Na mitologia do bebop, Cecil McKenzie Payne está para o sax barítono assim como Dizzy Gillespie está para o trompete, Charlie Parker para o sax alto e J. J. Johnson para o trombone. Foi um pioneiro, um desbravador, um músico que pode se orgulhar da trajetória singular e absolutamente original. Infelizmente, jamais obteve a mesma visibilidade que seus pares anteriormente citados. Tampouco conseguiu o mesmo prestígio que baritonistas mais novos.
Para o bem ou para o mal, enquanto saxofonistas como Gerry Mulligan ou Pepper Adams tiveram, por parte da crítica e do público, reconhecimento compatível com seus talentos, Payne ainda remanesce nas sombras. Mas tanto Mulligan quanto Adams sempre souberam reconhecer a importância de Cecil para o desenvolvimento do sax barítono no jazz e não hesitam em incluí-lo no rol de suas influências mais importantes. Conhecer um pouco de sua vida e obra é tarefa que se impõe a todos aqueles que gostam do jazz – e essa talvez seja a melhor forma de homenageá-lo.
Nascido no Brooklyn, Nova Iorque, no dia 14 de dezembro de 1922, Payne teve uma infância normal. Nada faria supor que o garoto, que gostava de cantar e tocar guitarra, fosse se dedicar seriamente à música, até que o dia mágico chegou. A revelação veio pelas ondas do radio, quando o jovem Cecil tinha apenas 13 anos. Lester Young, astro da orquestra de Count Basie, emendava um fabuloso solo em “Honeysuckle Rose” e o vírus do jazz contaminou o garoto para todo o sempre. Pouco depois, seria a vez de assistir, ao vivo, a uma apresentação da orquestra de Basie no Teatro Bedford e constatar a incrível musicalidade de Pres.
Ainda sob o impacto do que havia visto e ouvido, o jovem Payne pediu ao pai um saxofone alto de presente, no que foi prontamente atendido. Logo, logo, começou a receber as primeiras lições, pelas mãos de um saxofonista do bairro, chamado Pete Brown. Não demorou muito para que o garoto começasse a participar de suas primeiras jams, nas quais pontuavam outros jovens músicos de Nova Iorque, como Randy Weston, Max Roach, Wynton Kelly, Ahmed Abdul-Malik e Duke Jordan.
Reza a lenda que os pais de Cecil queriam que ele fosse dentista, profissão pela qual o futuro músico não nutria a menor simpatia. Para sepultar de vez os desejos paternos, o jovem justificou seu desinteresse pela carreira com um argumento simples, mas poderoso: “Ora pai, quem é que iria querer freqüentar um dentista chamado Dr. Payne?”.
Na época, Cecil fazia parte de uma banda chamada Boys High School, que era integrada pelo amigo Roach, pelo trompetista Victor Coulson, pelo pianista Allen Tinney e pelo baixista Leonard Gaskin. O grupo costumava se apresentar no o Monroe’s Uptown House e consta que o próprio Charlie Parker chegou a se apresentar algumas vezes com os garotos.
A rotina de gigs foi quebrada com a convocação para servir o exército, em 1942. Na corporação, Payne tocou em diversas orquestras e se dedicou a mais dois instrumentos de sopro: a flauta e a clarineta. Em 1946, após ter rodado o mundo – serviu até em Okinawa, no Japão – Cecil foi dispensado e voltou a Nova Iorque, decidido a levar adiante a carreira musical.
O primeiro emprego foi na banda de Clarence Biggs, onde começou a tocar sax barítono. Também fez algumas gravações, como altoísta, sob a liderança de J. J. Johnson, até se unir à orquestra do trompetista Roy Eldridge, que então funcionava como atração fixa do clube Spotlight. Foi durante o período em que esteve na big band de Eldridge que Payne trocou, definitivamente, o sax alto pelo barítono.
Determinado a descobrir os mistérios do instrumento, aproveitava o tempo livre para aperfeiçoar suas habilidades em clubes como o Putnam, o Tony’s e o K & C. Foi o primeiro baritonista a transpor para o instrumento as indóceis harmonias do bebop e, por conta dos solos incendiários e da arrojada concepção musical, sua reputação no disputado circuito musical de Nova Iorque só aumentava.
