Música e outras coisas
O DOM DA UBIQÜIDADE
Ubiqüidade, segundo consta dos dicionários, é a capacidade de estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Também chamada de onipresença, ela é uma qualidade perfeitamente associável ao fabuloso pianista, compositor e arranjador John Josephus Hicks Jr., um dos mais talentosos, inventivos e tecnicamente bem dotados de toda a história do jazz. Ao longo de seus mais de 40 anos de carreira, ele faz parte daquele seleto grupo que, como Milt Hinton ou Hank Jones, pode se orgulhar de “ter tocado com todo mundo”.
E quando se fala em “todo mundo”, é todo mundo mesmo! A relação de músicos com quem atuou, seja como líder, seja como acompanhante, é quilométrica: Art Blakey, Hank Mobley, Lucky Thompson, Lee Morgan, Booker Ervin, Woody Herman, Charles Toliver, Sonny Fortune, Betty Carter, Chico Freeman, Arthur Blythe, Pharoah Sanders, Ricky Ford, James Spaulding, Art Davis, Paquito d'Rivera, Idris Muhammad, David Murray, Kenny Barron, Roy Hargrove, Gary Bartz, Al Grey, Frank Wess, Louis Hayes, Buster Williams, Grant Green, George Mraz, Johnny Griffin, Kenny Dorham, Lou Donaldson, Woody Shaw, Jay McShann, Sonny Rollins, Carmen McRae, Freddie Hubbard, Frank Foster, Roy Haynes, Sonny Stitt, James Moody, Archie Shepp, Dinah Washington, Eric Alexander, Elvin Jones, Cecil McBee, Richard Davis, Joe Lovano, Curtis Lundy, Larry Coryell, Harold Ashby, Lester Bowie, David “Fathead” Newman, Frank Morgan, Russell Malone, Joshua Redman, Clark Terry, Ron Carter, Grady Tate e uma infinidade de outros grandes nomes.
Hicks nasceu em Atlanta, na Geórgia, no dia 21 de dezembro de 1941, sendo o mais velho de uma família de cinco irmãos. Seu pai, o reverendo John J. Hicks e sua mãe, Pollie Louise Bledsoe, se mudaram para Los Angeles em meados da década de quarenta, em busca de melhores condições de vida e trabalho e, também, para escapar da vergonhosa política segregacionista que vigorava nos estados do sul.
A mãe de Hicks era pianista amadora e foi com ela que o garoto, ainda na infância, travou o primeiro contato com o instrumento. Fã de jazz, Hicks Sr., que também era profundamente engajado na luta pelos direitos civis, costumava levar o filho para assistir aos concertos dos grandes nomes do jazz que se apresentavam em Los Angeles e foi assim que o garoto pôde ver, ao vivo, as orquestras de Count Basie e Duke Ellington. Em 1953, quando tinha apenas 12 anos, Hicks assistiu a uma apresentação de Art Tatum. A experiência foi uma das mais marcantes em sua vida e decisiva em sua opção de seguir a carreira musical.
Em 1956, quando tinha apenas 15 anos, John se mudou novamente com a família, desta feita para Saint Louis, no estado do Missouri, onde seu pai assumiu a liderança da Union Memorial Methodist Church. Naquela cidade, continuou os estudos musicais e participava ativamente das orquestras e bandas da escola, além de tocar piano nos cultos da igreja comandada por seu pai. Um dos seus melhores amigos daquela época era o jovem Lester Bowie, que mais tarde causaria furor no mundo do jazz de vanguarda, como um dos líderes do Art Ensemble of Chicago.
Concluído o ensino médio, John foi estudar administração na Lincoln University, em Chester County, Pensilvânia. Ele tinha começado a tocar profissionalmente em clubes da região de Saint Louis e já havia adicionado Thelonious Monk e Bud Powell a seu extenso rol de influências, que incluía ainda o próprio Art Tatum, Count Basie e Fats Waller. Por outro lado, o curso de administração se revelou uma experiência frustrante, pois tudo o que Hicks queria era se dedicar à música em caráter integral. Assim, ele se mudou para Boston em 1959, a fim de estudar na prestigiosa Berklee School of Music, onde se graduou em 1962.
