Mariano e Akiyoshi não demoraram a causar sensação nos meios musicais da cidade, montando um quarteto que se apresentava exaustivamente nos mais importantes clubes novaiorquinos, como o Birdland, o Half Note, o Village Vanguard e o Five Spot. Ao lado do casal, o baixista Gene Cherico e o baterista Eddie Marshall. Em dezembro de 1960, o grupo lançou “Toshiko-Mariano Quartet”, para a Candid, recebido com entusiasmo pela crítica especializada.
Entre 1960 e 1961 o grupo excursionou pelo Canadá, México e Japão. O casal se tornou bastante próximo de Charles Mingus, que convidou Mariano para se juntar à nova banda que estava montando e que incluía o tenorista Booker Ervin, o baterista Dannie Richmond, o trompetista Rolf Ericson e o pianista Jaki Byard. Com essa formação, o baixista gravou, para a Impulse, os ótimos “Mingus Mingus Mingus Mingus Mingus” e “The Black Saint And The Sinner Lady”, considerados dos mais importantes em sua carreira.
Mariano também participou de outro disco importante, lançado pela mesma gravadora naquele ano: “McCoy Tyner: Live At Newport”, que conta com os excepcionais Clark Terry, Bob Cranshaw e Mickey Roker. Como líder, gravou apenas “A Jazz Portrait Of Charlie Mariano”, com arranjos de Don Sebesky e participações de feras como Jim Hall, Jaki Byard e Albert “Tootie” Heath. Em 1964, Mariano e a esposa passaram uma longa temporada no Japão e o saxofonista ficou extremamente impressionado com os diversos aspectos da cultura japonesa. Na capital japonesa, Toshiko voltou a compor e fazer arranjos para big bands, tendo gravado o álbum “Toshiko Mariano & Her Big Band Recorded in Tokyo”.
No mesmo ano, o grupo liderado pelos dois fez uma bem-sucedida excursão à Europa, incluindo apresentações na França, Suécia e Dinamarca. Nas gigs realizadas em cidades como Paris, Estocolmo e Copenhagen, conheceram e tocaram com alguns jovens músicos europeus que despontavam para o estrelato, como o violinista Jean-Luc Ponty, os bateristas Daniel Humair e Alex Riel e o contrabaixista Niels-Henning Ørsted-Pedersen, que, do alto dos seus 18 anos, deixou Mariano impressionado com sua técnica e seu talento. Também tocaram com o pianista catalão Tete Montoliu, um dos mais habilidosos e criativos músicos do jazz europeu.
De volta aos Estados Unidos, Mariano fez parte do projeto “Stan Kenton Summer Camps”, que levava o jazz às universidades e promovia seminários e oficinas, tendo como professores, além do próprio Kenton, expoentes como Ron Carter e Donald Byrd. O saxofonista participou do álbum “Dear John C.”, homenagem a Coltrane feita sob a liderança de Elvin Jones, e tocou com Herb Ellis, Ralph Towner, George Mraz, Airto Moreira, Astrud Gilberto, Hank Jones, Modern Jazz Quartet, Roland Hanna e Richard Davis e voltou a lecionar na Berklee School of Music. Em 1966 fez uma elogiada temporada de quarto semanas no tradicionalíssimo Ronnie Scott's Club, o mais importante clube da Inglaterra.
No início de 1967, já separado de Toshiko, aceitou o convite do governo da Malásia, para liderar a orquestra da Rádio Nacional daquele país e se mudou para Kuala Lumpur. A experiência foi fantástica e mudou não apenas as concepções musicais de Mariano, como também a sua própria maneira de encarar a vida. Ele conheceu Bornéo e a Índia e aproximou-se da música oriental de maneira bastante intensa. Com o fim do contrato, em outubro daquele ano, Charlie passou algumas semanas no Japão, onde gravou “Charlie Mariano & Sadao Watanabe” e “Iberian Waltz”, ambos ao lado do grande altoísta japonês.
Nos anos 70 acarretaram profundas mudanças na carreira do saxofonista, que além do alto e do tenor também passou a se dedicar ao sax soprano e ao nagaswaram (uma espécie de oboé de origem indiana). Aproximou-se do fusion, tendo montado o grupo Osmosis, que foi um dos pioneiros do estilo mas que gravou apenas um álbum. Em 1971 mudou-se para a Europa, onde, influenciado por John Coltrane, manteve uma estreita relação com o jazz de vanguarda e se tornou bastante íntimo do idioma free.
