Música e outras coisas
FALANDO, ISTO É, TOCANDO FRANCAMENTE
Situada em um ponto quase eqüidistante entre o Atlântico e o Pacífico, Kansas City, no estado do Missouri, é um dos maiores celeiros de grandes músicos de jazz. Ali nasceram figuras seminais como Melba Liston, Chris Connor, Ben Webster, Bennie Moten, Curtis Counce e muitos outros. Além dos músicos nascidos ali, a cidade recebeu de braços abertos músicos oriundos de outras partes do país, como Count Basie, Lester Young, Buck Clayton, Coleman Hawkins, Jay McShann, Andy Kirk e uma infinidade de outros grandes nomes. Embora tenha nascido na Kansas City do estado do Kansas, foi na cidade homônima do Missouri que Charlie Parker, que havia se mudado para lá na infância, iniciou a sua brilhante trajetória musical.
Por tudo isso, não é à toa que a cidade designa um estilo bastante próprio dentro do jazz, sinônimo de alegria, vigor e malemolência, um contraponto aos estilos mais ácidos e ferozes praticados em cidades como Nova Iorque, Chicago ou Detroit. Nativo da cidade, Frank Wellington Wess é, sem dúvida alguma, um dos nomes mais importantes da história do jazz produzido ali e seu nome se inscreve entre os mais importantes saxofonistas da fase de transição entre as eras do swing e do bebop.
Nascido em 04 de janeiro de 1922, o aprendizado musical começou aos dez anos, quando começou a estudar sax alto. Morava então em Sapulpa, no estado de Oklahoma, para onde a família havia se mudado em 1931. Em 1935, nova mudança, desta feita para Washington DC, que na época possuía um cenário musical bastante promissor. O amor pelo jazz crescia, na proporção em que a música de orquestras como as de Chick Webb, Earl Hines e Duke Ellington invadia a casa da família Wess pelas ondas do rádio.
Na nova cidade, Frank continuou os estudos musicais, freqüentando a Dunbar High School, onde concluiu o ensino médio em 1937 e também fez parte de sua orquestra. Um dos seus grandes amigos daqueles tempos era o pianista Billy Taylor, um dos mais célebres representantes do jazz praticado na capital dos Estados Unidos. Logo em seguida, ingressou na Howard University Music Conservatory, onde cursou música, durante o biênio 1937/1938. Já relativamente conhecido no meio jazzístico de Washington, ele trabalhou em diversas orquestras, como a da cantora Blanche Calloway, e permaneceu na cidade até 1941, quando foi convocado pelo exército.
Eram os tempos da II Guerra Mundial e Wess serviu em diversos países do norte da África, como Libéria, Marrocos, Argélia e Senegal. Ele jamais entrou em combate – felizmente, pois as tropas alemãs que lutavam na região eram comandadas pelo temível marechal Erwin Rommel, a Raposa do Deserto – e fez parte de um sem número de bandas militares, adicionando a seu cartel novos instrumentos, como o sax tenor, a flauta e o clarinete. Na corporação, Frank viveu suas primeiras experiências como bandleader e arranjador, e teve a honra de acompanhar a lendária cantora Josephine Baker em diversos concertos para as tropas aliadas baseadas em solo africano.
Frank permaneceu no exército até 1945, quando foi dispensado e retrornou aos Estados Unidos. A partir daí, viriam trabalhos com Billy Eckstine, Eddie Heywood, Lucky Millinder e Bull Moose Jackson. Em 1949, decidiu aprofundar os estudos de flauta com Wallace Mann, integrante da National Symphony. Depois, foi estudar com Harold Bennett, flautista da Metropolitan Opera de Nova Iorque, o que o obrigou a se fixar na cidade.
Em Nova Iorque, Frank se matriculou na Modern School Of Music, onde se graduou em flauta, em 1952. Em agosto do ano seguinte, Wess foi contratado pela orquestra de Count Basie, assumindo o sax tenor que anteriormente pertencera a Paul Quinichette. A associação com Basie foi longa e prolífica, resultando em dezenas de gravações e incontáveis concertos, em países como Suécia, Noruega, Dinamarca, Inglaterra, Japão, Itália, Alemanha, Bélgica, Holanda, Portugal, Suíça, Espanha e Canadá. Após adquirir confiança, ele também passou o sax alto e a flauta, instrumentos que dominava com absoluta maestria.
