Música e outras coisas
KENNY DORHAM: O HOMEM CERTO, NO LUGAR CERTO, NA HORA ERRADA
“Falling in love with love
Is falling for make-believe
Falling in love with love
Is playing the fool…”
Os versos de Lorenz Hart ecoam em minha cabeça, enquanto os acordes de “Falling in Love with Love” vão se derramando pelo ambiente. A música, uma das melhores compostas pelo parceiro Richard Rogers, é uma sutileza só. A banda, um verdadeiro time dos sonhos: Sonny Rollins no sax alto, Hank Jones no piano, Oscar Pettiford no baixo e Max Roach na bateria fazem a corte para a estrela do espetáculo, o trompetista Kenny Dorham. Em algumas faixas a harpista clássica Betty Glamman transborda lirismo e dá um charme todo especial às gravações – não é por acaso que a capa exibe uma reluzente harpa, posicionada bem ao lado do trompetista. O nome do disco é deveras apropriado: Jazz Contrasts.
McKinley Howard “Kenny” Dorham é um enigma ainda por ser decifrado. Talento superlativo como músico, compositor e arranjador, jamais teve o reconhecimento merecido – o adjetivo mais comumente associado à sua pessoa é “underrated” (subestimado). Em parte por ter sempre sido o sujeito que vinha substituir alguém em algum combo. Sucedeu Miles Davis no quinteto de Charlie Parker e Clifford Brown, após a morte deste, no quinteto de Max Roach. Todavia, ajudou a fundar os “Jazz Messengers”, com Art Blakey e Horace Silver, mas isso tampouco serviu para tirá-lo do ostracismo. Permaneceu a vida inteira eclipsado por Dizzy Gillespie, Fats Navarro, Miles Davis e Clifford Brown e nem o fato de ser o autor, entre outras músicas, de “Blue Bossa””, “Lotus Flower”, “Uma Mas” e “La Villa” granjeou-lhe maior notoriedade.
Talvez porque fosse um músico adiante do seu tempo – em 1955 já estava antenado com os ritmos caribenhos, tendo gravado o ótimo “Afro-Cuban”, ao lado do percussionista Carlos Potato Valdes. Talvez porque escapasse ao estereótipo do músico iletrado e bronco que habita um certo imaginário popular – culto, articulado e fluente não apenas em seu instrumento, mas também com as palavras, escreveu inúmeros artigos para a revista Down Beat.
Participou de gravações antológicas, sobretudo durante os anos 60, acompanhando Hank Mobley, Barry Harris, Tadd Dameron, Andrew Hill, Jackie McLean e Horace Silver. Exímio melodista, encarou com tranqüilidade a transição do bebop dos anos 40/50 para o hard-bop dos anos 50/60, tendo se tornado, ao lado de Donald Byrd, Fred Hubbard e Lee Morgan um dos pilares do estilo. Em sua discografia há, pelo menos, uma incontestável obra prima: o álbum “Round About Midnight at the Cafe Bohemia”, gravado para o selo Blue Note em 1956.
Além de todos esses predicados, o nosso herói ainda tocava piano e até cantava – e o fazia muito bem! Prova disso é o disco “Kenny Dorham Sings and Plays: This Is The Moment!”, gravado em 1958 para o selo Riverside.
A música brasileira também não era estranha a esse grande artista: além da forte influência exercida pela bossa nova, compôs “Sao Paulo” em homenagem à cidade. Seu temperamento avesso a hermetismos ajudou a lançar diversos novos talentos, como Tony Williams, Joe Henderson e Herbie Hancock. Todavia, por uma dessas ironias do destino, Dorham teve uma vida breve. Sequer chegou aos 50 anos, tendo falecido no início dos anos 70, em conseqüência de problemas renais.
Voltando ao disco “Jazz Contrasts”, o que se ouve, da primeira à última faixa, é uma constelação de astros do jazz no melhor de suas respectivas formas. Desde a abertura, com a hipnótica “Falling in Love with Love” até o encerramento, com a climática “La Villa”, o que se ouve é um bebop de primeiríssima linha. A harpa de Betty Glamman faz as vezes de uma verdadeira seção de cordas em “Larue” (linda composição de Clifford Brown), em “My Old Flame” e em “But Beautiful”, sem qualquer prejuízo ao swing da banda. Em “I’ll Remember April” um endiabrado Max Roach esmurra sem dó nem piedade os couros e pratos de sua pobre bateria, com uma velocidade estonteante, mostrando porque é um dos três maiores bateristas do jazz (você pode escolher os outros dois). Na mesma faixa, a destacar o incandescente diálogo entre o anfitrião e o convidado Sonny Rollins, cujo solo é antológico, além do belíssimo piano de Hank Jones.
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Sem deixar a peteca cair, “My Old Flame” serve de vitrine para que Dorham exiba toda sua técnica e seu elevado senso melódico, reelaborando de forma enternecedora a antiga balada de Sam Coslow e Arthur Johnson, composta em 1934. Outro ponto alto é a versão de “La Villa”, que já havia sido gravada no álbum “Afro-Cuban”, na qual, mais uma vez, Max Roach rouba a cena.
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Trata-se de um álbum indispensável a qualquer coleção de jazz com pretensões mais sérias, sendo que o disco, gravado entre 21 e 27 de maio de 1957, foi relançado em 2007 pela Riverside, através da série “Keepnews Collection”, com uma primorosa remasterização.
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