Quem já teve a oportunidade de assistir, ao vivo ou em vídeo, uma apresentação do pianista norte-americano Keith Jarrett, certamente vivenciou uma experiência única e inesquecível. Duas coisas chamam a atenção em suas performances ao vivo: a técnica fabulosa, que o coloca, certamente, entre os maiores pianistas de qualquer época, e os grunhidos que emite ao tocar o piano. Jarrett mal consegue ficar sentado na banqueta. Movimenta-se constantemente, levanta os braços, sorri, emite sons guturais, fecha a cara, afunda a cabeça no teclado como se nada mais houvesse no mundo, bufa, rosna, dança. Assisti-lo é uma experiência sensorial que transcende a audição. Sua postura corporal é uma extensão da sua forma de tocar ou, antes, a sua forma de tocar é o reflexo inacabado de sua personalidade inquieta.
Essa inquietude vem de longe. Consta que com apenas seis meses o precoce Jarrett, nascido no dia 08 de maio de 1945, em Allentown, Pensilvânia, já articulava algumas palavras. Com apenas dois anos já era um ouvinte atento de música erudita. Aos três anos iniciou-se nos mistérios do piano e aos sete já compunha alguns temas e era capaz de improvisar como um veterano. Datam dessa época os primeiros recitais, ainda na cidade natal, sendo que pouco antes, quando tinha apenas cinco anos, chegou a se exibir em um programa televisivo apresentado pelo bandleader Paul Witheman. Com apenas nove anos, apresentou-se no Madinon Square Garden, em Nova Iorque.
Ouvinte compulsivo de Mozart, Bach, Beethoven, Debussy, Saint-Saëns e Ravel, o foco inicial do jovem pianista foi a música erudita, tendo sido aluno de uma afamada professora local, Eleanor Sokoloff. Durante o período no colegial, feito na Emmaus High School, Jarrett descobriu o jazz, primeiramente pelas mãos de Dave Brubeck. Apaixonou-se pelo estilo, que passou a dividir com a música clássica o espaço em suas afeições. Ali também recebeu aulas de violino e bateria, instrumentos que domina com razoável autoridade.
Em 1963, quando sequer havia completado dezessete anos, ganhou uma bolsa para estudar no prestigioso Berklee College of Music, em Boston. A fim de complementar o orçamento apertado, tocava em bares, coquetéis, festas de casamento e clubes da cidade, onde começou a chamar a atenção dos meios musicais. Desencantado com o academicismo de Berklee, o pianista abandona o curso e se muda para Nova Iorque em 1965, onde logo é contratado por Art Blakey, como um de seus Jazz Messengers. Apresentando-se em clubes da cidade, como o Village Vanguard, Jarrett fez amizade com o baterista Jack DeJohnette, que tocava com o saxofonista Charles Lloyd e recomendou a contratação do jovem pianista.
Era 1966 e, na época, o Charles Lloyd Quartet, que contava ainda com o contrabaixista Cecil McBee, rivalizava em popularidade e prestígio com os grupos de Miles Davis e John Coltrane. O álbum “Forest Flower” (Atlantic), gravado ao vivo no Festival de Moneterey de 1966, chegou a figurar entre os mais vendidos da Billboard, um feito e tanto para um álbum de jazz. Na crista da onda, a banda fazia uma interessantíssima mistura de blues, hard bop, psicodelia, free jazz e música pop e a agenda apertada, incluía a participação em festivais de jazz do mundo inteiro.
Com Lloyd, Jarrett fez as suas primeiras excursões à Europa, incluindo uma turnê pela União Soviética, em maio de 1967, com shows em Leningrado (atual São Petesburgo) e Moscou. Sempre em busca de novas formas de expressão musical, Jarrett começou a tocar sax soprano nesse período e gravou um elogiado álbum com o vibrafonista Gary Burton (“Gary Burton & Keith Jarrett”, Atlantic, 1970, que conta com as participações de Sam Brown na guitarra, Steve Swallow no baixo e Bill Goodwin na bateria).
