Música e outras coisas
A APOTEOSE DA SUTILEZA
Creed Taylor é um dos mais importantes produtores da história do jazz, tendo começado a trabalhar no modesto selo Bethlehen, nos anos 50. Ainda naquela década, comandou a divisão de jazz da gigante do entretenimento ABC-Paramount, que lançou álbuns de gente como Lambert, Hendricks e Ross, Don Elliot e Kenny Dorham. Por conta dessa bem sucedida experiência, a ABC-Paramount resolveu transformar sua divisão de jazz em um selo próprio, o festejado Impulse, em 1960 e Taylor foi a cabeça pensante responsável pela criação da nova gravadora, por onde passaram, entre muitos outros, John Coltrane, Freddie Hubbard, McCoy Tyner, Art Blakey, Oliver Nelson, Dizzy Gillespie e Gil Evans.
Em 1961, com a compra da Verve pela poderosa MGM, Taylor foi contratado para assumir a mitológica gravadora fundada por Norman Granz e ali foi um dos principais responsáveis pela popularização da bossa nova nos Estados Unidos. Produziu o célebre “Getz-Gilberto”, que vendeu milhões de cópias e revelou ao mundo a cantora Astrud Gilberto, então esposa de João Gilberto. Não satisfeito com tantas realizações, Taylor, em 1970, fundaria mais uma gravadora: a Creed Taylor Incorporations ou simplesmente CTI.
Em uma década francamente hostil ao jazz, Taylor reuniu sob seu comando artistas importantíssimos, como Ron Carter, Jim Hall, Paul Desmond, Milt Jackson, Hank Crawford, George Benson, Joe Farrell, Stanley Turrentine, Freddie Hubbard, Eumir Deodato, Don Sebesky, Stanley Clarke, Kenny Burrell e muitos outros. Muitos deles, adotando uma abordagem fusion, logo se tornaram grandes vendedores de discos e a vocação da CTI para essa controvertida vertente do jazz sempre foi bastante criticada.
Não obstante, o catálogo da gravadora, vendido para a Epic/CBS no início dos anos 80 e atualmente sob controle da Sony BMG, possui álbuns fabulosos, como o “She Was Too To Me”, de Chet Baker, o “Carnegie Hall Concert”, de Chet Baker e Gerry Mulligan e o “Concierto”, obra-prima de Jim Hall. E é sobre esse disco e sobre o extraordinário líder da sessão, o sóbrio, criativo e elegante Jim Hall que se tecerão alguns comentários.
O fabuloso James Stanley Hall, nascido no dia 04 de dezembro de 1930, em Buffalo é um dos maiores guitarristas de todos os tempos, além de compositor e arranjador de raro talento. A música sempre esteve presente em sua vida, já que seu pai era violinista, sua mãe pianista e possuía um tio guitarrista. As primeiras lições vieram por volta dos 10 anos, idade em que ganhou da mãe a primeira guitarra, e aos 15 já tocava profissionalmente. Com a mudança da família para Cleveland, em 1946, matriculou-se no prestigioso Cleveland Institute Of Music, onde aprendeu teoria musical e aperfeiçoou a sua técnica soberba. Charles Christian e Django Reinhardt foram as suas primeiras e mais importantes influências.
Em 1955 mudou-se para Los Angeles, onde deu continuidade aos estudos, com o guitarrista clássico Vincente Gómez e integrou-se perfeitamente à cena West Coast, tornando-se um dos mais disputados músicos locais. A partir daí, Hall acompanhou ou foi acompanhado por músicos do calibre de Chico Hamilton, Jimmy Giuffre, Bob Brookmeyer, Ben Webster, Red Mitchell, Kenny Barron, Pat Metheny, Slide Hampton, Bill Evans, Art Farmer, Hampton Hawes, Sonny Rollins, Paul Desmond, Gerry Mulligan, John Lewis, Ornette Coleman, Ron Carter, Ella Fitzgerald, George Shearing, Zoot Sims, Jimmy Raney, Barney Kessell, Joe Lovano, Mike Stern, Tommy Flanagan, John Scofield, Bill Frisell, Greg Osby, Michel Petrucciani, Wayne Shorter, Tom Harrell, Chris Potter, Christian McBride e Lee Konitz.
