de Brethro Nelson e de Dutch Campbell – e violino. Somente em 1930, quando já contava com 21 anos, é que começou o aprendizado do saxofone alto, graças a Budd Johnson, que lhe ensinou os rudimentos do instrumento. Com uma dedicação férrea, aliada a um talento superlativo, Webster superou os obstáculos do início tardio e, em pouco tempo, já era um dos mais requisitados músicos do sul dos Estados Unidos.

Vieram, então, trabalhos na Young Family Band (na qual atuava o jovem Lester Young) e nas orquestras de Jap Allen, Gene Coy, onde trocou o sax alto pelo tenor, e de Blanche Calloway, com quem fez as suas primeiras gravações. Em 1931, juntou-se à orquestra de Benny Moten, onde conheceu os futuros astros Count Basie e Walter Page. Tornou-se o principal solista da banda e responsável direto pelo sucesso de músicas como “Lafayette” e “Moten Swing”, gravadas em 1932.

A partir daí, teve passagens vitoriosas pelas big bands de Fletcher Henderson, Benny Carter, Cab Calloway, Teddy Wilson, Andy Kirk e Willie Bryant. Também estudou teoria musical e harmonia na Wilberforce University e passou algum tempo na banda do violinist Stuff Smith, em 1938. No final daquele ano, tocou com o trompetista Roy Eldridge, em Nova Iorque. Ali pôde acompanhar o pianista Teddy Wilson, em algumas das célebres gravações da diva Billie Holiday, como, por exemplo, em “What a Little Moonlight Can Do”.

Nesse período, Webster já mantinha uma relação bastante instável com a bebida, o que fazia dele uma versão sulista de Dr. Jekyll e Mr. Hyde. Quem o conheceu pessoalmente, relata que Ben, sóbrio, era uma pessoa terna, gentil e afetuosa. Mas, quando bebia, tornava-se violento e bastante agressivo – não era raro vê-lo metido em alguma confusão. Em 1935, teve uma breve passagem pela orquestra de Duke Ellington, substituindo temporariamente Barney Bigard, mas sem maior repercussão. Contudo, a breve convivência serviu para aproximá-lo do ídolo – e influência confessa – Johnny Hodges, a quem admirava intensamente.

A sua segunda incursão pelas hostes elingtonianas foi absolutamente distinta. O Webster que ali ingressou em 1940 era um músico maduro e calejado, inteiramente senhor do seu instrumento e extremamente seguro de si. Não demorou muito para que se tornasse o primeiro tenorista da orquestra, diretamente responsável pela ótima repercussão de músicas como “Conga Brava”, “Cotton Tail”, “Jack The Bear”, “Harlem Air Shaft”, “Sepia Panorama” e “All Too Soon”. A popularidade conseguida ali fez do saxofonista um astro e um paradigma para inúmeros jovens músicos, que tentavam imitar-lhe o estilo.

A big band de Ellington foi decisiva para que Webster depurasse a sua própria forma de tocar e abandonasse, definitivamente, as inflexões à Coleman Hawkins, a quem era acusado de imitar. Além disso, a orquestra contava com o talento do contrabaixista Jimmy Blanton, que ajudou a modernizar a sonoridade da banda, sendo que muitos críticos se referem a esse período como “A Era Blanton–Webster”. O temperamento explosivo do saxofonista acabou por acarretar a sua saída da orquestra, em 1943, após uma briga com o líder, que colocou Paul Gonsalves em seu lugar.

A partir de então, Webster, que se mudou para Nova Iorque, passou a liderar seus próprios grupos, além de participar de concertos e gravações ao lado de Raymond Scott, Jay McShann, Big Sidney Catlett, Stuff Smith, Bob Wilson e John Kirby. Webster também era presença assídua nos clubes da Rua 52 e, por conta da natural interação com músicos mais jovens, como Charlie Parker, Dizzy Gillespie e Bud Powell, assimilou com bastante facilidade o idioma do bebop, transitando com maestria por entre as intrincadas veredas harmônicas do estilo.