Em Boston, o pianista logo atraiu a atanção de grandes nomes do blues e do jazz, tendo excursionado com Little Milton, Albert King, Al Grey, Pharaoh Sanders e Johnny Griffin. Por seu turno, figures de primeira linha como Clark Terry, Miles Davis e Oliver Nelson, que já conheciam Hicks de Saint Louis, o convenceram a tentar a sorte em Nova Iorque, para onde ele se mudou em 1963. Não demorou muito e Hicks estava completamente adaptado à cidade, tocando nas bandas de craques como Kenny Dorham, Lou Donaldson, Johnny Griffin e Joe Henderson. Também excursionou com as cantoras Big Maybelle e Della Reese.
Em 1964, Cedar Walton desligou-se dos Jazz Messengers de Art Blakey, e sugeriu ao baterista que contratasse Hicks para o seu lugar. O pianista fez parte de uma formação que incluía o trombonista Curtis Fuller, o saxofonista John Gilmore e o trompetista Lee Morgan, que naquela ocasião fazia um breve retorno à banda que, seis anos antes, o havia projetado ao estrelato. O trabalho de Hicks com os Messengers pode ser conferido nos ótimos álbuns “’S Make It”, no qual ele divide o piano com o talentoso Victor Sproles, e “Soul Finger”, ambos lançados pela Verve em 1965.
O pianista deu continuidade à educação musical formal, desta feita na Julliard School of Music, onde estudou arranjo e composição. Em 1966 desligou-se dos Messengers, para se unir à cantora Betty Carter, assumindo, além do piano, a direção musical da banda. A parceria encerrou-se em 1968, mas os dois voltariam a trabalhar juntos de 1975 a 1980. Hicks também trabalhou na orquestra do bandleader Woody Herman, onde permaneceu de 1968 a 1970, tendo assumido também a elaboração dos arranjos.
A partir daí, priorizou a formação dos seus próprios pequenos grupos, como o Keystone Trio, seu projeto mais constante entre os anos 80 e 90, no qual se fazia acompanhar do baixista George Mraz e do baterista Idris Muhammad, e o Power Trio, montado no início dos anos 90, com o baixista Cecil McBee e o baterista Elvin Jones. Hicks foi também um dos mais regulares membros da Mingus Dinasty, orquestra criada e liderada pelo baterista Danny Richmond, cuja proposta é manter viva a obra composicional do fabuloso Charles Mingus.
Como muitos músicos de sua geração, Hicks não ficou imune à gigantesca influência de John Coltrane. Segundo o pianista, “há uma ou talvez duas gerações de músicos extremamente influenciados por Trane. E isso não apenas do ponto de vista musical, mas espiritual também. Trane é o nosso Charlie Parker e o seu senso de comprometimento com a música é uma inspiração sempre presente”.
Em 1978 ele gravou para a Charly Records o seu primeiro álbum como líder, “Hells Bells”. Em seguida, viriam dezenas de outros discos em seu próprio nome, para selos como Evidence, DIW, Novus, Red Baron, Milestone, Venus, BMG, Concord, Chesky, Savant, Mapleshade, Landmark e outros. Em 1983 conheceu a flautista Elise Wood, com quem desenvolveria uma prolífica parceria musical. O envolvimento dos dois transcendeu as fronteiras da música e eles se casaram em 2001.
No início dos anos 80, Hicks se tornou muito amigo do contrabaixista brasileiro Nico Assumpção, precocemente falecido em 2001, que havia se mudado para Nova Iorque e começava a ter o seu trabalho reconhecido na Big Apple. Quem conta os detalhes é o saxofonista Ion Muniz, que também morou nos Estados Unidos naquele período: “Ele não foi a Nova Iorque para estudar, Nico já era um baixista do primeiro escalão quando chegou lá, não me lembro do ano, mas creio que foi antes de 1981. (...) Em menos de um mês Nico estava realmente tocando com os gigantes do jazz. Eu lembro que o John Hicks passou a chamar o Nico para todas as suas gigs”.
A partir de meados da década seguinte, o pianista passou a integrar o cast da gravadora High Note, por onde lançou alguns dos seus melhores álbuns, destacando-se os elogiados tributos a importantes nomes do piano jazzístico, como Sonny Clark, Mary Lou Williams, Billy Strayhorn e Erroll Garner.
