TRAFEGANDO COM MAESTRIA ENTRE O ERUDITO E O POPULAR
Música e outras coisas

TRAFEGANDO COM MAESTRIA ENTRE O ERUDITO E O POPULAR






Pianista, arranjador, compositor, diretor musical, educador. Muitas foram as facetas de John Aaron Lewis, certamente uma das figuras seminais do jazz. Não bastasse ter ajudado a criar o cool jazz, estilo que promoveu uma luxuosa releitura do bebop, ter sido um dos principais articuladores da chamada Third Stream, corrente que tentou promover a fusão de elementos da música erudita e do jazz, e ter liderado o Modern Jazz Quartet, ele ainda legou ao mundo composições geniais como “Django”, “Milano”, “Afternoon In Paris”, “La Ronde”, “Rouge”, “Concorde”, “Two Degrees East, Three Degrees West”, “Skating in Central Park” e “Two Bass Hit”.


Todos que conviveram com ele são unânimes em reconhecer a sua gentileza no trato pessoal, sua seriedade como pesquisador musical e sua generosidade. De fato, durante os anos 60 Lewis bancou, de seu próprio bolso, uma orquestra integrada apenas por jovens carentes, chamada Orchestra USA, que chegou a se apresentar no prestigioso Carnegie Hall. Seu prestígio na Atlantic, por onde o Modern Jazz Quartet lançou a grande maioria dos seus discos, era tamanho que a gravadora mantinha dois pianos: um para as gravações regulares dos artistas de seu cast e outro exclusivamente para Lewis.


Nascido no dia 03 de maio de 1920, em La Grange, Ilinois, ainda bem pequeno perdeu o pai e, por essa razão, sua mãe mudou-se para Albuquerque, no Novo México. Com sete anos iniciou os estudos de piano, pelas mãos de uma tia, e em pouco tempo já acompanhava os cultos na igreja batista freqüentada por sua família. A fim de aperfeiçoar seu estilo, começou a estudar com um conhecido pianista da cidade adotiva, chamado Eddie Carson


Embora os estudos de piano fossem essencialmente na seara erudita, o garoto adorava jazz e costumava assistir às apresentações das orquestras de Count Basie e Duke Ellington, espetáculos que o marcariam para sempre. Com 14 anos, chegou a tocar com o grande Lester Young, que na ocasião excursionava pelo Novo México e que fez rasgados elogios à performance do garoto.


Além de extremamente inteligente, Lewis era um aluno bastante dedicado e aos dezessete anos ingressou na University of New Mexico, a fim de estudar música e antropologia. Formado em 1942, o pianista se alistou no exército, onde permaneceu até 1946. Durante o período nas forças armadas, chegou a ser mandado para a Europa – o mundo vivia os horrores da II Guerra Mundial – e ali conheceu o baterista Kenny Clarke, de quem se tornou amigo.


Dispensado em 1945, Lewis se mudou para Nova Iorque, disposto a investir na carreira musical. Instigado por Clarke sobre a efervescência do cenário jazzístico da cidade, uma de suas primeiras providências na cidade foi assistir aos espetáculos de Dizzy Gillespie e Charlie Parker, que vinham mudando a cara do jazz feito na época. Seus primeiros trabalhos foram em clubes da Rua 52, acompanhando o saxofonista Allen Eager e, posteriormente, o trompetista Hot Lips Page.


Não demorou muito e o próprio Dizzy Gillespie o contratou para sua orquestra, em substituição a Thelonious Monk. Ali, reencontrou o amigo Clarke e conheceu o baixista Ray Brown e o vibrafonista Milt Jackson. Lewis permaneceu na big band de 1946 a 1948, e além de pianista, também atuou como arranjador, tendo concebido os arranjos da orquestra na célebre apresentação no Carnegie Hall, em setembro de 1947. O lado compositor também começou a aflorar naquela época e “Two Bass Hit” é fruto de uma parceria com Dizzy.


Durante o período na orquestra de Gillespie, Lewis desenvolveu uma carreira paralela como músico de apoio, acompanhando gente do calibre de J. J. Johnson, Illinois Jacquet, Lester Young, Clifford Brown, Miles Davis, Ella Fitzgerald e Charlie Parker. Até o fim da vida, Lewis dividiria os palcos e estúdios com alguns dos maiores nomes do jazz, como Sonny Rollins, Stan Getz, Charles Mingus, Lou Donaldson, Coleman Hawkins, Benny Golson, Ben Webster, Sonny Stitt e muitos mais.