A partir do terço final dos anos 40, participou de diversas edições da caravana Jazz at the Philharmonic, do empresário Norman Granz, que viajava o mundo apresentando grandes nomes do jazz. Webster passaria os próximos 10 anos excursionando com regularidade com Granz e, durante uma dessas excursões, em 1948, fez as pazes com o antigo patrão Ellington – tanto é que voltou a tocar em sua orquestra, por alguns meses, naquele mesmo ano.

Na década de 50, o saxofonista foi “adotado” por algumas das maiores cantoras da época, encantadas com a maciez de seu toque. Vieram, então, diversos trabalhos com Billie Holiday, Dinah Washington, Ella Fitzgerald e Carmen McRae. Os cantores também não ficaram imunes ao poder de sedução do fraseado de Webster, que acompanhou ninguém menos que Frank Sinatra, Joe Williams e Jimmy Witherspoon, cuja versão de “Ain’t Nobody’s Business (If I Do)”, gravada durante o Monterrey Jazz Festival, em 1959, é considerada definitiva.

Dentre os músicos com quem tocou naquele período estão nomes ilustres como Stan Getz, Mundell Lowe, Charlie Parker, Benny Carter, Roy Eldridge, Barney Kessel, Michel Legrand, Buddy Rich e outros. Em 1953, lançou pela Verve o LP “King Of The Tenors”, considerado um dos pontos altos de sua carreira, secundado pelo pianista canadense Oscar Peterson, que, juntamente com o trompetista Harry Sweets Edison, se tornaria um dos seus mais constantes parceiros musicais ao longo das próximas décadas. Entre os destaques do álbum, uma descomunal versão de “Tenderly”.

Em mais uma demonstração de prestígio, em 1956 Webster foi convidado por ninguém menos que o grande Art Tatum, para acompanhá-lo no oitavo volume da série “Group Masterpieces”, com o apoio do baixista Red Callender e do baterista Bill Douglass. Outro momento marcante foi o disco “Coleman Hawkins Encounters Ben Webster”, que reúne as duas lendas vivas do saxofone. Gravado em dezembro de 1957, para a Verve, Hawkins e Webster desfiam standards como “Tangerine” e “It Never Entered My Mind”, escoltados pelos soberbos Oscar Peterson, Herb Ellis, Ray Brown e Alvin Stoller.

Em dezembro daquele ano, Webster participou de um especial para a rede de TV CBS, intitulado “The Sound of Jazz”, que conta com as presenças de luminares como Count Basie e Billie Holiday. Ali, pela primeira e única vez na história, reúne-se para uma gravação a Santíssima Trindade do Saxofone da Era do Swing: Coleman Hawkins, Lester Young e Ben Webster brindam a audiência com uma comovente versão de “Fine and Mellow”.

Em 1958, o saxofonista foi uma das principais atrações do Newport Jazz Festival, em um memorável tributo a Duke Ellington, no qual foi acompanhado por Billy Strayhorn, Oscar Pettiford e Sonny Greer, três das mais talentosas “crias” musicais do maestro. Em 1959, dividiu os créditos do álbum “Gerry Mulligan Meets Ben Webster” com o incensado baritonista, então no auge da fama e do prestígio.

Os anos 60 começaram auspiciosos para Webster. Apresentações em festivais pelo mundo inteiro, participação em álbuns de artistas como Johnny Hodges, Helen Humes, Richard “Groove” Holmes, Anita O`Day e Oliver Nelson e lançamento de uma série de ótimos discos em seu próprio nome eram acontecimentos quase triviais.

Um desses álbuns merece especial atenção em sua portentosa discografia, por conta de suas inúmeras qualidades: trata-se de “Soulmates”, que marca o encontro de Webster com o jovem pianista austríaco Joe Zawinul. Vinte e cinco anos mais jovem que o parceiro, Zawinul era considerado uma das maiores revelações da época, e assombrava o mundo do jazz com seu talento, como um dos mais destacados integrantes do sexteto de Cannonball Adderley.

