As principais metrópoles americanas, como Chicago, Los Angeles e Nova York, viraram feudos do crime organizado, que empanturrava seus cofres graças ao contrabando de álcool. Boates, clubes e casas noturnas pagavam fortunas à máfia para manter elevados os seus estoques de Bourbon. Os speakeasies (bares clandestinos, geralmente situados no subsolo, onde se costumava falar baixo, para não atrair a atenção da polícia) floresciam. A fabricação clandestina de fundo de quintal, responsável por lançar no mercado produtos de péssima qualidade, também fez lá as suas vítimas – talvez a mais célebre delas tenha sido Bix Beiderbecke – durante os loucos anos 20, período que mereceu de Scott Fitzgerald o inesquecível apelido de “A Era do Jazz”.
Al Capone reinava absoluto na Chicago dos anos 20. Construiu, à base de generosas rajadas de metralhadora Thompson, um verdadeiro império do crime, com um portfólio que ia do contrabando de bebida à exploração do jogo, passando pela prostituição e por homicídios a granel. Talvez Capone estivesse até mesmo praticando o tiro ao alvo em algum desavisado adversário ou extraindo-lhe o cérebro a marretadas quando, no dia 13 de outubro de 1927, nasceu, na mesma Chicago infestada de mafiosos, um dos mais inventivos músicos do jazz: Lee Konitz.
Não obstante, o capo ficaria bastante contente de saber que ali, em seu território, nascia um dos mais originais e talentosos saxofonistas de todos os tempos. Fã de jazz e, sobretudo, do estilo esfuziante de Fats Waller, é conhecida a história de que teria mandado seqüestrar o pianista, que ficou sob sua guarda por quase uma semana, em uma nababesca rotina de festas, comidas, bebidas e mulheres – não necessariamente nessa ordem. Ao final da epopéia, Waller saiu alguns quilos mais gordo e muitos dólares mais rico, tantas foram as notas de cem dólares que o gângster, extasiado com as performances do “hóspede”, enfiava nos bolsos do seu paletó.
Voltemos a Konitz. Aos oito anos, encantado com o som da orquestra de Benny Goodman, o garoto – também de origem judia, como o primeiro ídolo – começou a tomar as primeiras aulas de clarinete. Por volta dos 12 anos, passou ao sax tenor e, finalmente, fixou-se no sax alto. Com 16 anos fazia as primeiras aparições como profissional, na banda do guitarrista Teddy Powell. Em seguida, permaneceu cerca de dois anos na banda do clarinetista Jerry Wald, até juntar-se à orquestra de Claude Thornhill, em 1947.
Nesse período, Konitz começou a ouvir com assiduidade o bebop praticado por Charlie Parker e Dizzy Gillespie, amalgamando a essas novas informações sonoras a influência do delicado Lester Young. Encontrou em Lennie Tristano, renomado pianista de Chicago, a inspiração para seguir em frente com as suas ousadas concepções harmônicas, na tentativa de explorar os caminhos abertos por Bird. Durante o tempo em que colaborou com Tristano, conheceu o saxofonista tenor Warne Marsh, futuro parceiro e grande amigo.
Em 1949, já estabelecido em Nova Iorque, Konitz participou da gravação do histórico álbum “Birth of the Cool”, de Miles Davis, com arranjos de Gil Evans e John Lewis. No início dos anos 50, tocou com vários músicos ligados à West Coast, como Shelly Manne, Gerry Mulligan e Chet Baker. Sua abordagem pouco ortodoxa rendeu-lhe um convite para ingressar na orquestra do modernista Stan Kenton, de onde saiu em 1954 para construir uma das obras mais prolíficas e originais do jazz, incluindo-se o maravilhoso álbum “Motion”, de 1961, ao lado do baixista Sonny Dallas e do explosivo baterista Elvin Jones.