Um dos seus primeiros trabalhos foi substituir o saxofonista inglês John Surman no grupo “The Trio”, onde também atuavam o baixista Barre Phillips e o baterista Stu Martin. Charlie conhecia Martin pessoalmente, por conta de algumas gigs em Nova Iorque, e sabia que ele havia tocado com trompetista Maynard Ferguson, seu ex-companheiro da banda de Kenton e que na época também morava na Europa. O saxofonista não teve maior dificuldade em assimilar as idéias musicais dos novos parceiros, o trio ganhou a companhia do violoncelista Peter Warren, trocou o nome para “Ambush” e fez considerável sucesso nas hostes do free jazz setentista.
Algum tempo depois, Mariano montou um grupo com o baterista italiano Aldo Romano, o guitarrista belga Philippe Catherine e o pianista holandês Jasper Van’t Hof. O encontro com Catherine é um dos momentos mais hilariantes da história do jazz. O saxofonista passava uns dias na casa de Stu Martin em Bruxelas, quando o guitarrista belga decidiu procurá-lo para um novo projeto musical, do qual Van’t Hof e Romano já faziam parte. Quando chegou no local, viu que Mariano ainda estava dormindo, pois havia participado de uma gig exaustiva na noite anterior, e decidiu esperar.
Ao acordar e se olhar no espelho, Charlie viu que estava com uma aparência horrível, com a barba por fazer e cheio de olheiras. Decidido a não causar má impressão em Catherine, ele pegou um saco de papel, fez alguns buracos nos lugares dos olhos e da boca, colocou na cabeça e foi falar com o perplexo guitarrista. A conversa fluiu com naturalidade e os dois sentiram uma imediata afinidade musical, mas o belga saiu de lá com a impressão de que o novo amigo não batia lá muito bem do juízo.
Foi assim que surgiu o “Pork Pie”, cujo nome homenageia Lester Young, mas que possuía uma orientação voltada para o jazz-rock. Em 1974 lançou “Reflections”, onde está acompanhado por uma banda de desconhecidos músicos finlandeses. Mesclando repertório próprio com temas como “Blue In Green” de Miles Davis e “Naima”, de John Coltrane, o álbum recebeu cinco estrelas da revista Down Beat.
Em 1976, foi uma das estrelas do Jazz Yatra Festival, rezlizado em Bombain, na Índia. No mesmo ano, foi convidado para tocar em um concerto promovido pela gravadora alemã ECM no Lincoln Center, em Nova Iorque, onde as estrelas eram os integrantes do seu cast Jack DeJohnette, Gary Burton, Terje Rypdal e Keith Jarrett. Também teve uma participação não creditada no álbum “Ringo’s Rotogravure”, do ex-Beatle Ringo Starr, ao lado do pianista Dr. John e dos irmãos Michael e Randy Brecker, com arranjos a cargo de Arif Mardin, seu ex-aluno em Berklee. Aproveitou para matar as saudades do público, em temporadas no Sweet Basil, liderando um quarteto que contava com Ron McClure no baixo, na bateria Bob Moses e Mike Nock, outro ex-aluno seu, no piano.
No âmbito do fusion ou jazz-rock, Mariano também registrou participações em grupos como o “Colours”, comandado pelo baixista Eberhard Weber, e “United Rock & Jazz Ensemble”. Este último era uma pequena orquestra multinacional, que fez enorme sucesso na Europa, sobretudo na Alemanha, e era liderada pelo trombonista alemão Albert Mangelsdorff, além de contar com as presenças do trompetista canadense Kennt Wheeler e da saxofonista inglesa Bárbara Thompson. Trabalhos na área da música pop não incomodavam Mariano, que participou de alguns álbuns da banda alemã Embryo e marcou presença nos discos “Leave It Open”, da banda de rock progressivo Gong, e “Iskander”, do grupo alemão Supersister.
O saxofonista fixou residência em Colônia, na Alemanha, e manteve uma concorrida agenda de trabalho, incluindo atuações ao lado de músicos europeus como Pierre Favre, Wolfgan Dauner, George Gruntz, Chris Hinze, Thorsten Klentze, Rolf Kuhn, Palle Danielsson, Edward Vesala, Vic Juris e Irène Schweizer e norte-americanos residentes na Europa, como os saxofonistas Gary Bartz, Anthony Braxton, Jackie McLean e Lee Konitz, o trompetista Ted Curson, o percussionista Don Alias e o pianista Mal Waldron. Empreendeu outras viagens à Índia, durante os anos 70 e 80, onde aprofundou os estudos sobre a cultura e a espiritualidade indianas.