Por essa razão, o Dizzy Gillespie o convidou para integrar a sua orquestra, fato que representou um divisor de águas na carreira do saxofonista. Payne ajudou a moldar a identidade da banda, que contava com a presença de monstros da estatura de Milt Jackson, Ray Brown, Chano Pozo e James Moody, e participou de gravações célebres, como “Cubano-Be, Cubano-Bop”, “Ow!” ou “Stay on It”.
Em 1949, deixou a orquestra de Gillespie, para investor na carreira solo. Gravou para a Decca seu primeiro álbum como líder, à frente de um combo que incluía o pianista Duke Jordan e o trompetista Kenny Dorham. Devido à pouca repercussão do trabalho, Payne aceitou o convite de Tadd Dameron e juntou-se à banda do pianista, permanecendo ali até 1950.
Depois, viriam trabalhos ao lado de James Moody, em 1951, Coleman Hawkins, em 1952, e Illinois Jacquet, de 1954 a1956. Ainda em 1956, excursionou pela Europa com o velho amigo Randy Weston r gravou para a Savoy o LP “Patterns Of Jazz”. Em 1957, ele e Pepper Adams atuaram ao lado de John Coltrane nas gravações do álbum “Dakar”. Até então, Cecil já havia atuado, como sideman, em gravações sob a liderança de Ernie Henry, Earl Coleman, King Pleasure, Clark Terry, Matthew Gee, Jimmy Cleveland, Dinah Washington, Kenny Burrell, Randy Weston, Cannonball Adderley e outros mais.
O ano de 1958 marcou o afastamento temporário dos palcos e estúdios. Payne decidiu trocar a música pelo trabalho de corretor de imóveis, na imobiliária do seu pai. Felizmente, em 1960 ele desistiu de vender casas e apartamentos e voltou à música. A partir daí vieram trabalhos com Machito, Kenny Drew, Lionel Hampton, Benny Golson, Kenny Dorham, Lucky Thompson e Woody Herman.
Atuou na peça “The Connection”, do dramaturgo Jack Gelber, e, em 1961, lançou o tributo “Performing Charlie Parker Music”, acompanhado por Clark Terry, Ron Carter, Duke Jordan e Charlie Persip. Em 1969, mais de 30 anos depois de ter ouvido Lester Young na orquestra de Count Basie, fato que definiu a sua escolha profissional, Payne juntou-se à orquestra do pianista e ali permaneceu por cerca de três anos.
Gravou com regularidade para pequenos selos como Xanadu e Muse e em 1974 integrou a New York Jazz Repertory Company, ao lado de quem excursionou pela Europa com o musical “The Musical Life of Charlie Parker”. No elenco estelar, nomes como os saxofonistas Sonny Stitt, Charles McPherson, Eddie “Lockjaw Davis e Budd Johnson, o pianista Earl Hines, os trompetistas Red Rodney e Ray Copeland, o trombonista Curtis Fuller, o baixista Earl May, o baterista Mickey Roker e o cantor Billy Eckstine.
Na década de 80, Payne agregou-se ao projeto Dameronia, banda comandada por Philly Joe Jones com o objetivo de celebrar a música do pianista, compositor e arranjador Tadd Dameron. A morte de Philly, em 1985, determinou a separação do grupo, que chegou a contar com os talentos de gente como Frank Wess, Walter Davis Jr. e Johnny Coles. Um dos momentos memoráveis de sua carreira nos anos 80 foi o reencontro com o velho parceiro Illinois Jacquet, que rendeu uma aclamada temporada em diversos clubes de Nova Iorque. Payne liderou diversos combos naquela década, boa parte deles contando com a inestimável presença do pianista Richard Wyands.
No início dos anos 90, Payne passou a integrar o cast da gravadora Delmark, por onde lançou alguns dos melhores discos de sua longeva carreira. Um deles é o estupendo “Chic Boom: Live At The Jazz Showcase”, gravado ao vivo no badalado clube Jazz Showcase, em Chicago, nos dias 17 e 19 de agosto de 2000. O álbum conta com os talentos do tenorista Eric Alexander, do baterista Joe Farnsworth, do baixista John Webber, do trompetista Jim Rotondi e do pianista Harold Mabern.
Cecil, do alto de impressionantes 77 anos, dá uma aula de vitalidade e incendeia os seus comandados, que respondem à altura. Todas as composições são de autoria do velho saxofonista, sendo que algumas em parceria com Farnsworth, exceto o standard “Here's That Rainy Day”, de Sonny Burke e Jimmy Van Heusen.