Ao mesmo tempo, Frank dava início a uma belíssima carreira solo, liderando vários pequenos conjuntos e construindo uma sólida carreira fonográfica. Suas primeiras gravações como líder datam de dezembro de 1954, para a pequena for Commodore Records, à frente de um afiado quinteto, do qual faziam parte o trombonista Benny Powell, o pianista Jimmy Jones, o contrabaixista Oscar Pettiford e o baterista Osie Johnson. Em seguida, viriam álbuns por selos como Savoy, Enterprise, Progressive, Uptown, Prestige/Moodsville, Pablo, Concord, JVC, Town Crier, Koch e Chiaroscuro.
Na orquestra de Basie, ele ajudou a popularizar a flauta no jazz e abiscoitou diversas vezes o prêmio de melhor flautista do ano da revista Down Beat, tanto na votação do público quanto da crítica. Graças aos arranjos de Thad Jones e, sobretudo, Neal Hefti, Frank se tornou decisivo para moldar a personalidade sonora da big band, reconhecível aos primeiros acordes pela espontaneidade e vibração extremas. Segundo o venerável Luiz Orlando Carneiro, ele “acabou por ganhar mais fama como flautista do que como saxofonista tenor de rara elegância, inspirado improvisador, descendente estilístico de Lester Young”.
Durante os onze anos em que permaneceu com o Conde, Wess se tornou bastante próximo do também saxofonista, e xará, Frank Foster. Os dois construiriam uma sólida amizade e uma parceria musical que atravessaria as décadas seguintes, proporcionando aos fãs do jazz momentos verdadeiramente sublimes. A associação com Basie perdurou até 1964, quando decidiu partir para outros projetos. Estabelecido em Nova Iorque, Wess fez parte do New York Jazz Quartet, criado pelo pianista Roland Hanna, e liderou suas próprias formações.
Atuando como um dos mais requisitados músicos de apoio dos anos 50 e 60, o nome de Wess pode ser lido nos créditos de álbuns de Harry “Sweets” Edison, Osie Johnson, Joe Newman, Kenny Clarke, Milt Jackson, Al Grey, Etta Jones, Kenny Burrell, Billy Taylor, Sarah Vaughan, Big Joe Turner, Urbie Green, Mal Waldron, Thad Jones, John Coltrane, Buck Clayton, Tony Bennett, Gene Ammons, Ray Charles, Howard McGhee, Pee Wee Russell, Houston Person, Elvin Jones, Ahmad Jamal, Ernestine Anderson, Johnny Hodges, Jimmy McGriff, Oliver Nelson, Roland Kirk, Shirley Horn, Lee Morgan, King Curtis e uma infinidade de outros grandes nomes.
Um dos seus momentos mais memoráveis como frontman pode ser captado no álbum “The Frank Wess Quartet”, gravado no dia 09 de maio de 1960, para a Moodsville, uma subsidiária da Prestige. Se dividindo entre o saxofone tenor e a flauta, Frank lidera um grupo formado por Tommy Flanagan no piano, Bobby Donaldson na bateria (pouco conhecido, mas com trabalhos ao lado de Edmond Hall, Andy Kirk e Buck Clayton) e por seu companheiro na orquestra de Basie, Eddie Jones, no contrabaixo.
A faixa que abre o disco é “It's So Peaceful in the Country”, de Alec Wilder, e a atmosfera relaxada sugerida no título da canção é mantida pelo quarteto. A flauta de Wess passeia com suavidade e leveza pelos acordes, destilando um tênue sabor oriental em alguns momentos. O delicado trabalho de Donaldson com as escovas é dos mais convincentes e o piano de Flanagan, insinuante e discreto, é um dos muitos acertos do arranjo.
Em seguida, é a vez do blues “Rainy Afternoon”, de autoria do líder, que aqui maneja o sax tenor com indiscutível autoridade. Como exige a tradição do blues, a sonoridade de Wess é pesada, rascante e se mostra fortemente influenciada pela escola texana, mas ele também exibe as qualidades de grande improvisador. A ótima integração da sessão rítmica é outro ponto a ser ressaltado, sendo que do ponto de vista das atuações individuais a de Flanagan merece ser apreciada com bastante atenção.
