TOCANDO COM PARKER, 30 ANOS DEPOIS DE SUA MORTE
Música e outras coisas

TOCANDO COM PARKER, 30 ANOS DEPOIS DE SUA MORTE



Clint Eastwood não teve dúvidas. Ao escolher os músicos que tocariam na trilha sonora da cinebiografia sobre Charlie Parker, que lançaria em 1988, apenas um nome veio-lhe à mente como sendo capaz de reproduzir com fidelidade o fraseado inconfundível do criador do bebop: o de Charles McPherson.


Posteriormente, ao perceber que ninguém – nem mesmo um dos seus mais dedicados e talentosos discípulos – poderia reproduzir com a perfeição necessária a sonoridade e, sobretudo, os solos de Bird, Eastwood, o engenheiro Bob Fernandez e o produtor musical Lennie Niehaus capitanearam um delicado processo de remasterização de músicas gravadas por Parker nos anos 40 e 50 para a Verve e Savoy e usaram esses temas para compor a trilha, sendo que os demais acompanhamentos ficaram a cargo de monstros sagrados como Walter Davis Jr., Barry Harris, Ron Carter, Ray Brown e outros tantos.


Todavia, McPherson não foi dispensado. Permaneceu com o grupo e participou de três faixas (“Ko Ko”, “Nows The Time” e “Ornithology”), incluídas na trilha sonora, dividindo o sax alto, graças ao milagre da tecnologia, com um músico morto havia mais de 30 anos. Realizou ali, por vias oblíquas, o sonho que acalentava desde meados dos anos 50, quando era um promissor saxofonista baseado em Detroit: tocar com o ídolo e mentor Charlie Parker.


Nascido em 1939 na pequena Joplin, Missouri, Charles McPherson foi criado em Detroit, onde estudou com o grande Barry Harris. Em 1959, quando já era um nome respeitado na cidade dos motores, mudou-se para Nova York. Em 1961, integrou-se à banda de Charles Mingus, com quem permaneceu até 1972. Nesse período, além do trabalho com o celebrado baixista, tocou com figuras de peso, como Eric Dolphy, Art Farmer, Kenny Drew, Toshiko Akiyoshi e Pepper Adams, bem como desenvolveu uma belíssima carreira solo. Trata-se de um verdadeiro “musician’s musician”, isto é, um músico incensado por seus pares, embora pouco conhecido do grande público.


O seu debut como líder se deu em grande estilo, em 1964, com o álbum Bebop Revisited!, gravado para a Prestige, onde o saxofonista paga um emocionante tributo aos grandes heróis do bebop, como Bud Powell, Fats Navarro, Tadd Dameron e, por óbvio, Charlie Parker. No acompanhamento, o antigo mestre Barry Harris marca presença ao piano. Ao seu lado, compondo a confiabilíssima seção rítmica, Albert “Tootie” Heath comanda a bateria e Nelson Boyd pilota o baixo. No trompete, a presença magnética do grande (e também subestimado) Carmell Jones, recém saído da orquestra de Gerald Wilson e às vésperas de juntar-se à banda de Horace Silver, onde participaria do antológico “Song For My Father”.


Uma demolidora versão de “Hot House” (Dameron) abre o disco e mostra que o saxofonista, embora bastante influenciado por Parker, possui personalidade suficiente para trilhar seus próprios caminhos. O duelo com o trompete de Jones (que, a rigor, dá a tônica do álbum inteiro) é incessante, com direito a ótimos solos e a um excelente trabalho de Heath nas baquetas. Em “Nostalgia”, é Jones quem paga tributo ao ilustre antecessor (e autor da música) Fats Navarro, usando e abusando de sua técnica soberba. O anfitrião não se faz de rogado e, com seu fraseado viril, delicia o ouvinte com um dos mais belos solos do disco. Harris exibe seu toque refinado, deixando perceber porque é um verdadeiro mestre quando se fala em harmonia. “Si Si”, de Parker, merece de Jones uma introdução matadora e se mantém em elevado grau de ebulição, sobretudo graças à atuação do líder, enquanto a seção rítmica, em especial Heath, transborda competência entrosamento.


Bud Powell, outro pai fundador do bebop, recebe uma bela homenagem em “Wail”, na qual um inspirado Harris conduz a linha melódica com uma competência invulgar, além de apresentar um solo excepcional – é outro herdeiro prestando a merecida reverência ao mestre. Impecáveis, Jones e McPherson protagonizam outro belíssimo duelo, destacando-se, em ambos, uma sonoridade cheia, sem arestas. Dois standards, “Embraceable You” e “If I Loved You” recebem um delicado e respeitoso tratamento, com destaque para o piano de Harris (extremamente eloqüente em sua proverbial discrição) e para o fraseado de McPherson – mais que aos ouvidos, essas duas baladas se dirigem ao coração dos ouvintes. Em ambos os casos o sax do anfitrião soa pungente, prenhe de lirismo e emotividade, com ecos de outra grande influência de McPherson, o fenomenal Johnny Hodges.


“Variations On A Blues By Bird” talvez seja o momento mais sublime do disco: trata-se de uma composição pouco conhecida de Parker, presente em uma obscura gravação da Dial, e que McPherson ouvia incessantemente em seus anos de formação. Bebop de altíssima combustão, a canção é conduzida em andamento ultra-rápido, com citação a outras composição de Bird, em especial “Scrapple From The Apple”. Os incendiários McPherson e Jones ateiam fogo em tudo o que encontram pela frente, no que são obsequiosamente auxiliados por Harris, Heath e Boyd, que se encarregam de fornecer aos primeiros quantidades incalculáveis de gasolina. Um disco espetacular, capaz de fazer a alegria de qualquer jazzófilo!


O grande Charles McPherson mora em San Diego, Califórnia, para onde se mudou em 1972, e continua trabalhando intensamente. Nos últimos anos tem excursionado com regularidade e participando de festivais ao redor do mundo, além de haver lançado discos bastante aclamados pela crítica especializada. É um dos pouquíssimos músicos em atividade que pode estufar o peito e dizer: “Eu toquei com Charlie Parker!” – pouco importando que a sessão tenha ocorrido mais de 30 anos depois da morte de Bird.

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PS.: Post dedicado ao amigo APÓSTOLO, grande fã de Bird e um dos mais atuantes colaboradores do CJUB (outra acolhedora casa virtual).



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