Ao mesmo tempo, o pianista ensaiava os primeiros passos da carreira solo, montando um trio com o baixista Charlie Haden e o baterista Paul Motian. Com essa formação, grava, em 1967, o seu primeiro álbum como líder, “Life Between The Exit Signs”, para a Atlantic. A associação com o saxofonista durou até 1969 e, por conta de divergências artísticas, Jarrett saiu do grupo. Não sem antes dirigir sua língua ferina contra o ex-patrão: “Aprendi muito mais tocando piano em bares do que com Lloyd”.
Sem abrir mão do trabalho com seu próprio trio, Jarrett foi contratado por Miles Davis em 1970, tendo participado de álbuns da fase fusion do trompetista, como “Live/Evil” e “Miles Davis At Filmore: Live At Filmore East”, ambos de 1970, e “Get Up With It”, que reúne gravações feitas entre 1970 e 1974. Na banda de Davis, Jarrett tocava piano acústico, elétrico e órgão, dividindo espaço com feras como Jack DeJohnette, Dave Liebman, John McLaughlin, Gary Bartz, Ron Carter, Al Foster, Airto Moreira, Chick Corea, Dave Holland, Hermeto Pascoal, Billy Cobham e outros.
Em 1971 Jarrett deu adeus a Miles e investiu pesadamente na carreira solo, tendo agregado a seu trio o saxofonista Dewey Redman, ligado ao jazz de vanguarda. O grupo, conhecido como “The American Quartet”, era complementado, ocasionalmente, pelo percussionista Airto Moreira, e gravou álbuns para a Columbia, Atlantic e Impulse. No final daquele mesmo ano, inicia uma prolífica parceria com o selo alemão ECM, por onde lançaria a maioria de seus discos a partir de então.
O primeiro deles foi “Facing You”, onde Jarret atua desacompanhado de outros músicos. Outra experiência levada a cabo pelo pianista foi o chamado European Quartet, integrada pelo saxofonista Jan Garbarek, pelo contrabaixista Palle Danielsson e pelo baterista Jon Christensen. Dentre os muitos álbuns lançados nesse formato, destaca-se os aclamados “Personal Mountains”, de 1974, e “My Song”, de 1977, gravado para a gravadora alemã.
No dia 24 de janeiro de 1975, no sacrossanto palco do Cologne Opera House, em Colônia, Jarrett gravou aquele que talvez seja o disco de piano solo jazzístico mais reverenciado de todos os tempos: o seminal “The Köln Concert”. A bordo de um Bösendorfer que, reza a lenda, estava em precárias condições de manutenção, ele celebra uma verdadeira comunhão com a arte e a sensibilidade, em um caleidoscópio de harmonias hipnotizantes. São quatro temas, registrados em um influxo criativo que mistura arrojo técnico, inventividade e paixão, resultando em um dos momentos mais sublimes da improvisação jazzística em todos os tempos. O álbum vendeu mais de dois milhões de cópias na época e até hoje é um dos recordistas de vendas da ECM, tendo ultrapassado a casa dos três milhões e meio de cópias.
O pianista jamais abandonou completamente a música erudita. Além de imprimir muitos de seus elementos em suas interpretações eminentemente jazzísticas, ele costuma realizar concertos exclusivamente dedicados ao repertório clássico, executando composições de Bartók, Hindemith, Beethoven, Mozart, Purcell e Scarlatti. Também gravou álbuns dedicados às obras de Bach, Handel e do compositor russo Dmitry Shostakovich. Em “The Celestial Hawk” (ECM, 1980), apresentou-se ao lado da Syracuse Symphony, com regência do maestro Christopher Keene, executando um repertório erudito de sua autoria.
Em 1983, uma nova guinada na carreira. Numa época em que o jazz acústico vivia uma espécie de entressafra criativa, antes do aparecimento e da consolidação dos chamados Young Lions liderados por Wynton Marsalis, Jarrett resgatou a simplicidade, formando o trio Standards, ao lado do velho amigo Jack DeJohnette e do baixista Gary Peacock. Desde então, o trio já fez centenas de apresentações pelo mundo. Muitas delas acabaram se tornando álbuns, todos lançados pela ECM, gravados durante concertos em Nova Iorque, Paris, Tóquio, Colônia, Munique, Oslo e outras cidades. Em 1995 a gravadora lançou o espetacular “Keith Jarrett At The Blue Note: The Complete Recordings”, álbum sêxtuplo que registra a temporada do trio no clube Blue Note de Nova Iorque, durante o mês de junho de 1994.
