O PROFESSOR ALOPRADO
Música e outras coisas

O PROFESSOR ALOPRADO




O saxofonista alto, flautista, compositor e arranjador Frank Strozier nasceu em Memphis, estado do Tennessee, no dia 13 de junho de 1937. Filho de um professor de piano, este foi o seu primeiro instrumento, e as lições lhe foram ministradas ainda na infância. Quando tinha 13 anos, descobriu o sax alto e apaixonou-se pelo instrumento. Charlie Parker e Lee Konitz seriam suas influências mais visíveis, mas ao longo dos anos ale acrescentaria elementos de Jackie McLean e Ornette Coleman em sua maneira de tocar.

Ouvinte atento do jazz e do blues, Frank vivia em uma cidade extremamente musical. Na escola, teve como colegas futuros músicos de ponta, entre os quais Harold Mabern, Hank Crawford, George Joyner (que adotaria o nome de Jamil Nasser após se converter ao islamismo), Louis Smith, George Coleman, Booker Little e os irmãos Phineas e Calvin Newborn – os garotos gostavam de se denominar “A Máfia de Memphis”.

O cenário jazzístico da cidade gravitaria em torno desses jovens talentosos e, no futuro, Strozier desenvolveria diversos projetos musicais com quase todos eles, nas mais diversas formações e contextos. Como curiosidade, a primeira vez em que o precoce Frank entrou em um estúdio de gravação foi em 1952, quando tinha apenas 15 anos. Tratava-se de um EP com cinco músicas do cantor de blues Houston Stokes, gravado em Memphis, nos lendários estúdios da Sun Records, e que atualmente se encontra fora de catálogo.

Frank concluiu o ensino médio em 1952 e se mudou para Chicago em 1954, matriculando-se no “Chicago Conservatory Of Music”. Ali, estudou clarinete e se graduou em 1958. Ao mesmo tempo em que levava adiante os estudos, tocou por breves momentos nos grupos de Bill Leen, Edward “Bunky” Redding e Bob Cranshaw. Ainda em Chicago, Strozier ingressou no grupo “MTJ + 3”, liderado pelo baterista Walter Perkins e pelo baixista Bob Cranshaw (daí o nome Modern Jazz Two), onde também atuavam seu conterrâneo e amigo Harold Mabern e o trompetista Willie Thomas.

Durante seu período com o “MTJ + 3”, que perdurou de 1957 até 1960, Strozier marcou presença, como sideman, em algumas gravações para os selos Blue Note, Vee Jay e Riverside, tendo participado de sessões sob a liderança de Booker Little, Johnny Griffin e Wayne Shorter. Frank também criou seu próprio grupo, mas não obteve maior reconhecimento.

Em 1958, quando ainda morava em Chicago, Strozier realizou algumas gravações, com produção de Max Roach, para a Mercury, mas o álbum não chegou a ser lançado. A banda incluía Billy Wallace no piano, Bill Lee no contrabaixo e Vernel Fournier na bateria. A Chicago do fim dos anos 50 era o território de monstros como Von Freeman, Johnny Griffin, John Gilmore, Gene Ammons, Clifford Jordan, John Jenkins e Eddie Harris. O ambiente musical era, portanto, dos mais competitivos e desafiadores para um jovem saxofonista, mas Strozier não estava satisfeito com a pouca visibilidade do seu trabalho. Além disso, o fato de haver gravado um álbum inteiro que não chegou a ser lançado deixou-0 bastante desiludido.

Esses fatores acabaram por influenciar sua decisão de se mudar para Nova Iorque, em 1960. Na Grande Maçã, ele trabalharia algum tempo como “freelancer”, tocando com Lee Morgan, Sam Jones, Joe Zawinul, McCoy Tyner, Booker Erwin e George Coleman. Além disso, pode realizar o sonho de, finalmente, ver suas gravações como líder lançadas em disco, pois naquele ano, o saxofonista lançaria dois álbuns: “Fantastic Frank Strozier” e “Cool Calm And Collected”, ambos para a Vee Jay.

