Música e outras coisas
ONDE ESTÁ A MÚSICA?
Os modos gentis e o temperamento cordato renderam a Kai Winding o apelido de “O cavalheiro do jazz”. Mas esse dinamarquês que fez carreira nos Estados Unidos e foi uma das figuras mais importantes da primeira geração do bebop era mais que um homem de hábitos refinados e personalidade cativante. Era também um dos mais técnicos, exuberantes e talentosos trombonistas que despontaram nos anos 40. Embora seja pouco lembrado atualmente e, de certa forma, tenha ficado à sombra do amigo e parceiro J. J. Johnson, seu nome está gravado no panteão dos grandes personagens do jazz e sua influência se estende até os dias de hoje.
Kai Chresten Winding nasceu no dia 18 de maio de1922, na cidade de Arhus, Dinamarca. O pai era funcionário da General Motors e em 1934 foi transferido, obrigando a família a se mudar para os Estados Unidos. Os Winding fixaram residência em Nova Iorque e na nova cidade, o jovem Kai travou contato com o jazz e com o som contagiante das big bands, que espalhavam aquela música contagiante pelas ondas do rádio.
Foi durante aquele período que Kai descobriu as suas inclinações musicais, adotando o acordeão como seu primeiro instrumento. Autodidata, costumava praticar ouvindo as canções no rádio e, em seguida, tentava reproduzi-las no instrumento. Em 1936 optou pelo trombone e em pouco tempo já era capaz de tocar com bastante desenvoltura, seguindo os passos de seus ídolos Trummy Young e Jack Teagarden. Recebeu aulas do conhecido trombonista e educador musical Don Reinhardt, fez parte de algumas orquestras da Stuyvesant High School, onde cursou o ensino médio, e no final da década de 30 já estava na estrada, atuando como profissional
Seu primeiro emprego foi na orquestra de Shorty Allen. Em seguida, viriam trabalhos nas big bands de Sam Donahue, Sonny Dunham (ao lado de quem entrou em um estúdio de gravação, pela primeira vez, em 1942) e Alvino Rey. Como muitos músicos daquele período, Kai sentia enorme desconforto ao tocar os arranjos lineares e, de certa forma, previsíveis das orquestras de swing. Kai conheceu outros jovens músicos de espírito tão inquieto e que buscavam impor ao jazz uma nova linguagem e a música que faziam recebeu o nome de bebop.
Eram eles Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Bud Powell, Kenny Clarke, Joe Guy, Charlie Christian e outros mais, que se reuniam no Minton’s Playhouse, uma modesta casa noturna do Harlem cujo diferencial era a ampla liberdade que os músicos tinham para tocar e improvisar à vontade. As jams no clube se estendiam pela madrugada e muitos músicos saíam de suas apresentações nas orquestras e iam para lá, munidos apenas de seus respectivos instrumentos e uma infatigável vontade de tocar.
Ao lado de J. J. Johnson, outro freqüentador assíduo do Minton’s, Kai foi o primeiro músico a transpor para o trombone as inovações harmônicas advindas com o bebop. Em 1942, Winding foi recrutado pela Guarda Costeira e na corporação fez parte de uma orquestra comandada por Bill Schallen. Com essa orquestra ele gravou, em 1944, vários V-Discs (uma espécie de LP) destinados a entreter os soldados norte-americanos que lutavam na II Guerra Mundial.
Dispensado na primavera de 1945, Winding foi trabalhar em uma banda chamada Manor All Stars, liderada pelo trompetista Roy Stevens. Naquele mesmo ano, Kai se casaria com Marie Emery, sua primeira esposa, e viveria uma breve, porém marcante, experiência profissional. Benny Goodman, um dos mais bem sucedidos bandleaders da época, tinha grande respeito pelo bebop e por seus artífices, e também costumava participar de gigs no Minton’s. Admirador da sonoridade de Kai, Benny contratou o trombonista para a sua orquestra, onde também pontuavam os grandes Stan Getz e Mel Powell, em outubro daquele ano.
Winding fez a sua primeira gravação como líder em dezembro de 1945, para a Savoy, liderando um sexteto formado por Stan Getz, Shorty Rogers, Shorty Allen, Iggy Shevack e Shelly Manne. Em janeiro de 1946 o trombonista deixou a orquestra de Goodman, para logo em seguida se juntar à big band de Stan Kenton, onde tocou com ases como Vido Musso, Bob Cooper, Eddie Safranski e Shelly Manne. No ano seguinte, mais uma mudança e Kay foi tocar com o saxofonista Charlie Ventura. Entre 1948 e 1949 fez parte do grupo do pianista Tadd Dameron, dividindo as atenções com o virtuose Fats Navarro.