Em 1996, o pianista sofreu um grave revés. Foi diagnosticado como portador de uma grave doença neurológica chamada Síndrome da Fadiga Crônica, que o manteve afastado dos palcos e estúdios durante quase três anos. Somente no final de 1998 pôde voltar a tocar gravou, no estúdio que mantém em sua mansão vitoriana em Oxford Township, Nova Jérsei, o álbum “The Melody At Night, With You”, com canções em homenagem à esposa Rose Anne Colavito. Após um longo e delicado tratamento, Jarrett retornou aos poucos à rotina e em 1999 celebrou a volta aos palcos em grande estilo, com o álbum duplo “Whisper Not”, gravado em Paris, ao lado dos parceiros DeJohnette e Peacock, e lançado no ano seguinte.
Em 2001, o trio foi o destaque absoluto do Festival de Montreux e a apresentação foi devidamente registrada pela ECM. Lançado em 2007, sob a forma de um esplendoroso álbum duplo denominado “My Foolish Heart”, o álbum faz parte das inúmeras celebrações pela passagem do 25º aniversário da parceria. Como de hábito, a integração entre os três músicos beira o sobrenatural e o repertório é dos mais primorosos.
“Four”, de Miles Davis, é a faixa escolhida para abrir o disco. Com um swing arrebatador, Jarrett esmiúça as harmonias engendradas pelo ex-patrão, com uma agilidade ímpar. Seus acompanhantes, exímios em seus respectivos instrumentos, têm amplo espaço para improvisar, com destaque para a sofisticada percussão de DeJohnette.
“My Foolish Heart”, balada de Ned Washington e Victor Young que dá nome ao disco, é uma sublime conjunção de lirismo e competência técnica. O dedilhado de Jarrett é etéreo, como se quisesse fazer levitar o piano. São quase doze minutos de doçura e encantamento, merecendo atenção o trabalho de Peacock, um ás na plenitude de sua arte.
“Oleo” é, talvez, a composição mais conhecida de Sonny Rollins. A versão do trio é efusiva, pouco se atendo à melodia original e centrada na mais pura improvisação. Solos arrojados e uma atitude destemida são as características mais marcantes dessa que é uma das mais contagiantes do disco. Imortalizada por Billie Holiday, “What's New”, de Johnny Burke e Bobby Haggard traz de volta a atmosfera lírica, com direito ama breve citação a “Lullaby Of Birdland”.
“The Song Is You” é uma das mais fabulosas canções da dupla Oscar Hammerstein e Jerome Kern. O trio imprime um andamento mais rápido, explorando com maestria o aspecto jazzístico do tema. DeJohnette brilha em uma execução swingante e repleta de sutilezas. O líder possui um manancial de recursos, trafegando pela história do piano com enorme autoridade, indo do stride ao bebop, passando pelo swing e pelo dixieland. O flerte com o jazz de vanguarda é discreto, mas perceptível. Uma versão verdadeiramente antológica.
“Ain't Misbehavin'” e “Honeysuckle Rose” são as duas composições de Fats Waller e Andy Razaf incluídas no disco. O passeio pelas formas mais tradicionais do jazz continua e não poderia haver melhor guia que o audacioso Jarrett. Sua execução límpida e fluida remete aos tempos históricos do ragtime, sem esquecer a colossal influência do blues. A destreza dos acompanhantes merece audição mais detida. Ora é Peacock quem surpreende o ouvinte, no momento seguinte é o baterista, imprimindo um andamento marcial ao jazz dos primórdios do século XX. Os adjetivos são insuficientes para descrever a comunhão dos músicos entre si e a verdadeira cumplicidade que estabelecem com o ouvinte.
“You Took Advantage of Me” é uma gema da ourivesaria de Lorenz Hart e Richard Rodgers, também interpretada com o delicioso clima do jazz tradicional. O pianista subverte a melodia com classe e eloqüência, sem abrir mão dos improvisos ousados e do bom-humor. “Thelonious Monk não poderia ficar de fora desse verdadeiro banquete sonoro e se faz presente com a sempre bem-vinda “Straight, No Chase”. A execução do trio é hipnótica, um primor de elegância e concisão, desconstruindo o blues para, mais adiante, reinventá-lo.
