INDEPENDÊNCIA OU MORTE!
Música e outras coisas

INDEPENDÊNCIA OU MORTE!



No célebre quadro de Pedro Américo, pintado em 1888 e intitulado “O grito do Ipiranga”, a proclamação da independência aparece como um momento grandioso e, de certa maneira, envolto em uma aura mítica. Montado em um cavalo branco e liderando uma guarnição do exército, o então príncipe herdeiro da Coroa Portuguesa, D. Pedro de Alcântara, que, ao mesmo tempo, ocupava o posto de Regente do Brasil, aparece empunhando uma espada e profere as palavras que se imortalizaram ao longo dos tempos:

- Independência ou morte!

A proclamação ocorreu às margens do riacho Ipiranga, quando D. Pedro retornava de uma viagem a São Paulo. O príncipe havia recebido uma carta de seu pai, o Rei D. João VI, determinando-lhe que abandonasse o Brasil e retornasse imediatamente a Portugal. Além da missiva do pai, D. Pedro receberia, naquele momento, outras duas cartas. Uma, escrita por José Bonifácio, seu ministro e principal conselheiro, que lhe sugeria o rompimento dos laços políticos com Portugal, e a outra, escrita por Maria Leopoldina, sua esposa, na qual a princesa aconselha o marido a acatar a sugestão de Bonifácio.

Proclamou-se assim, a independência do Brasil, embora seja bastante inusitado o fato de que um país tenha sido “libertado” exatamente pelo herdeiro da coroa do país colonizador. Não vivemos, pois, as heróicas lutas pela independência que nossos países vizinhos, como Chile, Argentina, Venezuela ou Bolívia, libertados do jugo espanhol, respectivamente, por Bernardo O’Higgins, José de San Martin, Simon Bolívar e José Sucre.

No dia 07 de setembro de 1922 o Brasil comemorava o primeiro centenário da Proclamação da Independência, quando nasceu, em New Orleans, na Louisiana, Joseph Dwight Newman, que passaria à história como um dos grandes nomes do trompete em todos os tempos. Além disso, foi um talentoso compositor, arranjador e educador musical, cujo nome estará, para sempre, associado ao do maestro Count Basie, cuja orquestrra integrou por mais de 12 anos. Não se sabe, todavia, se em algum momento de sua vida Joe Newman, como ficou conhecido no mundo do jazz, chegou a se dar conta de que havia vindo ao mundo no dia em que o Brasil comemorava a sua independência.

Nascido na mesma cidade em que surgiu o jazz, Newman pertencia a uma família altamente musical. Seu pai, David Dwight Newman, era pianista e membro da primeira orquestra negra da cidade a possuir seu próprio programa de rádio, a Creole Serenaders. Portanto, foi algo bastante natural o fato de que, desde tenra idade, o pequeno Joe tivesse se dedicado à música. Seu primeiro contato com o trompete ocorreu meio por acaso. O pai havia comprado um instrumento, da marca Conn, para o irmão mais velho de Joe e aquele não demonstrou o menor interesse.

O pequeno Joe, de apenas oito anos, pediu ao pai para ficar com o instrumento, com o compromisso de aprender a tocá-lo em pouco tempo, e lançou-se à empreitada com o maior empenho. Um de seus primeiros professores foi o lendário saxofonista David Jones, que havia sido colega de Louis Armstrong na banda do pianista Fate Marable, que cruzava o rio Mississipi a bordo do S. S. Capitol. Jones, por possuir educação musical formal, chegou a dar aulas para o jovem Armstrong, que então tinha apenas 17 anos. Armstrong, aliás, foi o primeiro ídolo de Newman e responsável direto por sua opção precoce pelo trompete.

Embora fosse pouco mais que uma criança, Newman foi convidado para estudar no Alabama State Teachers College, um internato para garotos negros localizado em Montgomery, onde ingressou aos treze anos. A orquestra da escola, intitulada “The Bama State Collegians”, precisava de um trompetista para substituir o grande Erskine Hawkins, exímio trompetista da Era do Swing e que passaria à posteridade como o compositor de “Tuxedo Junction”. Hawkins havia deixado o grupo para tentar a sorte como músico profissional e Newman, bem mais novo, adequava-se à perfeição às necessidades da escola e de sua orquestra.