A identificação musical com Miles Davis foi imediata e os dois começaram a trabalhar juntos. Reuniram-se com outros músicos de idéias musicais parecidas, como o pianista e arranjador Gil Evans, o baterista Max Roach e os saxofonistas Gerry Mulligan e Lee Konitz. Dessas reuniões, quase sempre realizadas no apartamento de Evans, na Rua 55, surgiram as bases do movimento cool, e muitas das composições e arranjos elaborados pelo grupo estão no disco “Birth of the Cool”, um dos mais importantes da história do jazz. Lewis fez os arranjos para “Move” e “Budo”, além de ter contribuído com “Rouge”, de sua própria autoria.


No final da década de 40, Lewis se juntou a Kenny Clarke, Milt Jackson e Ray Brown, a fim de montar um pequeno grupo diferente de tudo o que vinha sendo feito à época. Estava criado o Milt Jackson Quartet, cujo nome posteriormente foi trocado para Modern Jazz Quartet, um dos mais longevos e respeitados combos de todos os tempos. Dois dos membros originais saíram: Brown foi substituído por Percy Heath e Clarke por Connie Kay.


Em 1953 obteve o mestrado em música na Manhattan School of Music, ao mesmo tempo em que o MJQ começava sua carreira fonográfica, lançando seu primeiro álbum, “Django”, pela Prestige. A composição que dá nome ao disco é de autoria de Lewis e é uma homenagem ao guitarrista belga Django Reinhardt. O MJQ se caracterizava pela utilização de elementos da música erudita, mas não abria mão do swing e da pegada jazzística. Como bem observou o crítico Max Harrison, Lewis “foi bem sucedido onde muitos outros falharam, ao transplantar elementos da música clássica para o jazz, sem violentar o estilo”.


Em 1956 o grupo fez uma aclamada temporada no Birdland, além de ter feito uma excursão consagradora pela Europa, juntamente com Miles Davis, Lester Young e Bud Powell. No ano seguinte, o pianista ajudou a montar a Lennox School of Jazz, da qual foi diretor executivo e professor. Ainda em 1957, Lewis compôs a trilha sonora do filme “No Sun in Venice”, dirigido pelo francês Roger Vadim.


Em 1958, Lewis assumiu a direção musical do Monterey Jazz Festival, somente se afastando do cargo em 1982. Em 1959, Lewis e o MJQ criaram a trilha sonora do filme “Odds Against Tomorrow”, dirigido por Robert Wise e estrelado pelo cantor Harry Belafonte. Em 1961 compôs o balé “Original Sin”, para a companhia San Francisco Ballet. Em 1962, criou, juntamente com o crítico musical Gunther Schuller, a Orchestra U.S.A, cujas apresentações e discos contaram com a participação de músicos como Ornette Coleman e Gerry Mulligan. Naquele mesmo ano, mais uma trilha sonora, desta feita para o filme “Uma storia milanese”, do diretor Luchino Visconti.


Além das gravações com o MJQ, a discografia de Lewis inclui diversos álbuns como líder. Um dos mais brilhantes é “Grand Encounter”, descrito pelo Mestre José Domingos Raffaelli como “um dos mais líricos e refinados discos de todos os tempos” e que recebeu 5 estrelas do crítico Scott Yanow, do site Allmusic. Gravado para a Pacific, em 10 de fevereiro de 1956, o álbum conta com um time de primeira. Além do pianista, marcam presença Bill Perkins no sax tenor, Jim Hall na guitarra, Percy Heath no contrabaixo e Chico Hamilton na bateria.


“Love Me or Leave Me”, de Walter Donaldson e Gus Kahn, abre o disco de forma esplendorosa. Seu swing é charmosamente discreto e suas harmonias são de uma delicadeza comovente. Os improvisos de Lewis são refinados e sutis, quase camerísticos, mantendo-se sempre a uma curta distância da melodia. A sobriedade do seu toque contrasta, frontalmente, com os arabescos crepitantes de um Art Tatum ou um Bud Powell.


