Na orquestra de Mr. B atuaram, entre incontáveis outros, Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Lucky Thompson, Leo Parker, Art Blakey, Fats Navarro, Tadd Dameron, Kenny Dorham, Tommy Potter, Budd Johnson, Miles Davis, Gene Ammons, Hank Jones, Dexter Gordon, Wardeil Gray e John Malachi. Havia também por ali um saxofonista franzino, extremamente compenetrado para qualquer coisa que se relacionasse ao jazz, e que seria uma das principais referências do sax alto: Edward Sonny Stitt.
Nascido em 02 de fevereiro de 1924, em Boston, e quatro anos mais novo que Bird, Stitt lutou por muitos anos contra o epíteto de que seria um imitador de Charlie Parker. Sempre que tinha a oportunidade, afirmava categoricamente que o seu estilo já estava desenvolvido quando ouviu pela primeira vez a música de Parker. Aliás, quando Bird se achava impedido de atender a algum compromisso, geralmente indicava Stitt como a melhor opção para substituí-lo, o que pode ter contribuído para entranhar no pensamento geral a idéia de que o segundo imitava o primeiro.
Ouvindo-se as gravações de ambos, percebem-se as diferenças de estilo e, sobretudo de concepções harmônicas, o que permite concluir que Stitt, de fato, sempre buscou uma voz própria dentro do jazz, embora haja muitas semelhanças entre o seu fraseado e o de Bird. A melhor forma de constatar essa distinção é escutando o fabuloso tributo “Stitt Plays Bird”, de 1963, onde Sonny encara com muita competência e personalidade o repertório de Parker. A abalizada voz de Hank Jones confirma essa distinção. Para o longevo pianista, amigo e companheiro de Stitt em incontáveis gravações e concertos:
“Eu não creio que Sonny tivesse tentado copiar alguém. Sonny Stitt tentava apenas ser Sonny Stitt. Muitas pessoas o comparam a Charlie Parker, e é verdade que Sonny possuía a mesma destreza técnica que Parker, mas não acredito que ele tentasse imitá-lo. Quando eu fecho os olhos e lembro como era tocar com ele, as palavras que me vêm à mente são: absoluta sinceridade”.
Stitt começo seu aprendizado na música com o piano. Passou para o clarinete e se firmou como saxofonista alto, embora também tocasse sax barítono e tenor, instrumento que passou a usar com regularidade a partir do final dos anos 50. Sua primeira experiência profissional, em 1942, foi na orquestra de Tiny Bradshaw, de onde saiu para integrar a orquestra de Eckstine. Depois disso, Stitt tocou algum tempo com Dizzy Gillespie (1946) e fez suas primeiras gravações como líder nessa época, para a Savoy. Passou algum tempo na prisão de Lexington, entre 1948 e 1949, por conta do seu envolvimento com heroína.
Uma vez livre, gravou com Kenny Clarke e Serge Chaloff e formou um duo com o saxofonista tenor Gene Ammons, velho companheiro da orquestra de Billy Eckstine. Como líder, gravou com regularidade para selos como Prestige, Argo, Roullette e Verve. Nos anos 50 tocou com James Moody, Ella Fitzgerald, Clifford Brown, Bud Powell, J. J. Johnson e Eddie “Lockjaw” Davis, além de ter integrado o Jazz At The Philarmonic. Numa das viagens internacionais da famosa caravana criada por Norman Granz, Stitt presenteou o mundo com um álbum belíssimo.
Talvez fossem os ares de Paris, onde o disco foi gravado, no dia 18 de maio de 1959, com produção de Granz. Talvez tivesse sido a companhia estimulante e desafiadora de Oscar Peterson, um músico que está para o virtuosismo ao piano no mesmo plano que Sonny está para o sax alto. Talvez fosse o repertório de extremo bom gosto, inclusive com composições de Parker. O certo é que o disco “Sonny Stitt Sits In With The Oscar Peterson Trio” se inscreve, sem dúvida alguma, entre os três melhores álbuns da quilométrica discografia de Stitt (mais de 150 discos como líder e centenas de outras gravações como sideman).
Ray Brown e Ed Tighpen completam o combo e propiciam a Stitt e Peterson, dois dos mais brilhantes improvisadores do jazz, a segurança necessária para diálogos memoráveis e solos devastadores. Já dizendo a que veio, Stitt faz gato e sapato de “I Can Give You Anything But Love”, de Doroty Fields e Jimmy McHugh. Peterson brinca com as teclas em seu solo, mas na maior parte do tempo contenta-se apenas em acompanhar o desenvolto Stitt. A destacar, o sensacional trabalho de Tighpen e a introdução genial, a cargo de Brown.