Em pouco tempo, Newman já era um dos líderes e principais solistas da banda e foi com ela que fez as suas primeiras excursões. Eram tempos difíceis, pois os Estados Unidos sofriam ainda as conseqüências da Grande Depressão e a escola passava por sérias dificuldades financeiras. As apresentações da orquestra, portanto, serviam para custear material didático, instrumentos musicais e até alimentação dos internos. A reputação da orquestra era tão grande na região, que ela costumava ser convidada para abrir shows de big bands famosas, como a de Jimmy Lunceford.

Sempre que podia, Newman visitava a cidade natal e ali começou a tocar com alguns músicos como Henry Hart, Bill Phillips e Richard Gray, bastante conhecidos no cenário local. As gigs geralmente eram realizadas em clubes como o Rhythm Club e o trompetista foi adquirindo a experiência necessária para se aventurar no concorrido mercado de trabalho.

A oportunidade surgiu no início de 1941. A “The Bama State Collegians” iria se apresentar em Birmingham, no Alabama, abrindo um show para a renomada orquestra de Lionel Hampton. Newman estava doente e não pôde ir à apresentação. Todavia, o vibrafonista ficou bastante impressionado com a qualidade técnica dos garotos e comentou que precisava de um trompetista em sua própria orquestra. Os colegas então, fizeram os maiores elogios a Newman e o próprio Hamp fez o convite. O trompetista rumou para Chicago, onde a orquestra se apresentaria e com ela permaneceu até dezembro de 1943, quando foi convidado a se juntar à poderosa orquestra de Count Basie, em substituição a Buck Clayton.

Ambas as orquestras estavam em Nova Iorque naqueles dias. A de Hampton se apresentava no clube Famous Door e a de Basie se apresentava no salão de baile do Lincoln Hotel. O baterista Jo Jones encontrou-se com Newman no hotel em que ambos estavam hospedados e perguntou, à queima roupa: “Ei, Joe, porque você não vem tocar hoje à noite com a gente? Buck deixou a orquestra para servir ao exército e nós estamos precisando de um trompetista”.

A apresentação foi um sucesso e Basie, que havia gostado bastante da performance de Newman, convidou-o para ficar em sua orquestra, em caráter definitivo. Antes, porém, o trompetista foi conversar com o patrão Hampton, que não impôs qualquer obstáculo à sua saída. Tocar na orquestra de Basie significava trabalhar ao lado de Lester Young, saxofonista que havia se tornado uma de suas principais influências musicais.

Sobre Lester, de quem se tornaria amigo, Newman declarou: “Me tornar amigo de Pres foi algo muito agradável. Eu aprendia muito, apenas conversando com ele. Não era uma pessoa extravagante, mas sim introvertida. Ele era maravilhoso com as pessoas de quem gostava e se sentia confortável ao lado delas. Uma pessoa gentil, incapaz de dizer algo ruim sobre alguém. E era muito divertido e extremamente criativo. Ele é o autor de muitas gírias e expressões que se tornaram parte do vocabulário jazzístico”. Para quem não sabe, Lester foi quem colocou os apelidos de Lady Day em Billie Holiday e de “Sweets” em seu companheiro de orquestra Harry Edison.

Newman viveria dois períodos distintos sob o comando do Conde. O primeiro perdurou de 1943 a 1947 e o segundo de 1952 a 1961, ocupando, exatamente, o lugar de Harry “Sweets” Edison. Durante o hiato de cinco anos que separa esses períodos, Newman trabalhou como freelancer e também liderou uma banda ao lado do saxofonista Illinois Jacquet e do baterista J. C. Heard, que era atração fixa do Café Society, em Nova Iorque. Pelo grupo, passariam alguns músicos de renome, como o saxofonista Leo Parker e o pianista Sir Charles Thompson.