O título, “Fantastic Frank Strozier”, não é mera figura de retórica. Ouvindo esse ótimo disco, não há como contestar as palavras do crítico Ralph Gleason, ao ouvir pela primeira vez o então jovem saxofonista: “nós ainda vamos ouvir bastante esse garoto de Memphis”. Para acompanhá-lo, Strozier chamou o trompetista Booker Little e uma sessão rítmica de peso, formada por Wynton Kelly no piano, Paul Chambers no contrabaixo e Jimmy Cobb na bateria. As gravações foram feitas 09 de dezembro de 1959 e 02 de fevereiro de 1960.

Wynton Kelly contribui com “W. K. Blues”, que abre o disco com uma pegada furiosa. Executada em tempo médio e com uma empolgante sucessão de riffs, a faixa tem como grande atrativo o duelo entre o sax alto e o trompete. Ambos são rápidos, vigorosos e energéticos – dois dos mais dignos herdeiros da tradição bop – e há ecos de Charlie Parker e Clifford Brown na sonoridade de Strozier e Little, respectivamente.

A temperatura permanece elevada em “A Starling's Theme”, de autoria do líder. Solidamente arrimado no hard bop, o tema apresenta ótimas atuações de Chambers, cuja maestria com o arco o coloca em uma posição única entre os baixistas de jazz, e Kelly. Os momentos mais marcantes, todavia, são protagonizados por Strozier e pelo endiabrado Little, cujos solos não apenas refletem um absoluto domínio técnico dos seus instrumentos como apontam caminhos novos para a linguagem jazzística.

Mais um tema de Strozier, “I Don't Know” é um blues com alguns elementos de soul e funk, com uma batida bastante parecida com a imortalizada por Lee Morgan durante os anos 60. Frank tem uma abordagem ácida, estridente, que sugere inconformismo e ousadia. Little é menos radical do ponto de vista estético, mas não menos provocador em sua performance. Kelly se encarrega de assegurar o poderosíssimo groove do quinteto, valendo-se de acordes robustos e de uma sonoridade algo metálica.

“Waltz Of The Demons” possui uma estrutura de valsa, mesclada com inteligência a elementos caros à sintaxe bop. O resultado é um delicioso coquetel sonoro, com amplo destaque para as caudalosas intervenções de Little, autor do tema. A percussão frenética de Cobb e o solo desconcertante de Strozier também merecem uma audição bastante atenta.

“Runnin'” tem um clima monkiano, com direito a andamento pouco ortodoxo, acordes dissonantes e ritmo quebradiço. Composta por Strozier, sua estrutura sinuosa exige dos integrantes do quinteto não apenas perícia técnica, mas grande sensibilidade harmônica e nesse ponto Wynton Kelly é um dos pianistas mais completos da história do jazz. O grupo flerta discretamente com o jazz de vanguarda, e aqui a influência de Parker se materializa com bastante nitidez, sobretudo pela maneira voraz com que Frank ataca o instrumento durante seus solos.

Composição de Leo Diamond e Michael H. Goldsen, “Off Shore” é quase uma balada, com melodia pegajosa e ritmo inebriante. O geralmente impetuoso Strozier cede o lugar a um melodista articulado e fluente. Como uma espécie de contraponto, Little tem um papel bem mais subversivo, do ponto de vista harmônico, lançando frases ágeis e certeiras, que funcionam como labaredas sonoras de enorme volatilidade. Notável perceber a fidalguia de Kelly, que eleva a figura do acompanhante a um novo patamar de dignidade.

“Luck A Deuce” é um blues encorpado, com uma belíssima introdução a cargo de Kelly, Chambers e Cobb. Os sopros soam rascantes, desafiadores, como se houvesse entre Booker e Frank um clima de beligerância no ar – nada mais falso, em se tratando de dois velhos amigos de Mempbhis. Seguindo na vereda do blues, mas de maneira menos ortodoxa, Strozier apresenta a belíssima “Tibbit”, com seus quase dez minutos de entusiasmo, ferocidade e volúpia. O virtuosismo do saxofonista impressiona, tanto pela complexidade técnica de seus solos quanto pelo amplo leque de referências que seu sopro evidencia – podem-se ouvir ecos de Eric Dolphy, John Coltrane e Charlie Parker.

