BETWEEN THE DEVIL AND THE DEBUSSY
Música e outras coisas

BETWEEN THE DEVIL AND THE DEBUSSY




Não, não, não! O sujeito que você vê na capa do álbum “Looking Back” não é o ator Tim Robbins, embora a semelhança seja bastante grande. Na verdade, trata-se de um dos maiores pianistas da história do jazz, embora, lamentavelmente, não seja dos mais conhecidos: Steve Kuhn. Para se ter uma idéia de sua importância e de suas habilidades, foi o primeiro nome escolhido por John Coltrane, quando este decidiu abandonar Miles Davis e priorizar a sua carreira solo. A parceria não rendeu os frutos esperados e o nosso herói foi substituído por ninguém menos que McCoy Tyner.

Conheçamos um pouco mais sobre a vida e a carreira deste talentoso músico, nascido no dia 24 de março de 1938, em Nova Iorque. Sua família era de origem húngara e o garoto foi criado no Brooklin. Aos cinco anos já recebia as primeiras lições de piano clássico. Desde muito cedo, apaixonou-se pelo boogie-woogie (Meade Lux Lewis, James P. Johnson e Pinetop Smith são citados por ele como fundamentais em sua formação musical) e pelo jazz, que lhe chegavam pelas ondas do rádio, e costumava fazer improvisações sobre temas de Bach e Mozart, seus compositores favoritos, sendo que até hoje é comum em seus discos a inclusão de composições eruditas, interpretadas de maneira jazzística.

Os estudos prosseguiram na adolescência, agora em Boston, para onde sua família havia se mudado no início dos anos 50, sob a tutela da renomada educadora Margareth Chaloff, que o apresentou aos pianistas russos Vladimir Horowitz e Andrej Gavrilov. Naquela cidade, Kuhn envolveu-se intensamente com a cena musical, acompanhando, com inacreditáveis 14 anos, grandes músicos locais como Serge Chaloff (o talentoso baritonista, filho de Margaret e precocemente falecido em 1957), Herb Pomeroy, Joe Gordon e Charlie Mariano ou com visitantes ilustres como Coleman Hawkins, Chet Baker (que o convidou para excursionar em Paris, quando o pianista tinha apenas 15 anos, mas os pais deste, sabiamente, não permitiram) e Vic Dickenson.

Formado em Artes pela Harvard University, em 1959, Kuhn jamais abandonou sua paixão pelo jazz. Tanto é que, naquele mesmo ano, matriculou-se na mítica Lennox School of Music, tendo como colegas de turma Ornette Coleman, Don Cherry, Larry Ridley e o hoje esquecido Gary McFarland (um talentoso vibrafonista, compositor e arranjador, com quem Kuhn desenvolveria uma interessante parceria na década seguinte e que morreria, tragicamente, envenenado com metadona em 1971), e tendo professores do gabarito de John Lewis, Max Roach, Herb Pomeroy, George Russell, Ray Brown, Gunther Schuller, Milt Jackson e Bill Evans (talvez a sua influência mais evidente, juntamente com Lennie Tristano e Red Garland).

De volta a Nova Iorque, em 1959, o pianista foi convidado por Kenny Dorham para integrar sua banda. A associação durou quase dois anos, interrompida brevemente por conta de um convite irrecusável: em 1960, Steve foi procurado por John Coltrane, que na época montava o seu próprio quarteto e precisava de um pianista. Com o vistoso salário de 135 dólares por semana (então uma belíssima quantia, especialmente para um músico de jazz), Kuhn trabalhou com o saxofonista por cerca de dois meses, durante uma temporada no clube Jazz Gallery, no East Village.

Embora Kuhn fosse, do ponto de vista técnico, um pianista excepcional, não houve a esperada convergência de idéias e, musicalmente, a parceria não funcionou a contento. Todavia, a ruptura foi pacífica e ambos continuaram amigos – a seriedade que Trane devotava à música impressionou o jovem pianista tão intensamente que as poucas semanas de convívio seriam para ele uma lição para o resto da vida.

O substituto de Steve foi o fenomenal McCoy Tyner e o quarteto liderado por Coltrane entrou para a história do jazz como um dos mais poderosos e criativos combos de todos os tempos. Quase 40 anos depois, Kuhn prestaria uma emocionada homenagem ao saxofonista, ao gravar um álbum quase que inteiramente dedicado às suas composições, chamado “Mostly Coltrane” (ECM, 2009), ao lado de Joe Lovano, David Finck e Joey Baron.

Vida que segue, Kuhn voltou ao grupo de Dorham, juntando-se, em seguida, a Stan Getz (1961 a 1963) e Art Farmer (1964 a 1966). Sobre os tempos com Getz, que vivia um período de elevada popularidade, por conta de seus álbuns de bossa nova com Charlie Byrd, o pianista recorda: “Éramos tratados como pop stars”. Como sideman, dividiu palcos e estúdios com Pete La Roca, Oliver Nelson, Laurindo de Almeida, Scott LaFaro, Bob Brookmeyer, Bill Barron, Phil Woods, Lee Konitz, John Rae, Bobby Jaspar, Ray Brown, Grady Tate, Joe Henderson e outros.