Apesar da diferença de idade e da formação díspar – Webster veio do swing e Zawinul era muito ligado à Third Stream de John Lewis – o saxofonista e o pianista se tornaram amigos bastante próximos, chegando a dividir, durante alguns meses, um apartamento em Nova Iorque. Consta que Coleman Hawkins costumava visitar a dupla e os três músicos varavam as madrugadas em animadas jams caseiras – para o provável deleite dos vizinhos.

O álbum em questão foi gravado para a Riverside, entre 20 de setembro e 14 de outubro de 1963, no Plaza Sound Studios, e conta com as luxuosas presenças de Richard Davis e Sam Jones, se revezando no contrabaixo, e Philly Joe Jones na bateria, além da luminosa participação de Thad Jones, no cornet, em quatro de suas oito faixas. A bolacha foi produzida por Orrin Keepnews e tem como um atrativo a mais as elegantes liner notes, a cargo de um fleumático Bill Evans.

O disco abre com uma relaxada versão de “Too Late Now”, da dupla Burton Lane e Alan Jay Lerner, na qual o fraseado musculoso de Webster transmite aconchego e calor. O apelido de “Ravel do Saxofone” é mais do que justificado e a sessão rítmica consegue ser enfática, mesmo economizando a quantidade de notas – em uma deliciosa apropriação do velho ditado “menos é mais”. O lirismo comedido de Zawinul, que se espelha em pianistas sucintos como Tommy Flanagan ou Hank Jones, é um dos pontos que merecem destaque.

Na exuberante faixa-título, Webster mergulha nas pantanosas águas do blues, com toda potência e vigor, no que é ajudado, sobremaneira, pela caudalosa execução de Sam Jones. A introdução, a cargo de Philly e Zawinul – em seguida os outros instrumentos vão se agregando – é antológica. Thad também participa do set, esbanjando uma categoria invulgar e uma energia contagiante.

O antigo patrão não poderia ficar de fora e a impactante interpretação de “Come Sunday”, de Ellington, é de causar arrepios. A maravilhosa introdução antecipa o clima de opulência sonora que o quarteto consegue imprimir a essa balada. Davis, ora usando o arco, ora a técnica do pizzicato, consegue expressar o abandono e o desencanto das histórias de amor mal sucedidas. Se o jazz alguma vez adotou a estética gótica, esta faixa é o seu melhor exemplo.

Outro tema de autoria de Webster, “The Governor” faz uma releitura modernizada do swing. Aqui quem dá as cartas é o saxofonista incisivo, quase rude, que tinha na enorme potência sonora e na emissão cheia de vibrato as suas características mais visíveis. Instigados pela energética atuação do líder, Philly, Thad e Zawinul se entregam ao tema com a avidez de quem participa de uma acalorada jam session e a performance de Sam Jones, infatigável, é um capítulo à parte.

Zawinul contribui com a infecciosa “Frog Legs”, hard bop vibrante e anabolizado com nada parcimoniosas pitadas de blues. Sua execução, espaçada e percussiva, revela a forte influência de Red Garland. Webster exibe um completo domínio das formas mais modernas de jazz e Thad, sempre surpreendente, é possuidor de uma sonoridade igualmente rica e encorpada. Fantástica a atuação Sam Jones, que extrai do seu contrabaixo um som volumoso e robusto, ideal para acompanhar os vigorosos sopros de Thad e de Ben.

Na dolente “Trav’lin’Light”, clássico do repertório de Lady Day, Webster pode demonstrar o proverbial esmero na construção de um clima lírico e envolvente, com uma sonoridade que é, a um só tempo, áspera e aconchegante. O piano intimista de Zawinul e o sofisticado approach de Davis, um dos mais talentosos contrabaixistas de todos os tempos, ajudam a criar a atmosfera lânguida e altamente romântica.