A década de 80 vai encontrá-lo trabalhando intensamente. Foi um dos primeiros músicos a abrir os caminhos para a chamada world music, ao tocar com a banda indiana Karnataka College of Percussion, sediada em Bangalore. A partir de 1988, Mariano trabalhou com regularidade em projetos ligados à livre improvisação, boa parte deles ao lado do percussionista inglês Tony Oxley, do trompetista dinamarquês Palle Mikkelborg, do baixista tcheco Miroslav Vitous e do multiinstrumentista libanês Rabih Abou-Khalil.
Outro parceiro daquele período foi o pianista, cantor e compositor alemão Konstantin Wecker, que contou com a presença de Mariano em vários dos seus álbuns, como “Wieder dahoam” (1986), “Ganz schön Wecker” (1988), “Classics” (1991) e “Uferlos” (1992), entre outros. Gravado em 1991 por um coletivo de músicos de diversas nacionalidades, o álbum “International Commission for the Prevention of Musical Border Control” conta com a participação do saxofonista e seu bem-humorado título diz bastante acerca das concepções musicais de Mariano, ele próprio um incansável combatente pela abolição de todas as fronteiras musicais.
Nos anos 90, além da presença constante em festivais nos Estados Unidos, Europa e Japão, Charlie participou de dois álbuns do European Jazz Ensemble, ao lado de músicos renomados como Gerd Dudek, Paolo Fresu, Daniel Humair Drums e Tony Levin, e voltou a se aproximar do jazz acústico. Em 1991 lançou, pelo selo japonês Pony Canyon Records, o lírico “Autumn Dreams”, ao lado do pianista Mal Waldron. Tocou com o bandeonista argentino Dino Saluzzi e o violonista espanhol Quique Sinesi e gravou com regularidade para a Enja. Um dos momentos mais espetaculares de Mariano na gravadora alemã é o estupendo “Deep In A Dream”, gravado nos dias 02 e 03 de novembro de 2001.
A sessão rítmica que acompanha o saxofonista é maravilhosa, composta pelo compatriota Bob Degen (pianista pouco conhecido, mas com trabalhos ao lado de, entre outros, Art Farmer, Paul Motian, Dexter Gordon, Carmell Jones, Buddy DeFranco e Gary Peacock), pelo contrabaixista suíço Isla Eckinger (outro músico experiente, que tem no currículo atuações com Slide Hampton, Horace Parlan, Benny Bailey, Mal Waldron, Steve Lacy e Chet Baker) e pelo baterista norte-americano Jarrod Cagwin (o caçula da turma, nascido em 1974 mas que já acompanhou Gabriele Mirabassi, Dusko Goykovich e Antonio Hart).
Basicamente composto de standards, a abertura do álbum fica por conta de “You Better Go Now”, imortalizada na voz de Billie Holiday. A interação entre o sopro cálido de Mariano e o toque refinado de Degen é total e resulta em uma comovente experiência auditiva. De autoria do saxofonista, “Dew Drops” é uma balada hipnótica, introspectiva e recheada de elementos da música oriental. Cheia de dissonâncias e fortemente influenciada pelo experimentalismo de Coltrane e Dolphy, ela exige do líder uma abordagem arrojada e conta com uma belíssima atuação de Cagwin.
Uma animada interpretação de “Spring Is Here”, da dupla Rodgers e Hart, aumenta a temperatura e mostra porque, mesmo aos 78 anos, Mariano ainda é um dos mais inventivos e melodiosos saxofonistas de qualquer época. Cheio de swing e bastante incisivo em seus ataques, Charlie incendeia os parceiros com suas frases articuladas e seus improvisos devastadores. O pianista tem amplo espaço para mostrar a sua faceta bop, mas o grande destaque da sessão rítmica é o exuberante Cagwin.
A dolorosa expressividade de “I'm A Fool To Want You”, na qual Sinatra pranteava as suas dores de amor, recebe um arranjo pungente e enfumaçado. A sonoridade rouca que Mariano extrai do saxofone remete a uma quase palpável sensação de abandono e desespero. A atmosfera sombria fica ainda mais aflitiva graças ao contrabaixo de Eckinger, que em alguns momentos consegue ser tão sombrio quanto uma interminável noite de chuva, passada na mais completa solidão.