Ao mesmo tempo, iniciava uma personalíssima carreira solo, formando seu primeiro trio ao lado de Steve Swallow e Pete LaRoca. Dois marcos em sua discografia são: “Country and Western Sound of Jazz Pianos” (Dauntless Records, 1963), onde fazia uma releitura jazzística de temas country e de blues como “Trouble In Mind”, ao lado da pianista Toshiko Akiyoshi, dos baixistas Dave Izenzon e John Neves, do guitarrista Barry Galbraith e do baterista Pete Laroca e o elogiado “The October Suite” (Impulse, 1966), uma hipnótica viagem pelo jazz e pela música erudita em parceria com Gary McFarland, compositor de todos e temas e responsável pelos arranjos.

Em 1967, desencantado com a cena musical norte-americana, sua elegância e sofisticação musical o impeliram para a Europa, fixando-se em Estocolmo. Ali, priorizou o aspecto composicional, flertou descaradamente com o jazz de vanguarda e começou a usar o piano elétrico e o sintetizador. Retornou aos Estados Unidos em 1971, tendo sido uma das principais atrações do Festival de Newport daquele ano. Em 1974 iniciou uma prolífica associação com o selo ECM, cujos discos contavam com as presenças de importantes músicos europeus e brasileiros, como Jan Garbarek, Arild Andersen ou Oscar Castro-Neves. Notável também a sua longeva parceria com a cantora Sheila Jordan, que renderia uma infinidade de concertos e alguns álbuns entre os anos 70 e 90.

A partir da década de 80, Kuhn retorna ao jazz mais ortodoxo e eminentemente acústico, montando alguns dos mais primorosos trios de sua carreira, por onde passaram luminares como os baixistas Ron Carter, Eddie Gomez, David Finck e Miroslav Vitous e bateristas do naipe de Al Foster, Buster Williams, Jack DeJohnette e Lewis Nash. A sua discografia inclui álbuns para selos como Blue Note, Evidence, Venus, Postcards Records e Concord, pelo qual lançou o estupendo “Looking Back”.

Gravado em outubro de 1990, no RPM Sound Studio, o álbum apresenta a costumeira qualidade sonora das produções da Concord e um repertório primoroso. Ao lado do pianista, os ótimos David Finck (baixo) e Lewis Nash (bateria), dois dos seus mais constantes parceiros nos anos 90. A faixa de abertura, que também dá nome ao disco, é uma composição do líder, muito bem assentada na tradição bop, com melodia rica, excelentes solos e uma discreta citação a “Moment’s Notice”, de Coltrane.

A reverencial “The Duke”, de Dave Brubeck, é interpretada com toda a liturgia que o autor e o homenageado requerem. Kuhn impõe algumas texturas orientais à sua interpretação, mas realça o caráter eminentemente bluesy do tema, com uma extraordinária atuação de Nash. Duas composições do brasileiríssimo Antônio Carlos Jobim (“How Insensitive” e “Zingaro”), ganham arranjos discretos e elegantes, mas que revelam a intimidade de Kuhn com a música brasileira.

Exímio executante de baladas, Kuhn extrai um lirismo quase dramático da belíssima “Stella By Starlight”, em uma interpretação pungente – econômica em alguns momentos – mas cheia de emotividade. Finck e Nash são dois estupendos acompanhantes e os solos de ambos, especialmente do primeiro, congregam uma técnica primorosa com a entrega e o arrebatamento exigidos pelo líder.

“Alone Together”, de Howard Dietz e Arthur Schwartz, é outro standard que já mereceu centenas de versões, e que aqui ganha um arranjo vivaz, colorido, mostrando que, para além do enorme gabarito técnico, Kuhn é um pianista intuitivo e sem qualquer tipo de preconceito musical, intercalando às sofisticadas harmonias da canção uma breve, porém marcante, citação a “Eleanor Rigby”, dos Beatles. O frenético Nash protagoniza um dos mais eloqüentes solos do disco, enquanto o baixo de Finck é pura vibração.

“Gee Baby, Ain't I Good to You” é um blues poderoso, composto em 1929 por Don Redman e Andy Razaf, no qual o pianista destila sua técnica primorosa e seu elevado sentido rítmico, resultando em uma abordagem envolvente e sofisticada. Fink, mais uma vez, rouba a cena, com seu solo torrencial. Uma versão minimalista de “Baubles, Bangles and Beads”, em ritmo de valsa, é o veículo perfeito para mostrar a enorme familiaridade do pianista com a música erudita. Com efeito, até hoje o pianista inclui em seus discos versões de temas eruditos e não nega a profunda influência que a música de Ravel e Debussy exerceu sobre ele.

A contagiante “Will You Still Be Mine” é outro momento sublime, na qual o trio destila muita energia, coesão e entrosamento, atuando com tamanha intensidade que o ouvinte tem a impressão de estar em um enfumaçado clube de Nova Iorque. Para encerrar, uma releitura impressionista da balada “Emmanuel”, do compositor francês Michel Colombier, transbordante de lirismo e nostalgia. Caso você não tenha nenhum disco de Steve Kuhn em suas prateleiras, esta é uma excelente oportunidade para conhecer o trabalho deste fabuloso pianista.

Steve Kuhn continua morando em Nova Iorque e se mantém em plena atividade, tocando regularmente em clubes da Grande Maçã. Um dos seus discos mais recentes, “Live At Birdland” (ao lado dos velhos amigos Ron Carter e Al Foster), foi gravado em 2006, ao vivo, no famoso clube nova-iorquino. Também costuma excursionar pelo mundo, participando de festivais e concertos, sobretudo pela Europa e Japão. Em entrevistas recentes, afirmou que tem um sonho: trabalhar com o arranjador alemão Claus Ogerman. Esperamos que esse sonho se realize – de preferência sob a forma de um álbum dedicado à obra do nosso maestro soberano Tom Jobim!

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