Outro gigante a merecer uma homenagem de Hicks foi Earl Hines, lembrado no espetacular “Fatha’s Day: An Earl Hines Songbook”. Gravado em sessão única, no dia 20 de maio de 2003, em Nova Iorque, o álbum conta com os talentos de Dwayne Dolphin no contrabaixo e de Cecil Brooks III, que também assina a produção executiva, na bateria.
A faixa de abertura é a sacolejante “Rosetta”, um tema de autoria de Hines, em parceria com W. H. Woode. O arranjo é vivaz e o piano do líder passeia com muita autoridade pela tradição do swing, sem esquecer de adicionar ali pitadas certeiras de blues e de bebop. A retaguarda é segura, criativa e bastante entrosada, com destaque para a batida infalível de Brooks.
A balada “Almost Spring”, composta por L. O. Bass, começa como valsa e, aos poucos, vai adquirindo um indiscutível contorno jazzístico. Hicks extravasa o seu precioso senso melódico, construindo passagens de grande beleza, enfatizando os momentos mais dramáticos do tema com uma empolgante utilização dos graves. Nos momentos mais líricos, seu timbre suave prioriza os silêncios, merecendo atenção mais detida a fascinante atuação de Dolphin.
Como nos outros tributos gravados para a High Note, Hicks acrescenta ao repertório composições próprias e “Remembering Earl and Marva” é a primeira delas. Aqui o líder toca sem qualquer acompanhamento, o que permite ao ouvinte absorver todas as características do seu pianismo cheio de nuances e seu domínio da técnica stride, tão em voga nos anos 20 e 30, quando Hines despontou para o mundo do jazz tocando na banda de Louis Armstrong e liderando suas próprias orquestras. Seu toque trafega com naturalidade entre o minimalismo e a opulência, entre o lirismo e a robustez, sem jamais perder o sentido harmônico.
Em “Serenata”, composta por Leroy Anderson, o arranjo sincopado privilegia o aspecto rítimico-percussivo do piano. Há aqui um discretíssimo acento latino e a performance de Brooks revela um músico de enormes recursos e de extrema versatilidade. O standard “Poor Buterfly”, de John Golden e Raymond Hubbell, recebe um arranjo solene, no qual a sensibilidade e a melancolia se misturam em uma fusão de comovente beleza. O trio demonstra uma interação telepática e a interpretação é pura emotividade.
Fazendo a temperatura subir novamente, Hicks e seus comandados entregam uma estonteante versão de “My Monday Date”, mais um tema de autoria de Hines. A exuberância do arranjo, muito bem assentado no blues, permite ao líder que realize uma verdadeira exibição de gala, onde o virtuosismo técnico se coloca a serviço da música e não o contrário. Não há aqui uma competição de velocidade ou a distribuição de acordes em profusão, mas todos três têm a oportunidade de improvisar e o fazem com maestria, mostrando destreza e equilíbrio em seus solos.
A inebriante “Fatha's Bedtime Story” é mais um tema de Hicks e incorpora elementos da música erudita, em especial de Claude Debussy. Mais uma vez atuando solo, o pianista destila a ternura e a suavidade de uma canção de ninar. Composta a seis mãos por Charles Daniels, Gus Arnheim e Harry Tobias, “Sweet And Lovely” retoma a atmosfera swingante, em mais uma interpretação vigorosa do trio, em especial de Brooks, cujo solo é dos mais consistentes.
“Rhythm Run (Uphill)” é um blues arejado, composto e executado apenas por Hicks, que mais uma vez lança mão do stride piano e demonstra um conhecimento enciclopédico das raízes do jazz, com emulações de blues, ragtime e spirituals. De acordo com as informações contidas no release do álbum, a faixa foi composta de improviso, no próprio estúdio, durante uma pausa nas gravações. Enquanto os companheiros saíam para comer alguma coisa, Hicks, que não estava com fome, sentou-se ao piano e improvisou esse tema. Felizmente, o gravador não havia sido desligado e, satisfeitos com o resultado, o pianista e o produtor Brooks acabaram incluindo a composição no disco.
Piano e contrabaixo se unem em “You Can Depend on Me” e o resultado é uma emocionante versão desse clássico de autoria de Charles Carpenter, Earl Hines e Louis Dunlap. O duo constrói uma atmosfera romântica e arrebatadora, com bom gosto, beleza e discrição. Dolphin elabora linhas harmônicas sofisticadas e Hicks, qual Bill Evans, transpira paixão e lirismo incontidos. Com um pé no blues e outro no ragtime, a encantadora “Twelve Bars For Linton” é uma homenagem de Hicks ao irmão de Erroll Garner, o também pianista Linton Garner, falecido em março de 2003, poucos meses antes da gravação deste álbum.