Joe participou de álbuns históricos de Basie, como “April In Paris” (Verve, 1955), “Chairman Of The Board” (1958), “Basie & Eckstine, Inc.” (1959) e “Breakfest, Dance And Barbecue” (1959), estes últimos para a Roulette. Durante seus quase treze anos na orquestra, dividiu o trompete com sumidades como Joe Wilder, Thad Jones, Wendell Culley, Sonny Cohn e Snooky Young. Embora fosse um músico ligado ao swing, Newman também se deixou influenciar pelo bebop de Parker e Gillespie e sua abordagem é uma interessante mescla dessas duas escolas.

Em 1954, durante excursão à Europa, conheceu a sua primeira esposa, a sueca Rigmor Alfredsson, com quem se casou naquele mesmo ano. Além do trabalho com Basie, Newman era um disputado sideman, tendo acompanhado, ao longo da carreira, artistas do quilate de Lester Young, Coleman Hawkins, Al Cohn, Jimmy McGriff, Leo Parker, Ray Charles, Benny Carter, Quincy Jones, Billy Taylor, Sonny Rollins, Sonny Criss, Buck Clayton, Milt Hinton, Freddie Green, Manny Albam, Ella Fitzgerald, Milt Jackson, Eddie “Cleanhead” Vinson, Dinah Washington, Cannonball Adderley, Jerome Richardson, Machito, Ray Bryant, Aretha Franklin, Tony Bennett, Frank Wess, Gene Krupa, Jimmy Smith, Paul Quinichette Chris Connor, Herbie Hancock, Oliver Nelson, Carmen McRae, Gene Ammons, James Moody, Ernestine Anderson, Grant Green, Modern Jazz Quartet, Oscar Peterson, Herbie Mann, Sonny Stitt, Yusef Lateef, Wes Montgomery, Stan Getz e muitos outros.

Ele também gravou diversos álbuns em seu próprio nome, para selos como RCA Victor, Storyville, Fresh Sound, Savoy, Vanguard, Stash, Lone Hill, MCA, Verve e outros. Em janeiro de 1961, cansado do ritmo frenético de turnês e gravações, o trompetista deixou a orquestra de Count Basie para, novamente, atuar como freelancer. Montou seu próprio grupo, com o qual era figura fácil em clubes novaiorquinos, como o Village Gate, o Birdland e o Village Vanguard.

Poucos meses depois de sua saída, no dia 17 de março daquele mesmo ano, Newman entrou no estúdio para gravar “Good’ N’ Groovy”. Com produção de Esmond Edwards e engenharia de Rudy Van Gelder, o álbum, lançado pela Swingville/Prestige, traz as presenças de Frank Foster no sax tenor, Tommy Flanagan no piano, Eddie Jones no contrabaixo e Billy English na bateria. Dos seis temas gravados, quatro são de autoria do líder.

A faixa de abertura é a sacolejante “A. M. Romp”, de autoria de Newman, responsável pela empolgante introdução. O tema se desenvolve com bastante fluência, unindo elementos harmônicos do bebop e uma melodia dançável, que evoca as melhores orquestras da Era do Swing. Foster, companheiro do líder por anos a fio na orquestra de Basie, é um solista fabuloso, capaz imprimir uma sonoridade volumosa e de elevada intensidade. A atuação de Flanagan é das mais espetaculares, com um solo que transita entre a leveza e a dramaticidade. Newman não é menos habilidoso e sua utilização dos agudos, se não alcança os níveis estratosféricos de um Gillespie, é exuberantemente calorosa.

“Li’l Darlin’” é uma das composições mais conhecidas de Neal Hefti, ele próprio um talentoso trompetista, mas que se celebrizou por causa dos arranjos elaborados para o próprio Basie e para Frank Sinatra. Newman revela aqui a faceta de baladeiro sensível e lírico, dono de uma sonoridade aveludada, que funciona como uma verdadeira carícia auditiva. A tranqüilidade com que o quinteto executa o tema deve muito à percussão minimalista de English, de uma sutileza comovente. Magistral também é a abordagem de Foster, cujo sopro, apesar de robusto, jamais oprime os ouvidos.

