Posteriormente, ao perceber que ninguém – nem mesmo um dos seus mais dedicados e talentosos discípulos – poderia reproduzir com a perfeição necessária a sonoridade e, sobretudo, os solos de Bird, Eastwood, o engenheiro Bob Fernandez e o produtor musical Lennie Niehaus capitanearam um delicado processo de remasterização de músicas gravadas por Parker nos anos 40 e 50 para a Verve e Savoy e usaram esses temas para compor a trilha, sendo que os demais acompanhamentos ficaram a cargo de monstros sagrados como Walter Davis Jr., Barry Harris, Ron Carter, Ray Brown e outros tantos.
Todavia, McPherson não foi dispensado. Permaneceu com o grupo e participou de três faixas (“Ko Ko”, “Nows The Time” e “Ornithology”), incluídas na trilha sonora, dividindo o sax alto, graças ao milagre da tecnologia, com um músico morto havia mais de 30 anos. Realizou ali, por vias oblíquas, o sonho que acalentava desde meados dos anos 50, quando era um promissor saxofonista baseado em Detroit: tocar com o ídolo e mentor Charlie Parker.
Nascido em 1939 na pequena Joplin, Missouri, Charles McPherson foi criado em Detroit, onde estudou com o grande Barry Harris. Em 1959, quando já era um nome respeitado na cidade dos motores, mudou-se para Nova York. Em 1961, integrou-se à banda de Charles Mingus, com quem permaneceu até 1972. Nesse período, além do trabalho com o celebrado baixista, tocou com figuras de peso, como Eric Dolphy, Art Farmer, Kenny Drew, Toshiko Akiyoshi e Pepper Adams, bem como desenvolveu uma belíssima carreira solo. Trata-se de um verdadeiro “musician’s musician”, isto é, um músico incensado por seus pares, embora pouco conhecido do grande público.
O seu debut como líder se deu em grande estilo, em 1964, com o álbum Bebop Revisited!, gravado para a Prestige, onde o saxofonista paga um emocionante tributo aos grandes heróis do bebop, como Bud Powell, Fats Navarro, Tadd Dameron e, por óbvio, Charlie Parker. No acompanhamento, o antigo mestre Barry Harris marca presença ao piano. Ao seu lado, compondo a confiabilíssima seção rítmica, Albert “Tootie” Heath comanda a bateria e Nelson Boyd pilota o baixo. No trompete, a presença magnética do grande (e também subestimado) Carmell Jones, recém saído da orquestra de Gerald Wilson e às vésperas de juntar-se à banda de Horace Silver, onde participaria do antológico “Song For My Father”.
Uma demolidora versão de “Hot House” (Dameron) abre o disco e mostra que o saxofonista, embora bastante influenciado por Parker, possui personalidade suficiente para trilhar seus próprios caminhos. O duelo com o trompete de Jones (que, a rigor, dá a tônica do álbum inteiro) é incessante, com direito a ótimos solos e a um excelente trabalho de Heath nas baquetas. Em “Nostalgia”, é Jones quem paga tributo ao ilustre antecessor (e autor da música) Fats Navarro, usando e abusando de sua técnica soberba. O anfitrião não se faz de rogado e, com seu fraseado viril, delicia o ouvinte com um dos mais belos solos do disco. Harris exibe seu toque refinado, deixando perceber porque é um verdadeiro mestre quando se fala em harmonia. “Si Si”, de Parker, merece de Jones uma introdução matadora e se mantém em elevado grau de ebulição, sobretudo graças à atuação do líder, enquanto a seção rítmica, em especial Heath, transborda competência entrosamento.
Bud Powell, outro pai fundador do bebop, recebe uma bela homenagem em “Wail”, na qual um inspirado Harris conduz a linha melódica com uma competência invulgar, além de apresentar um solo excepcional – é outro herdeiro prestando a merecida reverência ao mestre. Impecáveis, Jones e McPherson protagonizam outro belíssimo duelo, destacando-se, em ambos, uma sonoridade cheia, sem arestas. Dois standards, “Embraceable You” e “If I Loved You” recebem um delicado e respeitoso tratamento, com destaque para o piano de Harris (extremamente eloqüente em sua proverbial discrição) e para o fraseado de McPherson – mais que aos ouvidos, essas duas baladas se dirigem ao coração dos ouvintes. Em ambos os casos o sax do anfitrião soa pungente, prenhe de lirismo e emotividade, com ecos de outra grande influência de McPherson, o fenomenal Johnny Hodges.
“Variations On A Blues By Bird” talvez seja o momento mais sublime do disco: trata-se de uma composição pouco conhecida de Parker, presente em uma obscura gravação da Dial, e que McPherson ouvia incessantemente em seus anos de formação. Bebop de altíssima combustão, a canção é conduzida em andamento ultra-rápido, com citação a outras composição de Bird, em especial “Scrapple From The Apple”. Os incendiários McPherson e Jones ateiam fogo em tudo o que encontram pela frente, no que são obsequiosamente auxiliados por Harris, Heath e Boyd, que se encarregam de fornecer aos primeiros quantidades incalculáveis de gasolina. Um disco espetacular, capaz de fazer a alegria de qualquer jazzófilo!
O grande Charles McPherson mora em San Diego, Califórnia, para onde se mudou em 1972, e continua trabalhando intensamente. Nos últimos anos tem excursionado com regularidade e participando de festivais ao redor do mundo, além de haver lançado discos bastante aclamados pela crítica especializada. É um dos pouquíssimos músicos em atividade que pode estufar o peito e dizer: “Eu toquei com Charlie Parker!” – pouco importando que a sessão tenha ocorrido mais de 30 anos depois da morte de Bird.
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PS.: Post dedicado ao amigo APÓSTOLO, grande fã de Bird e um dos mais atuantes colaboradores do CJUB (outra acolhedora casa virtual).
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