Uma prova de fogo para qualquer saxofonista, “Au Privave” é executada com absoluta naturalidade por Stitt. Aqui se tanto se percebe que as comparações com Parker são pertinentes, do ponto de vista da fenomenal capacidade técnica de ambos, como se constata o quão injustas são as acusações de que Stitt era um imitador de Bird. A música flui, transborda, exala do sax de Stitt com bastante personalidade. É um grande músico tocando à sua própria maneira uma composição de um outro grande músico. E isso não é pouco. A luxuosa sessão rítmica se mantém discreta, certamente para permitir uma audição mais atenta ao trabalho de Stitt.
Em “The Gypsy”, outra das características mais peculiares de Stitt se evidencia: a do baladeiro passional, desbragadamente romântico, como se cantasse as suas próprias dores e desilusões amorosas. Há muitas semelhanças entre “I’ll Remember April”, de 1942, e “Copacabana”, de 1946, o que ensejou, inclusive, algumas acusações de plágio a Braguinha e Alberto Ribeiro. A versão da célebre composição de Gene de Paul acentua as semelhanças, graças à percussão de Tighpen, que imprime um certo sabor latino ao tema.
Stitt em estado de graça e Peterson possesso fazem de “Scrapple From The Apple” uma das faixas mais extraordinárias do disco. Não é improvável que os líderes desconhecessem a música de Luís Gonzaga, que nas décadas de 40 e 50 teve diversas composições suas vertidas para o inglês e, além disso, ambos tocaram inúmeras vezes no Brasil e gravaram diversas músicas de compositores brasileiros. A própria “Baião” foi transformada por Ray Gilbert, sem autorização do autor, no sucesso “Caroom pa pa”, gravada por Carmem Miranda em 1949. A versão demolidora engendrada por Peterson e Stitt tem algo de baião em sua estrutura, sobretudo durante o solo do pianista e os atalhos da música, mais uma vez, mostram que o sol inclemente da caatinga pode sim aquecer as enfumaçadas noites da Rua 52.
“Moten Swing” ganhou uma versão bluesy, musculosa, mas sem qualquer prejuízo ao seu contagiante swing. Em “Blues for Pres, Sweets, Ben & all The Other Funky Ones” Stitt homenageia alguns ilustres predecessores, fazendo uso do sax tenor. A atmosfera de blues é reforçada pela sessão rítmica, em especial por Brown. O solo de Peterson é magistral, com evocações a outro “funky one” de primeira, o imortal Duke Ellington, e a parte final, com um expressivo diálogo entre o piano e o sax tenor, é fascinante. Outro blues – “Easy Does It”, de Trummy Young e Sy Oliver – e novamente com Stitt no tenor, encerra o set, de maneira irretocável.
Existem edições em cd nas quais foram acrescidas três faixas (“Sweet And Lovely”, “I Remember You” e “I Know That You Know”), gravadas em Los Angeles, em outubro de 1957, com Stan Levey na bateria e Herb Ellis na guitarra. Infelizmente, a versão que possuo contempla apenas o set original de oito faixas. Não obstante, é um disco soberbo, apto a desfilar por horas a fio na vitrola de qualquer aficionado por jazz.
Sobre Stitt, diga-se ainda que em 1957 lançou o excelente “Sonny Side Up”, pela Verve, ao lado dos lendários Sonny Rollins e Dizzy Gillespie. Nos anos 60 e 70, manteve o ritmo frenético de concertos e gravações. Atuou por um breve período na banda de Miles Davis, acompanhou Art Blakey, Barry Harris, Art Pepper, Harry Edison, Paul Gonsalves e Booker Ervin. Também gravou um ótimo disco ao lado Zimbo Trio. Faleceu no dia 22 de julho de 1982, em decorrência de um infarto fulminante.
Quando se ouve o sopro de Stitt, a impressão que se tem é a de que ele pertence à raríssima estirpe dos encantadores de saxofone. Basta fechar os olhos e percebe-se “o instrumento ganhando vida própria, levitando num palco pouco iluminado, sob um comando mental distante, a tocar sozinho! Isso porque simplesmente não foi possível visualizar o músico na mecânica natural, na outra ponta do instrumento. E aí a imagem entra no foco nos reflexos cintilantes no corpo de um sax como um objeto alado”. E essa é a imagem que me vem aos olhos nesse exato instante, enquanto ouço novamente a lânguida “The Gypsy”.
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Post dedicado ao amigo Sérgio Sônico, que me chamou a atenção para essa espécie raríssima de saxofonistas, capazes de encantar o instrumento e fazê-lo tocar sozinho. A ela também pertence o grande Eli Lucky Thompson e uns pouquíssimos outros.
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