O blues sincopado “Mo-Lasses” tem um pé no R&B e outro no chamado soul jazz dos anos 60. Poderia muito bem figurar no repertório de um Lou Donaldson ou de um Stanley Turrentine, tamanho o groove que os músicos imprimem ao tema. Destaque absoluto para o vigoroso duelo entre Newman e Foster, dois improvisadores de amplos recursos técnicos e que se sentem muito à vontade tocando juntos. Também merece oitiva atenta a poderosa atuação de English, que abandona as sutilezas para desencadear uma pancadaria eletrizante.

“To Rigmor” é uma homenagem de Newman à esposa sueca. Trata-se de uma balada suave e elegante, na tradição de “Witchcraft”, de Cy Coleman. O romantismo do trompetista transborda em intervenções dolentes, respaldadas pelo piano classudo de Flanagan. A atmosfera lírica é reforçada pelo excelente trabalho de Jones, um talentoso contrabaixista, também oriundo da orquestra de Count Basie, que, pouco tempo depois, abandonaria a música para trabalhar na IBM.

O standard “Just Squeeze Me (But Don't Tease Me)”, composto por Duke Ellington e Lee Gaines nos anos 40, é interpretado com uma categoria invulgar. A levada em tempo médio do quinteto se torna ainda mais distinta, graças à delicadeza do fraseado de Flanagan e à swingante abordagem de Foster, cujo solo é um dos mais arrebatadores do disco. Usando a surdina, Newman emula o comedimento de um Miles Davis, abolindo o vibrato e usando pouquíssimas notas, lançadas com precisão e sagacidade ímpares.

“Loop-D-Loop” é um blues acelerado e visceral, que fecha o álbum de maneira energética e altiva, onde todos os músicos encontram espaço para solar. A bateria de English é uma vibrante usina de ritmo, que contagia os colegas e os impele a caprichar nos improvisos, com destaque para as performances do líder, de Jones e de Flanagan. Um pequeno grande disco, despretensioso e leve, que surpreende e diverte em igual medida.

No ano seguinte, integrou a orquestra de Benny Goodman, em uma histórica excursão à então poderosa – e fechadíssima – União Soviética. Entusiasta do ensino musical – segundo ele, o jazz teria sido uma das primeiras coisas que Deus criou quando fez o mundo – fundou a Jazz Interactions Inc., uma organização sediada em Nova Iorque e dedicada ao ensino e à preservação do jazz e de suas tradições. A entidade mantinha Jazz Interactions Orchestra, formada por seus alunos e cujos arranjos eram elaborados por Newman. Também foi a primeira instituição a encampar o projeto “Jazz Oral History”, cujo acervo, atualmente, se encontra sob a guarda do The Institute of Jazz Studies.

O versátil Newman era capaz de acompanhar, com a mesma competência, astros da soul music como Solomon Burke, Roberta Flack, The Rascals ou Donny Hathaway, feras do blues como Freddie King, Muddy Waters (participou das gravações do histórico “The London Muddy Waters Sessions”, de 1971) ou Big Joe Turner, e roqueiros como os pioneiros Chuck Berry e Bo Diddley. Também tocou com o vanguardista Albert Ayler no disco “New Grass”, em 1969, e com o feiticeiro Hermeto Pascoal, em seu álbum “Yogurt”, de 1972.

Nos anos 70, além de intensificar seu trabalho como educador musical, o trompetista ingressou na New York Repertory Orchestra, com a qual excursionou pela Europa em 1975. Nas décadas de 80 e 90, trabalhou com regularidade com o cornetista Ruby Braff, o pianista Jimmy Rowles, o trompetista Joe Wilder e o pianista Hank Jones. A banda com a qual se apresentava com maior regularidade contava com Harold Mabern no piano, Earl May no contrabaixo e Bill English na bateria, e era com ela que elogiadas temporadas nos clubes de Nova Iorque, especialmente no Sweet Basil.

Apesar dos muitos anos de estrada, Newman costumava dizer que ainda estava aprendendo. Nos últimos tempos ele, que também tocava bateria, costumava cantar em suas apresentações. O trompetista faleceu no dia 04 de julho de 1992, no Hospital Mount Sinai, em Nova Iorque e a causa da morte foi um acidente vascular cerebral. Em uma dessas estranhas coincidências, é nesse dia que os Estados Unidos comemoram a sua própria independência.

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