Bem menos sombria que a anterior, “I Only Miss Her When I Think Of Her” é outro hino aos desencontros do amor. Composta por Sammy Cahn e Jimmy Van Heusen, a faixa merece de Degan uma primorosa introdução e à medida em que os instrumentos vão se agregando, percebe-se uma discreta influência da bossa nova, sobretudo na percussão de Cagwin. O romantismo está presente em “The Touch Of Your Lips”, de Ray Noble. É uma balada clássica, na qual o líder exercita o fraseado eloqüente do ídolo Johnny Hodges e imprime à sua execução uma discretíssima pitada de blues. Merecem audição atenta o fabuloso solo de Eckinger e a refinada atuação do pianista.
De autoria de Degen, “Etosha” possui uma estrutura nada linear, e como ocorre com boa parte dos temas contemporâneos, flerta com a atonalidade e com a improvisação livre. O líder não toca nessa faixa, na qual o grande destaque é mesmo o pianista. Seu dedilhado é econômico, usando poucas notas, mas sempre de forma certeira, e seu discurso melódico é surpreendente. A abordagem feita pelo trio, abstrata e intrigante, não apela para o hermetismo desencontrado nem se baseia numa ausência de propósito harmônico, mas tampouco abre mão da ousadia e da reflexão.
Famoso por seus arranjos para a orquestra de Count Basie, Johnny Mandel contribui com a sofisticada “Close Enough For Love”, tema composto para o musical “Agatha”, em 1978. Típica balada romântica, funciona como um excelente veículo para a emotividade rasgada do saxofonista. Destaque para a estupenda performance de Cagwin, que refreia o ímpeto percussivo com naturalidade e segurança, demonstrando plena capacidade para se tornar, em pouco tempo, uma das principais referências do seu instrumento.
“Yours Is My Heart Alone” foi composta em 1929 por Ludwig Herzer, Franz Lehar e Fritz Loehner e a versão do quarteto é cativante. Imerso na tradição bop e sem menosprezar as ousadias harmônicas das correntes que o sucederam, o solo de Degan é um primor de inquietação e encantamento. O líder tem aqui uma de suas atuações mais frenéticas, arrancando do instrumento uma sonoridade que é, a um só tempo, robusta e acolhedora.
Há uma boa dose de melancolia na faixa que encerra e dá nome ao disco, de autoria de Jimmy Van Heusen, onde Mariano esparrama as notas com um lirismo nada comedido. A riqueza do seu fraseado, a inventividade dos seus solos e a sua técnica incensurável ganham ainda mais brilho em face do luxuoso arcabouço rítmico que seus comandados engendram. Um disco que sintetiza, de maneira extremamente bem-sucedida, a universalidade da linguagem jazzística, ao conjugar a espontaneidade da música norte-americana com a sofisticação da tradição européia.
Quatro anos depois de lançar esta jóia sonora, Mariano recebeu o diagnóstico do câncer de próstata. Era 1995 e os médicos lhe deram apenas mais um ano de vida. Fazendo uso da medicina oriental e da quimioterapia, ele conseguiu atravessar os 14 anos seguintes lutando bravamente contra a doença, que finalmente o abateu, no dia 16 de junho de 2009, no Hospital Mildred Scheel, em Colônia.
Pouco mais de um ano antes, em 02 de maio de 2008, gravou, no teatro de Stuttgart, na Alemanha, aquele que pode ser considerado o seu testamento musical, o emocionante álbum “The Great Concert”, para a Enja, onde atua ao lado dos velhos camaradas Philippe Catherine e Jasper Van’t Hof. Seu corpo foi cremado e as cinzas enterradas no jazigo da família Mariano, em Boston. Uma de suas seis filhas, a atriz e cantora Monday Michiru, fruto do relacionamento com Akiyoshi, é casada com o trompetista russo Alex Sipiagin.
Cosmopolita e extrovertido, Charlie deixou, além da discografia espalhada por selos como Fidelity, EMI, World Pacific, Affinity, Black Lion, Atlantic, MPS e CMP, uma trajetória de vida das mais ricas. Manteve até o último momento, uma postura inquieta e desafiadora e permaneceu o tempo inteiro na linha de frente contra todas as formas de preconceito, sobretudo o musical. Sua obra, das mais originais sob qualquer ponto de vista, é uma prova incontestável de que a música transcende as fronteiras nacionais e deve servir como mecanismo de união – jamais de segregação – entre os homens.
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