Em “Star Eyes”, de Don Raye e Gene DePaul, o quarteto vai buscar inspiração na música latina e entrega uma versão alegre, com ênfase no aspecto rítmico, com mais uma bela atuação de Donaldson. Mais uma vez com a flauta, Wess é uma usina de criatividade e bom gosto. Sua interpretação é leve e colorida, mas ao mesmo tempo sóbria e totalmente avessa a estrépitos.
A balada “Stella by Starlight”, composta por Ned Washington e Victor Young, recebe um arranjo sutil, quase melancólico. Wess evoca a forte influência de Lester Young, para construir uma apaixonada sonoridade ao tenor. A carga emocional é compartilhada com Flanagan, cujo dedilhado econômico desemboca em uma interpretação na qual os espaços e os silêncios possuem quase tanta importância quanto os acordes escolhidos.
James Van Heusen e Johnny Burke estão presentes com a lindíssima “But Beautiful”. O arranjo delicado passa a impressão de fragilidade e abandono, sensação reforçada pela abordagem impressionista de Wess. A flauta se equilibra entre a desolação e a esperança, a percussão minimalista emula, ainda que intuitivamente, a batida da bossa nova que em pouco menos de quatro anos conquistaria a terra de Tio Sam e as harmonias sofisticadas ao piano remetem ao universo jobiniano de composições como “Falando de amor” ou “Lígia”.
Cativante balada em tempo médio, “Gone with the Wind” foi composta por Allie Wrubel e Herbert Magidson. Wess tem uma atuação inesquecível, extraindo do sax tenor uma sonoridade macia, sem arestas ou efeitos. A última faixa do album é “I See Your Face Before Me”, de autoria de Arthur Schwartz e Howard Dietz. O grupo elabora uma versão dançante, que se desenvolve a partir da percussão cativante de Donaldson e que cresce em intensidade e emoção com a entrada do piano, sempre cristalino, de Flanagan. O líder maneja a flauta com habilidade incomum e transforma uma melodia aparentemente simples em uma experiência sonora marcante. Não é à toa que a crítica especializada costuma dizer que a flauta jazzística se divide em antes e depois de Frank Wess.
A partir da segunda metade da década de 60, Frank fez parte do cast de músicos da rede de televisão ABC, atuando nas orquestras de programas bastante populares como o Saturday Night Live, o Dick Cavett Show, o David Frost Show e o Sammy Davis Jr. TV Show. Ao lado do velho amigo Foster, Wess liderou o quinteto chamado Two Franks, presença cativa nos clubes da Grande Maçã. Outra associação importante foi na big band de Clark Terry, ele próprio um ex-integrante da orquestra de Basie.
Mostrando não ter nenhum tipo de preconceito musical, Wess participou do coletivo Jazz Composer's Orchestra, grupo criado pelo trompetista Michael Mantler em meados dos anos 60 e que congregava artistas ligados ao jazz de vanguarda. A orquestra lançou um álbum homônimo em 1968 e Frank toca sax alto, dividindo os créditos com uma série de jovens músicos que, nos anos seguintes, se tornariam figuras de proa do jazz, como Gato Barbieri, Carla Bley, Ron Carter, Don Cherry, Larry Coryell, Andrew Cyrille, Richard Davis, Eddie Gomez, Jimmy Knepper, Steve Lacy, Roswell Rudd, Steve Swallow, Lew Tabackin, Cecil Taylor, Randy Brecker, Reggie Workman, Pharoah Sanders, Ed Blackwell, entre outros.
Durante os anos 70 e 80, a agenda de Wess continuou bastante lotada, tendo atuado em álbuns de medalhões da música pop, como Aretha Franklin, Roberta Flack, The Sisters Sledge, Stevie Wonder e George Benson. Durante todo o ano de 1972, Frank percorreu os Estados Unidos, ministrando palestras, conferências e oficinas, dentro de um projeto promovido pela IAJE – International Association for Jazz Education, que objetivava resgatar a trajetória das big bands, com ênfase nos aspectos técnicos como arranjo e composição. Grandes nomes marcaram presença nesse projeto, como Clark Terry, Gary Burton, Frank Foster, Bob Wyatt e Bill Watrous. Ele também esteve envolvido em outros projetos de relevantes, como a banda Dameronia, criada pelo baterista Philly Joe Jones e pelo trompetista Don Sickler, com o objetivo de resgatar as composições do genial Tadd Dameron.