Para encerrar, outra composição de Hicks, a sóbria “Synopsis”. Trata-se de mais um solo de piano – o mais extenso do cd, com mais de seis minutos de duração – no qual o autor faz uma belíssima investigação sobre as origens do blues, usando dissonâncias típicas de um Thelonious Monk. Um disco elegante e refinado, que a cada audição transporta o ouvinte a novas descobertas sonoras, graças às mãos mágicas do pianista. Não é à toa que o crítico Ken Dryden vaticina: “muitos músicos de jazz aprenderiam bastante sobre como fazer um álbum tributo apenas ouvindo esta gema elaborada por John Hicks”.
Durante a sua carreira Hicks tocou em alguns dos mais renomados palcos do planeta, como o Carnegie Hall, o Lincoln Center, o Kennedy Center, o Ronnie Scott's e o Spivey Hall. Marcou presença em festivais como o de Marciac, da Umbria, do Porto, de Montreal, de Loosdrecht, do Estoril e o North Sea. Seu passaporte registra passagens por países de todos os continentes, tendo se apresentado na Holanda, Japão, Austrália, Israel, Alemanha, França, Inglaterra, Polônia, Itália, Panamá, África do Sul, Canadá, Suécia, Noruega, Dinamarca, Taiwan, Portugal e muitos outros.
Suas habilidades como compositor podem ser observadas em dezenas de temas que deixou gravados, destacando-se “Naima's Love Song”, feita em homenagem à filha, Naima, cujo nome é, por sua vez, uma homenagem à famosa composição de John Coltrane. Hicks também demonstrava especial predileção pelo formado de duo, tendo gravado assim com Ray Drummond (“Two Of A Kind”, Evidence, 1993), Richard Davis (“The Bassist: Homage To Diversity”, Palmetto Records, 2001) e Frank Morgan (“Twogether”, High Note, lançado postumamente em 2010).
No dia 01 de agosto de 1990 apresentou-se no exclusivíssimo Maybeck Recital Hall, para um concerto de piano solo e o resultado pode ser conferido no sétimo volume da prestigiosa série Live at Maybeck, da Concord. Para o crítico Nat Hentoff, Hicks é “um músico de excepcional consistência, enorme integridade e capaz de evoluir continuamente”. O exigente Richard Cook assinala que o pianista é um virtuose que “possui um raro senso de autoridade, que impõe a tudo o que toca a dignidade de um recital”.
Sua versatilidade permitia-lhe ficar à vontade nos mais diversos contextos, indo do blues ao free jazz, passando pelo swing, pelo bebop, pelo hard bop e pelo mainstream jazz, com igual intimidade. É um dos poucos músicos capaz de gravar, com a mesma desenvoltura, tanto com um veterano bluesman como Jay McShann (“The Missouri Connection”, Reservoir, 1993) quanto com artífices do jazz de vanguarda como Pharoah Sanders, Oliver Lake, Arthur Blythe ou Hamiet Bluiett (em diversos álbuns dos quatro).
Para tristeza dos fãs do jazz, Hicks morreu no dia 10 de maio de 2006, em decorrência de uma hemorragia interna. Sua última apresentação foi feita três dias antes, na St. Mark's United Methodist Church, no Harlem, em Nova Iorque, da qual seu pai havia sido ministro. Nos dias 29 de julho e 05 de agosto daquele ano, o falecido pianista foi homenageado pelo amigo Kirk Lightsey, que realizou com dois concertos, durante a edição do Caramoor Jazz Festival. Hicks estava escalado para participar do festival, mas foi abatido pela doença alguns meses antes.
Nos últimos anos, havia enveredado pela educação musical, ministrando cursos e oficinas em instituições como a New York University e a New School. Sobre ele, o amigo e companheiro de palco e estúdios Cecil Brooks III escreveu: “John Hicks era um embaixador da boa vontade, um ser humano generoso e amável. Era alguém que, apesar de todas as suas realizações musicais e do seu majestoso talento, sempre demonstrava grande humildade e possuía a dignidade de um cavalheiro”.
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