Como sideman, Winding ia, pouco a pouco, construindo uma sólida reputação e tomou parte em gravações de Vido Musso, June Christy, Neal Hefti, Coleman Hawkins, Al Haig, Ray Brown, Lester Young e George Wallington, entre outros. Também participou de uma das primeiras edições dos Metronome All Stars, onde também atuavam Dizzy Gillespie, Buddy De Franco, Charlie Parker, Charlie Ventura, Lennie Tristano, Billy Bauer, Eddie Safranski e Shelly Manne, com arranjos e regência de Pete Rugolo.
O trombonista esteve presente no célebre noneto liderado por Miles Davis, que em 1949 deu ao mundo o fabuloso álbum “Birth Of The Cool”. Na época, ele fazia parte da banda liderada pelos saxofonistas Brew Moore e Gerry Mulligan, bastante ativa em clubes da Rua 52, como o Royal Roost e o Birdland. Nos anos 50, Kai passou a liberar seus próprios conjuntos e em 1954 montou, com J. J. Johnson, um combo cuja formação era inédita até então, com dois trombones à frente. A parceria durou até 1956 e rendeu álbuns preciosos como “Live At Birdland” (RCA-Victor, 1954), “Jay And Kay Quintet” (Prestige, 1954) e “Trombone For Two” (Columbia, 1955).
No mesmo período, Kai foi contratado por Hugh Hefner, proprietário da revista Playboy e grande fã de jazz, para ser o diretor musical dos clubes que mantinha em Nova Iorque. Após o fim da parceria com Johnson, ele montou um sexteto com seis trombones, que gravou intensivamente para a Impulse entre 1956 e 1961. Naquele ano, Winding recebeu um convite do produtor Creed Taylor, que o levou para a Verve.
Seus discos para a gravadora fundada por Norman Granz fizeram grande sucesso de público, misturando elementos de música latina, country, soul e bossa nova com o jazz e interpretando canções de músicos ligados à música pop, como Johnny Cash, Henry Mancini e as duplas John Lennon e Paul McCartney, Burt Bacharach e Hal Davis ou Jerry Leiber e Mike Stoller. Os arranjos geralmente ficavam sob a responsabilidade do maestro Claus Ogerman ou do saxofonista Oliver Nelson e algumas de suas gravações, como "More", tema do filme "Mondo Cane", e "Watermelon Man", de Herbie Hancock, chegaram a figurar no Top 30 das paradas pop.
De qualquer forma, mesmo tendo enveredado por searas mais comerciais, Kai jamais abandonou o jazz ou sofreu qualquer arranhão em seu prestígio. De fato, seja como sideman, ele pode exibir um cartel dos mais vistosos, pois ao longo da carreira dividiu palcos e estúdios com alguns dos maiores nomes do jazz, como Lee Konitz, Serge Chaloff, Max Roach, Cecil Payne, Howard McGhee, Zoot Sims, Georgie Auld, Gerry Mulligan, Artie Shaw, Buck Clayton, Phil Urso, Horace Silver, Warne Marsh, Milt Hinton, Billy Taylor, Herbie Mann, Brew Moore, Budd Johnson, Fats Navarro, Red Rodney, Gene Krupa, Al Cohn, Percy Heath, Art Blakey, Mundell Lowe, Ernie Royal, Urbie Green, Woody Herman, Paul Chambers, Kenny Burrell, Roy Eldridge, John Lewis, Charles Mingus, Tal Farlow, Oscar Pettiford, Red Garland, Bill Evans, Roy Haynes, Jimmy Cleveland, Melba Liston, Phil Woods, Jim Hall, Roland Kirk, Hubert Laws, Jerome Richardson, James Moody e uma infinidade de outros mais.
Um dos discos mais espetaculares de Winding, onde ele está muito bem acompanhado pela alma gêmea musical, J. J. Johnson, é “The Great Kai & J. J.”. Lançado pela Impulse, o álbum foi gravado entre os dias 04 e 09 de novembro de 1960 e reedita a parceria que causou furor nos meios jazzísticos da década anterior. A sessão rítmica é extraordinária: Bill Evans no piano, Paul Chambers ou Tommy Williams no contrabaixo e Roy Haynes ou Art Taylor na bateria.
