Música e outras coisas
TOMMY FLANAGAN: PORQUE O INSTANTE EXISTE...
O reconhecimento por parte de seus pares é inteligentemente unânime. Desde muito cedo, o precoce Tommy Flanagan acostumou-se a ser incensado por outros músicos como um dos maiores entre os maiores. Não que os encômios tivessem sobre a sua personalidade afável e modesta qualquer efeito deletério. Ser chamado de gênio por luminares como Ella Fitzgerald ou John Coltrane jamais afetou a sua simplicidade algo monástica ou demoveu a sua férrea convicção acerca da transitoriedade da glória.
Para o Poeta do Jazz, carinhoso apelido que recebeu em virtude do seu exponencial lirismo, o mais importante de tudo foi, é e será sempre a música. Foi esta arte que ele tão consistentemente empenhou-se em dignificar. Se nesse caminho, prenhe de beleza e exaustão, conseguiu um amplo reconhecimento, tanto melhor. Mas ele continuaria a sua jornada rumo ao absolutamente belo de qualquer maneira. Com ou sem aplausos. Com sem prêmios.
Nascido em 16 de março de 1930, na feérica Detroit, o jovem Flanagan começou a tocar profissionalmente muito cedo. Em 1945, com apenas 15 anos, já era um regular freqüentador do palco do célebre Bluebird, dividindo-o com outros grandes músicos da cena local, como Milt Jackson, Thad Jones, Curtis Fuller, Elvin Jones e Kenny Burrell. Antes de completar 20 anos, já excursionava com Dexter Gordon e Lucky Thompson. Nos anos 50, após cumprir o serviço militar (de 1951 a 1953), realizou alguns trabalhos com Blue Mitchell e Kenny Burrell, até fixar-se em Nova Iorque, em 1956.
A partir daí, seria mais fácil dizer com quais dos grandes músicos do jazz Flanagan não tocou (a rigor, dos grandes mesmo, o pianista não tocou apenas com Charlie Parker, pelo singelo motivo de que Bird falecera em 1955). A lista de músicos que tiveram a honra de tê-lo como acompanhante, além dos já mencionados, é estelar e quilométrica: Oscar Pettiford, Sonny Rollins, J. J. Johnson, Kenny Dorham, Art Farmer, Ray Brown, John Coltrane, James Moody, Benny Carter, Coleman Hawkins, Harry “Sweets” Edison, Wes Montgomery, Dizzy Gillespie, Miles Davis, Freddie Hubbard, Charles Mingus, Gerry Mulligan, Pee Wee Russell, Art Pepper e Ella Fitzgerald (a quem acompanhou por mais de 10 anos).
Influenciado por Bud Powell, Art Tatum e Nat Cole, Flanagan lançou o seu primeiro disco como líder em agosto de 1957, o aclamado “Overseas”, comandando um trio que incluía os excelsos talentos de Elvin Jones e Wilbur Little. Poucos meses antes, havia dividido os créditos do excelente “The Cats” com o velho amigo Kenny Burrell e o novo amigo John Coltrane (a quem haveria de acompanhar no magistral “Giant Steps”, de 1959). Em 1982, Flanagan prestaria uma emocionada e emocionante homenagem a Trane, gravando composições do saxofonista em um álbum denominado, muito justamente, de “Giant Steps”.
Por seus célebres trios passaram os bateristas Elvin Jones, Roy Haynes, Al Foster, Art Taylor e Lewis Nash, e os baixistas Wilbur Little, Tommy Potter, Ketter Betts e Jesper Lundgaard, além do virtuose tcheco George Mraz, ao lado de quem construiu uma belíssima discografia entre os anos 80 e 90. Nos dias 16 e 17 de junho de 1983, Flanagan e outros dois músicos extraordinários reuniram seus admiráveis talentos pela primeira e única vez, para gravar, pela Gambit, um disco espetacular. O nome do álbum é simplesmente “The Trio” e os outros músicos são ninguém menos que Ron Carter e Tony Williams.
Talvez não fosse necessário dizer que os três músicos, mestres em seus respectivos instrumentos, dão o melhor de si em uma gravação tão espontânea que é como se os três estivessem tocando na sala de estar do ouvinte. Provavelmente seria redundante mencionar que a fidalguia, a elegância e o bom gosto na execução, características das mais evidentes entre os três instrumentistas, permeiam todas as faixas. Certamente não há qualquer necessidade de informar que as 14 músicas escolhidas são absolutamente homogêneas do ponto de vista qualitativo. Os brevíssimos 73 minutos e 18 segundos de delicadeza em estado puro são soam aos ouvidos tão ternamente quanto as águas cristalinas de um regato, ao sol tranqüilo de um dia de primavera.
“It Don’t Mean a Thing”, de Duke Ellington, é executada com um swing e uma graça arrebatadores – o baixo de Carter desliza através da melodia, como se fosse um passeio mágico. O calor tropical de “St. Thomas” é abrandado com uma leitura que realça as suas características bop e o implacável Carter, mais uma vez, executa passagens verdadeiramente impossíveis para 99,99% dos contrabaixistas do universo. As arestas de “Misterioso” são aparadas com muita inventividade, mas não há qualquer prejuízo às ousadas concepções harmônicas de Monk – ao fim e ao cabo, o blues emana íntegro como se tivesse sido recolhido diretamente das águas barrentas do Mississipi.
“Milestones” jamais foi executada com tamanha delicadeza, em um dos momentos mais sublimes do disco. Além de Monk e Davis, outros grandes nomes do jazz também tiveram sua obra revista sob o olhar altamente emocional do trio. É o caso de Tadd Dameron, com uma versão cristalina de “Good Bait”, de John Lewis, cuja “Afternoon In Paris” merece uma releitura extraordinária, com um discretíssimo tempero de bossa nova, e de John Coltrane, que tem a clássica “Giant Steps” executada de maneira bastante audaciosa, conferindo ao tema, um dos mais conhecidos do jazz, novas e delicadas tessituras sonoras e ressaltando a elevada capacidade de improvisador do pianista.
Os três músicos também integram ao repertório composições próprias, todas de altíssimo nível. Williams comparece com “Sister Cheryl”, uma balada sofisticada, Carter apresenta uma sacolejante “New Song”, que é puro bebop, e Flanagan contribui com a exuberante “Minor Mishap”, certamente sua composição mais conhecida e que recebe um arranjo devastador. O momento mais emocionante do álbum talvez seja a encantadora versão de “My Ship”, que parece ter sido composta especialmente para a execução sofisticada de Flanagan. Um disco para quem acredita que a poesia do jazz é tão eloqüente e terna quanto aquela que produzem os mais líricos poetas.
O pianista faleceu no dia 16 de novembro de 2001, em Nova Iorque, em decorrência de um aneurisma arterial – já de algum tempo vinha sofrendo de problemas coronários, mas jamais abandonou os palcos e estúdios. Apesar da saúde frágil, Flanagan continuou a realizar, até quase o final de sua vida, as duas habituais temporadas anuais em seu adorado Village Vanguard. Não é de se espantar. Cecília Meireles já havia, alguns anos antes, decantado a matéria de que são feitos poetas como ela e Flanagan:
“Eu canto porque o instante existe
E a minha vida está completa.
Não sou alegre nem triste,
Sou poeta”.
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