Também fez parte da célebre caravana “Jazz At The Philharmonic”, promovida por Norman Granz e quando integrava o trio do saxofonista Jimmy Giuffre, em 1959, participou do documentário “Jazz On A Summer Day”, além de ter participado de diversos álbuns de Giuffre para a Atlantic. Outras associações que merecem registro foram com o pianista John Lewis, com quem gravou o elogiado “Grand Encounter”, de 1956, considerado um marco do chamado Third Stream Jazz, com o saxofonista Sonny Rollins (álbuns como “The Bridge” e “The Standard Sonny Rollins”), com o pianista Bill Evans (“Interplay” e “Undercurrent) e com o saxofonista Paul Desmond (“Glad To Be Unhappy”, “Bossa Antigua” e “Easy Living”) .
Hall sempre foi extremamente aberto às sonoridades vindas de outras latitudes. Esteve no Brasil durante seis semanas em 1960, acompanhando a cantora Ella Fitzgerald, ocasião em que travou seus primeiros contatos com a Bossa Nova. Durante uma temporada européia com Art Farmer, em 1964, gravou, sob a liderança do trompetista, o curioso “To Sweden With Love”, para a Atlantic, no qual composições do folclore sueco são adaptadas para o idioma jazzístico, com um resultado bastante agradável aos ouvidos.
O álbum “Concierto”, gravado entre 16 e 23 de abril de 1975, nos Estúdios Van Gelder, com produção de Creed Taylor e arranjos de Don Sebesky, inscreve-se como um dos momentos mais extraordinários da carreira de Jim Hall e, certamente, é um dos melhores discos gravados durante os anos 70. Dentre os acompanhantes, dois músicos exponencialmente líricos: Chet Baker (trompete) e Paul Desmond (sax alto). Completam o time, o pianista Roland Hanna, o baixista Ron Carter e o baterista Steve Gadd.
Além das três composições originais, o sexteto desfia dois standards e uma versão devastadora do “Concierto de Aranjuez”, de Joaquin Rodrigo. Esta última consome nada menos que 19min14s de pura magia e beleza extasiante. A guitarra elétrica do líder soa como se fosse um violão e o ouvinte é levado a crer que a célebre peça do compositor espanhol foi composta especialmente para Hall. É emocionante ouvir a leveza do trompete de Baker, que fazia então mais uma das muitas tentativas de reerguer a carreira, e nesse exato instante eu paro de escrever a resenha (3min36s), enxugo as lágrimas que escorrem, tímidas, e fico apenas ouvindo.
Findo o período de hipnótico encantamento e voltando ao trabalho, “Two’s Blues”, uma composição de Hall bastante swingante, revela um Chet Baker em excepcional forma, chamando para si a responsabilidade e magnetizando o ouvinte com solos fenomenais. O termo “interação telepática”, muito usado em resenhas sobre discos de jazz, provavelmente foi inventado após a audição de “You’d Be So Nice To Come Home To”, de Cole Porter, sobretudo por conta das performances de Baker e Desmond, ambas irrepreensíveis. O toque aveludado e nada dispersivo do líder faz com que se descubram nessa canção uma série de novas possibilidades harmônicas.
“The Answer Is Yes” é uma bela composição de Jane Hall, esposa do guitarrista, que inicia a execução de forma bastante relaxada. Mais uma vez, Chet rouba a cena, com seu cativante fraseado, algo despojado, enquanto o discreto Hanna executa um solo lindíssimo. Essa atmosfera bem West Coaster remanesce na versão de “Rock Skippin’”, de Ellington e Strayhorn, na qual o diálogo entre Hall e Hanna se sobrepõe.
Na reedição em cd, o ouvinte ainda é brindado com a bela “Unfinished Business”, assinada pela dupla Hall/Carter e calcada sobre um tema folclórico mexicano, com Desmond extravasando o seu costumeiro bom gosto, e com takes alternativos de “You’d Be So Nice To Come Home To”, “Rock Skippin’” e “The Answer Is Yes”. Trata-se de um disco refinado, fundamental, obrigatório e irretocável. Se você tiver que escolher um único álbum para levar para uma ilha deserta, “Concierto” é um fortíssimo candidato.
Hall participou de inúmeros festivais ao redor do mundo, como os de Berlim, Montreux, Monterrey, Úmbria e Newport e até hoje mantém-se atuante, com um frescor e uma vitalidade incríveis. De sua recente discografia, merecem destaque “Jim Hall & Basses”, gravado em 2001 para a Telarc e que apresenta o guitarrista atuando com baixistas do naipe de Charlie Haden, Dave Holland, George Mraz e Christian McBride, e “Hemispheres”, de 2008, onde toca com o discípulo Bill Frisell. Em 2004 recebeu da National Endowment For The Arts o prestigioso título de “Jazz Master”. Atualmente mora em Nova Iorque, ao lado da esposa, Jane, e do cachorro, apropriadamente chamado Django.
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