O disco abre com a feérica “This Could Be the Start of Something Big”, de Steve Allen, onde os dois trombonistas destilam energia e swing abrasadores. O diálogo entre os dois, primeiramente no estilo pergunta e resposta e em seguida em uma vocalização em uníssono, é uma primorosa demonstração de técnica e sentido harmônico. Atenção para a batida infalível de Haynes, quase um metrônomo.
A doce “Georgia on My Mind”, pérola de autoria de Hagy Carmichael, merece um arranjo primoroso, com Kai fazendo a primeira voz e Johnson entrando em seguida. Nos solos, a expertise técnica superior desses dois ases se evidencia ainda mais. O clima etéreo é obra e graça de Evans, pianista para quem o adjetivo lírico parece ter sido especialmente inventado.
Quando Winding e Johnson montaram o seu quinteto, muitas vozes se levantaram contra o que era visto como uma verdadeira heresia: não era possível montar um pequeno conjunto com dois trombones na linha de frente. É uma meia verdade: de fato, um combo com dois trombones é uma heresia, salvo se os trombonistas envolvidos forem os excepcionais Kai e J. J. As evoluções que esses dois mestres elaboram em “Blue Monk”, de Thelonious Monk, são uma prova cabal disso. E a emocionante introdução feita por Evans é de tirar o fôlego.
Em “Judy”, composição de Johnson, mais uma formidável dose de histamina. Hard bop sacolejante e assobiável, é um tema bastante melódico. O primeiro solo fica a cargo do autor, e a sua sonoridade é mais encorpada. O som de Kai é mais escorregadio, graças ao ótimo uso da surdina. Solista dos mais engenhosos, Evans extrai faíscas em suas intervenções e o fraseado opulento de Chambers casa-se à perfeição com o som da dupla de trombones.
“Alone Together”, de Arthur Schwartz e Howard Dietz, é revisitada em um arranjo em tempo médio. J. J. se encarrega do primeiro solo, seguido por Kai, e ambos extraem dos seus instrumentos uma sonoridade quase lamentosa, outonal. O grande Art Taylor, dono de uma técnica irrepreensível, reforça a atmosfera sombria com uma percussão discreta e espaçada.
A sacolejante “Side by Side”, composta por Harry Woods, vem a seguir e retoma a animação típica da Era do Swing. J. J. emenda um solo fabuloso, repleto de variações harmônicas, preparando o terreno para a performance do parceiro, ainda mais arrebatadora. Como de hábito, a sessão rítmica providencia um acompanhamento esmerado e descontraído. Chambers e Haynes, em especial, se desdobram na ancoragem para que os dois solistas possam brilhar. O passeio de Evans pelas regiões mais agudas do teclado é memorável.
“I Concentrate on You”, de Cole Porter, recebe um arranjo típico de uma jam session, irreverente e relaxado. Com arranjo de Kai, que se responsabiliza também pelo primeiro solo, o quinteto se mostra muito à vontade para se divertir com as mais diversas possibilidades harmônicas. Bill Evans emenda um solo portentoso, vibrante e complexo. Atente-se para a atuação de Haynes, que impõe um pouco de latinidad em sua percussão, tornando o tema ainda mais rico.
O blues “Theme from Picnic”, de autoria de George Duning e Steve Allen, é executado em um saboroso tempo médio. Os solos são distribuídos na seguinte ordem: primeiro J. J. e Kai em seguida. O de J. J. é mais robusto e o de Kai, outra vez com a surdina, é mais cadenciado. O trabalho de Taylor com as escovas é uma aula de bom gosto e precisão.
“Trixie” foi composta por Johnson e possui uma atmosfera toda particular, remetendo às labirínticas composições de Monk. Sua base é o blues, mas podem-se perceber influências do gospel e uma discreta aproximação com o jazz de vanguarda. É o tema mais complexo do álbum, com solos de J. J. e Kai, respectivamente. O piano de Evans consegue conciliar harmonias arrojadas com a velha técnica dos acordes blocados popularizada por Red Garland.
“Going, Going, Gong!”, é o único tema de autoria de Winding e tem um discreto acento oriental, em grande medida por conta da percussão exuberante de Taylor, que em alguns momentos usa um gongo chinês para dar colorido à faixa. Kai e J. J. duelam em velocidade estonteante e o bom-humor da dupla remete às composições de Henri Mancini para o cinema.