Na primeira faixa, “Chic Boom”, o sexteto faz uma vigorosa travessia pelos mares revoltos do hard bop. Muita energia e disposição, sobretudo por parte do líder, de Rotondi e do ultravirtuose Alexander, cujos solos parecem desafiar as leis da mecânica. Harold Mabern, que na época estava com 64 anos, é uma enciclopédia viva do blues e seu piano arredio dialoga com os metais com intensidade de um vulcão.
“Ding-A-Ling”, fruto da parceria Farnsworth/Payne, vem em seguida, mantendo a mesma pegada. Os solos do líder são extremamente intrincados e demonstram as razões pelas quais ele é idolatrado por baritonistas das mais diversas gerações – de Gerry Mulligan a Ronnie Cuber. Fabulosas também são as performance de Rotondi, um dos mais exuberantes trompetistas da atualidade, e do dínamo Farnsworth.
Em seguida, mais uma composição da dupla, “You Will Be Mine Tonight”, uma charmosa balada romântica que muda radicalmente a atmosfera do concerto. Payne transita com sobriedade e lirismo pelos climas amenos e Rotondi, fazendo usa da surdina, mostra que absorveu bem as lições de Miles Davis – é eloqüente, mesmo utilizando poucas notas. Mabern brilha em um solo curto, mas de elevada carga emocional.
“Bosco” é a composição mais elaborada do álbum, com elementos de blues e de música latina. Farnsworth tem um senso rítmico dos mais apurados e sua percussão é vigorosa. O sopro do líder conjuga robustez e entusiasmo, demonstrando que o jazz, sobretudo nas apresentações ao vivo, deve primar pela espontaneidade, acima de tudo. Alexander chega a ser insolente em seu solo – o ouvinte fica perplexo, tentando entender como alguém consegue construir solos de tamanha complexidade técnica. Instigado pelo tenorista, o versátil Rotondi agora apresenta a sua faceta incendiária, com ecos de Clifford Brown.
“Here's That Rainy Day” revela a versatilidade do líder, que usa a flauta com a mesma desenvoltura com que maneja o sax barítono. Mabern tem uma atuação memorável, brincando com o teclado com a alegria de um garoto, fazendo citações ao tema do desenho Popeye e à indefectível “Misty”. Weber tem a oportunidade de exibir um admirável senso melódico e uma ótima capacidade de improvisação.
Voltando ao clima vulcânico das primeiras faixas, “Cit Sac” é um tema dos mais energéticos, com o sexteto tocando na velocidade do som e interagindo de maneira telepática, fazendo citações a “I’ll Remember April”. Alexander é uma usina de imaginação e técnica, conseguindo ser original e, ao mesmo tempo, reverente à escola de grandes improvisadores do tenor, especialmente o Coltrane da época da Prestige/Blue Note e o Sonny Rollins do início dos anos 60. A vigorosa percussão de Farnsworth e o endiabrado trompete de Rotondi também se destacam.
“Theme” encerra o álbum em alto astral. É quase uma vinheta de pouco mais de três minutos, onde o sexteto se diverte com uma bem-humorada incursão pelo swing e pelo bebop. Durante a apresentação da banda, os entusiásticos aplausos para os músicos, sobretudo para o líder e para Mabern – chamado de “The Iron-Man of the keyboard” – indicam que a noitada deve ter sido inesquecível para a audiência. Sorte nossa que, com o disco em mãos, podemos nos transportar para aquelas noites mágicas de agosto, como se estivéssemos ali, ao lado do palco.
Cecil viveu momentos difíceis com a chegada do século XXI. Embora se mantivesse ativo, realizando concertos em clubes de Nova Iorque como o Smoke, um glaucoma o obrigou a reduzir drasticamente os shows e gravações. Sem esmorecer, enfrentou a doença e as dificuldades financeiras com o apoio da Jazz Foundation of America, que bancou boa parte das despesas com tratamento médico.
No início de 2006, foi diagnosticado um câncer de próstata, que o forçou a uma aposentadoria não programada e que acabaria por ceifar-lhe a vida, no dia 27 de novembro de 2007. Primo do trompetista Marcus Belgrave e irmão da cantora Cavril Payne, Cecil legou à posteridade uma obra honesta e digna, embora, infelizmente, não muito conhecida.
==============================