“I Can't Get Started”, de Vernon Duke e Ira Gershwin, é executada apenas com piano, baixo e bateria. Com um arranjo delicado, quase sussurrante, permite que se percebam as qualidades que fizeram de Lewis uma das figuras centrais do jazz moderno. As frases são econômicas e límpidas, com todas as notas no lugar exato, tudo feito de maneira altamente sofisticada, mas sem um átomo de afetação ou esnobismo. Hamilton tem uma percussão sutil e minimalista, sendo o acompanhante perfeito para a ocasião.


“Easy Living” foi composta por Ralph Rainger e Leo Robin e a versão do quinteto é de uma beleza enternecedora. O destaque absoluto vai para o saxofone envolvente de Perkins, na melhor tradição de Lester Young. Melodioso, cálido e acolhedor, seu sopro tem a suavidade dos melhores intérpretes de balada e o rigor dos melhores virtuoses. Único tema de autoria do pianista, “Two Degrees East, Three Degrees West” é um blues lânguido e insinuante, com uma linha de baixo fabulosa e uma sensacional performance de Hall.


Perkins não participa de “Skylark”, pérola composta por Hoagy Carmichael e Johnny Mercer e que merece um arranjo intimista e levemente tingido de blues. “Almost Like Being in Love”, de Alan Jay Lerner e Frederick Loewe, encerra o disco com classe e elegância, ajudando a fazer deste disco um monumento sonoro, que dignifica a carreira de todos os envolvidos no projeto e dá uma pequena idéia do talento de Lewis como líder e pianista.


Lewis deu aulas na Harvard University e na Manhatan School of Music durante os anos 60 e 70 e foi professor efetivo do City College of New York, de 1975 a 1982. No início da década de 70, ele compôs diversos temas para o seriado televisivo “Night Gallery”, estrelado por Rod Serling e que teve entre seus diretores o então jovem aspirante a cineasta Steven Spielberg. Lewis também recebeu o prêmio de melhor trilha sonora no San Francisco Film Festival, por causa do score do documentário “Cities for People”, de 1975.


Em 1979 gravou o ótimo “Na evening With Two Grand Pianos”, ao lado do soberbo Hank Jones. Em 1985, Lewis criou a American Jazz Orchestra, juntamente com o crítico Gary Giddins e o produtor Roberta Swann. A orquestra se manteve em atividade até 1992 e seu repertório era composto, basicamente, de temas gravados pelas grandes orquestras da Era do Swing, como as de Duke Ellington, Fletcher Henderson e Jimmie Lunceford.


Embora o MJQ tivesse oficialmente encerrado suas atividades em 1974, o grupo voltou à ativa no início dos anos 80, com a sua formação clássica, que incluía Lewis, Jackson, Heath e Kay, que morreu em 1994 e foi substituído por Albert “Tootie” Heath. A banda se manteve em atividade regular até 1999, quando Milt Jackson faleceu. Em 1987 Lewis gravou um disco dedicado às Variações Goldberg, de Bach, em companhia da mulher, a musicista iugoslava Mirjana Lewis.


John Lewis recebeu inúmeras homenagens ao longo da carreira. Em 1989 foi sagrado Cavaleiro das Artes e das Letras, maior honraria concedida pelo governo da França. Em 2001, pouco antes de morrer, recebeu o título de Jazz Master, concedido pela National Endowment for the Arts. De acordo com o crítico Leonard Feather, o pianista era “uma das mentes mais brilhantes já surgidas no jazz. Auto-suficiente e autoconfiante, sabe exatamente o que quer de seus músicos, de suas composições e de sua carreira. Faz tudo com uma consistência incomum, com modéstia e uma indiferença completa às reações da crítica”.


O pianista faleceu no dia 29 de março de 2001, em Nova Iorque, em decorrência de um câncer na próstata. Sobre ele, escreveu o meu querido amigo Augusto Pellegrini: “Ele foi um dos pianistas que melhor souberam ressaltar, com imaginação e bom gosto, as duas principais qualidades do jazz moderno – o balanço e a improvisação. Foi também um dos pianistas mais comoventes de blues em toda a história do piano jazz”.



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