A versão de “Five Brothers”, de Gerry Mulligan, é animada, quase convulsiva. Chama a atenção a fluência e a agilidade do pianista, sobretudo quando trafega pelos registros mais agudos. Peacock, sempre muito seguro, elabora um solo primorosamente bem concatenado. A pulsação que DeJohnette extrai de sua bateria tem um quê de tribal, evidenciando algumas das muitas qualidades que fizeram dele um dos mais músicos requisitados do jazz.
“Guess I'll Hang My Tears Outto Dry”, de Jule Styne e Sammy Cahn, recebe uma versão definitiva. Jarrett, mais uma vez, domina a cena de forma impositiva e incontestável. A sensibilidade de sua execução indica um talento superior, completamente obcecado em captar a essência da beleza, em congelá-la no ar como se fosse algo tangível. Em suas mãos a beleza deixa de ser um conceito subjetivo e fugidio e passa a ser algo palpável: sua música é a representação auditiva do belo. A matéria-prima de sua arte é a beleza em seu estado mais cristalino.
“On Green Dolphin Street” é fruto da parceria Bronislau Kaper/Ned Washington e foi composta para o filme homônimo, de 1947, estrelado por Lana Turner e Van Heflin. Um dos standards mais gravados de todos os tempos, foi alçado à condição de verdadeira obra de arte pelas interpretações de Bill Evans. Jarrett concebe uma versão irreverente, com um andamento ligeiramente mais rápido que o habitual e repleta de ótimos improvisos. Ainda assim, o trio consegue manter a atmosfera lúdica da canção.
Para fechar o álbum em grande estilo, “Only the Lonely”, de Sammy Cahn e Jimmy VanHeusen, ganha uma versão das mais sedutoras. Balada classuda, ao melhor estilo ellingtoniano, a canção exige uma abordagem mais ortodoxa. O carismático pianista destila elegância e uma boa dose de recato, em uma interpretação até certo ponto conservadora, mas prenhe de lirismo e de melancolia. Um dos melhores momentos de Jarrett, que merece lugar de destaque em sua longeva discografia.
Além dos inúmeros prêmios concedidos por público e crítica nas revistas especializadas, como Downbeat e Metronome, o pianista tem sido homenageado, ao redor do mundo, de maneira quase ininterrupta. Em 1989, foi nomeado Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras, a mais importante comenda do governo da França, no campo da cultura. Em 1996, Jarrett foi eleito membro da Royal Swedish Academy of Music, sendo o segundo músico estrangeiro a merecer tal honraria – o primeiro foi ninguém menos que Duke Ellington.
Em 2004, recebeu o Miles Davis Prize, durante as celebrações do 25º aniversário do Festival Internacional de Jazz de Montreal, no Canadá. No ano seguinte, durante as comemorações dos seus 60 anos, foi lançado o documentário “Keith Jarrett: The Art of Improvisation”, que cobre a vida e a carreira do pianista durante os últimos 40 anos, com direção de Mike Dibb e roteiro de Ian Carr, biógrafo oficial de Jarrett. Indicado por oito vezes ao prêmio Grammy, em diversas categorias, desde 2008 seu nome está imortalizado no Downbeat Hall of Fame.
De acordo com o crítico V. A. Bezerra, do site E-Jazz, a maior contribuição de Jarrett para o desenvolvimento do piano não se relaciona, propriamente, com a sua técnica refinada e nem com o seu estilo excêntrico de tocar, mas tem a ver com o seu “pensamento musical, no plano cognitivo, por assim dizer. Refiro-me a um aspecto em particular: Jarrett é um mestre do understatement: o que ele deixa de tocar, o que ele apenas sugere assume, talvez, importância tão grande quanto o que ele efetivamente toca. Isso fica especialmente claro quando ele interpreta standards. É como se ele nos levasse a imaginar, dentro de um espaço "dual" ao espaço sonoro no qual se dá o discurso musical propriamente dito, as notas subentendidas, as frases não articuladas, os caminhos não tomados”.
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