Seis anos antes, Konitz juntou-se ao velho amigo Warne Marsh para gravar o antológico “Lee Konitz With Warne Marsh”, para a Atlantic. Um repertório que vai do swing ao cool, do blues ao nascente hard bop, é executado de maneira impecável. O fraseado algo frágil de Konitz se concatena perfeitamente com a sonoridade cristalina de Marsh, um aplicado discípulo de Lester Young. Completam o sexteto o pianista Sal Mosca, o guitarrista Billy Bauer, o baixista Oscar Pettiford e o baterista Kenny Clarke, sendo que em “Ronnie’s Line” Mosca é substituído por Ronnie Ball.
O álbum, gravado em junho de 1955, tem vários momentos sublimes, como a emocionante versão de “I Can’t Get Started”, na qual os saxofones de Konitz e Marsh dialogam em uníssono, criando um clima de absoluta cumplicidade. O blues “Don’t Squawk”, de Pettiford, é bastante heterodoxo, sinuoso como uma composição de Monk, e o baixista se esmera tanto na parte rítmica quanto no magistral solo. A abordagem bastante peculiar dos saxofonistas em “Topsy” dá um novo frescor a essa antiga composição da década de 30, verdadeiro cavalo de batalha dos músicos vinculados à West Coast, com a curiosidade adicional de ser executada sem a participação do piano.
“There Will Never Be Another You”, imortalizada na voz de Chet Baker, ganha um arranjo mais impetuoso, eminentemente bopper, com Konitz evocando – como raramente faria em toda a sua carreira – o ídolo Charlie Parker. O compositor Bird comparece com “Donna Lee”, outro ponto alto, no qual o piano de Mosca se responsabiliza por um dos solos mais velozes e intrigantes do disco, digno de um Bud Powell.
O antigo mentor dos líderes não foi esquecido. “Two Not One”, cujo título parece ter sido feito para incensar a dupla de saxofonistas, paga um merecido tributo a Tristano. É complexa, assimétrica e altamente cool. “Ronnie’s Line” (de Ball) e “Background Music” (de Marsh) encerram o álbum em alto estilo, a primeira fazendo uma excelente reverência ao bebop dos anos 40 e a segunda saudando, ainda que discretamente, o hard bop que então se anunciava. Um álbum que é um verdadeiro marco na construção do jazz moderno e que, da primeira à última faixa, mantém um olhar respeitoso para com a tradição e bastante sequioso para com as possibilidades do futuro.
Marsh foi um saxofonista viril, altamente criativo e extremamente técnico. Reza a lenda que, certa feita, o já consagrado Stan Getz teria se recusado a participar de uma jam, com receio de ter que enfrentar o aguerrido tenorista. Integrou a orquestra “Supersax” nos anos 70 e gravou com grandes nomes, como Bill Evans, Red Mitchell, Art Pepper e Hank Jones. Em sua pequena discografia como líder, há, pelo menos, uma pérola preciosíssima: o extraordinário “Berlin 1980”, ao lado de Eddie Gomes (b) e dos velhos camaradas Kenny Clarke e Sal Mosca. Faleceu em 17 de dezembro de 1987, em decorrência de um infarto fulminante, em pleno palco do clube Donte’s, enquanto tocava “Out Of Nowhere”, na mesma Los Angeles onde nasceu. Jamais deixou de acreditar que o jazz fosse, de fato, o som da surpresa.
Konitz, cidadão do mundo, permanece em plena atividade. Residiu muitos anos na Europa e nunca perdeu o espírito desbravador e nem a avidez pela busca de novos caminhos, o que inclui regulares incursões pelo free e por outras correntes ligadas à vanguarda. Desde os anos 50, vem gravando incessantemente, sendo responsável por uma discografia das mais extensas, por selos como Verve, Enja, Steeplechasde, Lonehill, Milestone e Candid. Lançou pela Blue Note, em 1997, os ótimos “Alone Together” e “Another Shade Of Blue”, ao lado dos incensados Charlie Haden e Brad Mehldau. Sua intensa atividade traduz aquilo que ele sempre afirmou ser: um caixeiro-viajante a serviço da improvisação.
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