Fechando o disco, a melancólica “Just for a Thrill”, de Don Raye e Lil Hardin Armstrong, tem um acento bluesy delicioso. A atuação dos líderes prima pela sobriedade, com J. J. entrando em cena em primeiro lugar e Kai pouco depois. O dinamarquês usa a surdina como um delicioso complemento, sem excessos ou exibicionismos. O breve solo de Evans vem embalado em uma pegada de blues bastante generosa. Para quem não está familiarizado com o som especialíssimo de Winding, esse disco é mais do que recomendado.
Em 1968, ele deixou a Verve e assinou com a A&M/CTI, por onde lançou apenas um álbum, “Israel”. Voltando ao ambiente jazzístico, Kai está à frente de um sexteto da pesada: J.J. Johnson no trombone, Herbie Hancock no piano, Eric Gale na guitarra, Ron Carter no contrabaixo e Grady Tate na bateria. No final da década de 60, Winding co-liderou uma big band com Urbie Green, outro trombonista de primeira linha. Na década seguinte, ele repetiria a dose, desta feita à frente do “Giant Bones”, onde a liderança era compartilhada com o genial Curtis Fuller.
Entre 1971 e 1972, ele integrou um grupo all-star chamado “Giants of Jazz”, no qual também tocavam Dizzy Gillespie, Sonny Stitt, Thelonious Monk, Al McKibbon e Art Blakey. O grupo participou de vários festivais pelo mundo e legou à posteridade o fantástico “The Giants of Jazz” (Atlantic), gravado ao vivo no Victoria Theatre, em Londres, no dia 12 de novembro de 1972. Segundo o crítico Scott Yanow, trata-se de uma “sessão histórica e superlativa”.
Os anos 70 encontraram um Winding bastante ativo. Foi membro da All-Star Big Band, comandada pelo legendário Lionel Hampton. O trombonista foi uma das atrações do Festival de Newport de 1972, à frente de uma banda onde atuavam Flip Phillips e Zoot Sims. Continuou a gravar com freqüência para selos independentes, como Sonet, Glendale, Storyville e Black & Blue, sendo que um dos seus trabalhos mais relevantes da época foi o disco “Trombone Summit”, (MPS, 1980), onde se reúne com três trombonistas de peso: Albert Mangelsdorff, Bill Watrous e Jiggs Whigham.
Em 1982, Kai se reuniu pela última vez com o velho camarada J.J. Johnson, para uma apresentação no Aurez Jazz Festival daquele ano. Morando desde meados dos anos 70 na Espanha, na companhia da terceira mulher, Eleanor Winding, o trombonista levava uma vida confortável e podia se dar ao luxo de só tocar quando realmente quisesse. Presença constante em festivais pela Europa e na plenitude de sua criatividade, ele era um homem saudável que raramente ficava doente.
Durante alguns exames de rotina, feitos por causa de uma dor de cabeça intermitente, ele recebeu o diagnóstico de um câncer no cérebro. Bem-humorado e apaixonado pela vida, Kai era uma das personalidades mais queridas no mundo do jazz. Segundo Eleanor, ele "amava as cores, a natureza e a melodia. Ele sempre manteve o espírito jovem e acreditava que cada dia de vida era uma grande aventura". Após uma batalha de cinco meses contra a doença, ele faleceu no dia 06 de maio de 1983, em Nova Iorque. Suas últimas palavras à esposa foram: “Onde está a música?”.
Kai foi o grande homenageado do Kool Jazz Festival, realizado em junho daquele ano. A semente musical continua viva na família. Seu filho, o pianista e arranjador Jai Winding, é um respeitado músico de estúdio e já trabalhou com grandes nomes do jazz e da música pop, como Diane Schuur, Bee Gees, George Benson, Barbra Streisand, Julian Lennon, Michael Jackson, Cher, Madonna, America, The Eagles, Kenny Loggins, Boz Scaggs, Donna Summer e muitos outros.Para o querido Pedro "Apóstolo" Cardoso, "Kai Winding foi bastante influenciado pelos mestres Jack Teagarden e Trummy Young mas, sem dúvida e ao lado de J.J.Johnson, foi dos primeiros músicos na adaptação do trombone para o “bebop”. Sua sonoridade, desprovida de vibrato, influenciou toda a seção de trombones da “máquina” de Stan Kenton dando-lhe seu timbre original. Foi um excelente técnico e conseguiu contribuir de maneira decisiva para que seu instrumento, o trombone, tivesse suas possibilidades reconhecidas no painel moderno do jazz".
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