Frank também fez parte das orquestras de Woody Herman e Toshiko Akiyoshi, tendo escrito arranjos para ambas. No final da década de 80, criou uma big band com diversos ex-integrantes da orquestra de Count Basie, tais como Harry “Sweets” Edison, Joe Newman, Snooky Young, Al Grey, Benny Powell, Marshal Royal e Billy Mitchell. A banda gravou álbuns bastante elogiados pela crítica, como “Entre Nous” (Concord, 1990) e “Dear Mr Basie” (Absord, 2003).
Em ambientes eminentemente jazzísticos, Wess não perdeu a antiga mania de trabalhar como um alucinado e nos últimos vinte anos tem atuado, seja como líder, seja como sideman, ao lado de Kenny Barron, Bill Charlap, Gerald Wilson, Rufus Reid, Dakota Stanton, Benny Carter, Frank Sinatra, Mel Tormé, Louie Bellson, John Pizzarelli, Gene Harris, John Bunch, Lionel Hampton, Howard Alden, Dexter Gordon, Sonny Stitt, Milt Hinton, Dick Hyman, Grady Tate, Frank Vignola, Jon Faddis, Jerry Dodgion e Hank Crawford, entre muitos mais.
Durante quase dez anos, foi o principal tenorista da Carnegie Hall Jazz Band e também excursionou com a Dizzy Gillespie Alumni Big Band. Em 1995 lançou pela Chiaroscuro o excelente álbum duplo “Surprise! Surprise!”, que contou com as participações especiais de três lendas vivas do jazz: Flip Philips, Jimmy Heath e Frank Foster. Em 2004, Wess foi eleito o flautista do ano, pela Jazz Journalists Association, entidade que congrega críticos e jornalistas ligados ao jazz (em 2009 ele voltaria a abocanhar o prêmio). No ano seguinte, ele fez uma temporada à frente da Juilliard Jazz Ensemble, formada por alunos daquela prestigiosa instituição.
Wess também já foi laureado por algumas das mais importantes instituições de ensino dos Estados Unidos, por sua relevante contribuição para o desenvolvimento do jazz. Dentre as muitas escolas e universidades que já lhe renderam homenagens, estão a Cornell University, a Notre Dame University, a Oberlin University e a University Of New Hampshire. Em 2007 ele foi agraciado com o American Jazz Masters Fellowship, concedido pela The National Endowment For The Arts, provavelmente a mais importante honraria que um músico de jazz pode almejar.
Lúcido e cheio de vitalidade, Frank continua trabalhando de maneira infatigável, se apresentando em casas noturnas e festivais pelo mundo, como o de Estoril, o de Berna, o de San Sebastián, o de Monterey, o de Chicago e o tradicional Charlie Parker Jazz Festival, em Nova Iorque. Em 2006 lançou o badalado “Hank And Frank”, pela Lineage Records, no qual dividia a liderança com o lendário pianista Hank Jones. Três anos depois, a dupla repetiria a dose com o não menos primoroso “Hank And Frank 2”, que recebeu da revista Down Beat impressionantes cinco estrelas, cotação máxima daquela que é considerada a mais importante publicação sobre jazz do planeta.
Em março de 2011, participou de um concerto em homenagem ao recentemente falecido James Moody, realizado no Blue Note de Nova Iorque e que também contou com as ilustres presenças de Lew Tabackin, Kenny Barron, Cyrus Chestnut, Paquito D'Rivera, Roberta Gambarini, Antonio Hart, Jimmy Heath, Lewis Nash e David Sanborn, entre outros. O valor arrecadado no evento foi integralmente doado à James Moody Scholarship for Newark Youth, entidade voltada para apoiar jovens músicos carentes. Para deleite dos fãs do jazz, Wess continua a trilhar sua extraordinária trajetória musical com o apetite de um iniciante.
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