“Like Someone In Love”, de Johnny Burke e Jimmy Van Heusen, recebe um arranjo delicioso, em tempo médio, cheio de swing e altamente estimulante. O versátil Davis elabora um verdadeiro tratado de elegância e fluidez e o sopro de Ben, áspero, intenso, crispado e meio rascante, funciona como um merecido elogio à destreza. A atuação de Zawinul, que explora com maestria e delicadeza toda a riqueza melódica do tema, também é notável.

Apesar do título enigmático, “Evol Deklaw Ni” – na verdade, um acróstico de “In Walked Love” – é um blues cadenciado, de estrutura moderna e quase minimalista. Mais uma vez, o baixo robusto de Sam Jones merece audição atenta, assim como o excepcional timing de Philly, cujo solo, breve, porém marcante, ressalta a característica marcial de sua percussão. O diálogo entre Thad e Webster é um bálsamo auditivo, uma saudável conjugação de frescor e relaxamento.

Apesar de bem menos badalado que álbuns como “King Of The Tenors” ou “Gerry Mulligan Meets Ben Webster”, que desfrutam do confortável status de clássicos, este “Soulmates” guarda consigo aquela espécie de encanto que transforma uma obra despretensiosa e aparentemente corriqueira em uma verdadeira apoteose do sublime. Por isso mesmo, indispensável!

Em 1964, com alguma dificuldade para trabalhar regularmente e desencantado com o cenário musical norte-americano, Webster resolveu aceitar um convite para uma temporada de um mês no clube Ronnie Scott`s, em Londres. Animado com a ótima receptividade, decidiu se mudar em definitivo para a Europa, estabelecendo-se, primeiramente, em Copenhagen, na Dinamarca. Também morou em Estocolmo, na Suécia, e em Oslo, na Noruega, e, entre 1966 e 1969, fixou residência em Amsterdã, na Holanda.

Adaptou-se perfeitamente ao novo ambiente e tocava exaustivamente, não só com músicos europeus, como Niels-Henning Ørsted Pedersen, Tete Montoliu, Alex Riel, Hugo Rasmussen ou Cees Slinger, mas também com outros expatriados norte-americanos, como Warne Marsh, Benny Carter, Bill Coleman, Don Byas, Kenny Drew, Teddy Wilson, Albert “Tootie” Heath, Charlie Shavers, Red Mitchell, Carmell Jones, Brew Moore, Clark Terry, Buck Clayton, Dexter Gordon e Earl Hines, entre outros.

Em 1971, Webster se reuniu pela última vez à orquestra de Duke Ellington, para uma série de concertos em Tivoli Gardens, na Dinamarca. Seu prestígio e sua popularidade mantiveram-se em alta durante todo o tempo em que residiu no Velho Continente. Ele conservou a rotina de gravações, concertos, apresentações em festivais pelo mundo até praticamente o final da vida. O saxofonista faleceu na cidade de Amsterdã, na Holanda, no dia 20 de setembro de 1973. Seu corpo foi enterrado no cemitério de Nørrebro, em Copenhagen, cidade que quase dez anos antes o havia acolhido de maneira tão calorosa.

Pouco depois da sua morte, seus herdeiros criaram a Ben Webster Foundation, mantida com parte dos royalties de seus discos. A fundação tem como principal finalidade apoiar a disseminação do jazz na Dinamarca e nos Estados Unidos e anualmente concede a jovens músicos o Ben Webster Prize. A família também doou a coleção particular de gravações de Webster para o departamento de música da University Library of Southern Denmark, em Odense.

Em 1974, Webster foi indicado, postumamente, para integrar o Down Beat Hall Of Fame, na votação da crítica. Sua influência permanece tão viva quanto a sua música e saxofonistas de gerações e estilos tão diversos quanto Eddie ”Lockjaw” Davis, Lew Tabackin, Paul Gonsalves, Harold Ashby, Frank Foster, Sonny Rollins, Flip Phillips, Georgie Auld, John Coltrane, Charlie Ventura, Scott Hamilton, Branford Marsalis, David Murray, Archie Shepp e Bennie Wallace são, em maior ou menor intensidade, tributários do seu estilo vigoroso e lírico.

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