“Just In Time”, de Adolph Green, Betty Comden e Jule Styne, é o único standard presente no disco. A interpretação do quinteto acrescenta alguns elementos do hard bop ao tema, especialmente durante os solos de Strozier e de Little, mas conserva intacta a sua melodia contagiante. A sonoridade opulenta do quinteto deve muito de sua coesão ao trabalho exemplar de Cobb e Chambers – que ainda por cima comete um solo brilhante. Como bônus, o álbum inclui takes alternativos de “Waltz Of The Demons” e “Off Shore”, ambas de altíssimo nível.

Strozier foi contratado pelo baterista Roy Haynes em 1961, permanecendo em seu quarteto pelos próximos dois anos. Em 1962, o saxofonista participou do tributo “Great Jazz Artists Play Compositions Of Bobby Timmons”, gravado para a Riverside Records, ao lado de feras como Nat Adderley, Keter Betts, Ron Carter, Matthew Gee, Louis Hayes, Wes Montgomery, Albert “Tootie” Heath, Julian Priester, Billy Taylor e Clark Terry.

Frank teria uma rápida passagem pelo grupo de Miles Davis, no início de 1963, durante uma temporada de seis semanas no Jazz Workshop, em San Francisco. O saxofonista deve ter se sentido bastante à vontade na banda, pois ali estavam dois de seus mais queridos amigos e parceiros musicais: Harold Mabern no piano, que naquele mesmo ano daria lugar a Herbie Hancock, e George Coleman, que passaria mais tempo com temperamental trompetista, saindo do grupo em 1964, para dar lugar ao genial Wayne Shorter. Ron Carter e Jimmy Cobb completavam o sexteto.

Em 1965, o grande Shelly Manne convenceu Strozier a mudar-se para a Califórnia, a fim de substituir ninguém menos que o espetacular Richie Kamuka. Foram seis anos ao lado do baterista, em centenas de concertos, boa parte deles no Shelly Manne’s Hole, e um sem número de gravações. Durante esse período o saxofonista teve bastante liberdade para se envolver em outros projetos.

Frank participou de inúmeras sessões de gravação, destacando-se as participações em álbuns de Chet Baker, Don Ellis, Nancy Wilson, Carmen McRae, Don Specht e Oliver Nelson. Frank também atuou em trilhas sonoras no cinema e tocou em orquestras e bandas de programas de televisão durante sua longa temporada californiana, mas o espírito inquieto impelia-o para novos desafios.

Assim, em 1971, retornou a Nova Iorque com a cara e a coragem. O cenário jazzístico da época era pouco amistoso e a princípio ele teve que ganhar a vida como professor de ciências em uma escola secundária. Aos poucos, foi retomando a carreira, tocando como “sideman” nas bandas do baterista Keno Duke, do guitarrista Kazumi Watanabe, do pianista Horace Parlan e dos trompetistas Sy Oliver e Woody Shaw.

Strozier também fez parte da “New York Jazz Repertory Company”, orquestra criada pelo trompetista Don Elliot, e na big band de Lew Anderson, ambas dedicadas ao swing e ao jazz tradicional.  Também pode ser ouvido em discos de Sonny Stitt, Steve Allen, Jim Schapperoew, Martin Mull, Stephen Roane, Stafford James e da cantora japonesa Mari Nakamoto.

Outra associação relevante foi com o octeto de seu velho amigo George Coleman, com o qual permaneceu bom período. O reconhecimento pelo trabalho veio antes do previsto e ainda em 1971 ele foi eleito, pela revista Down Beat, como o melhor sax alto daquele ano. Montou um sexteto próprio, com o qual gravou para o selo dinamarquês Steeple Chase, em 1976. O álbum, o elogiado “Remember Me”, traz como novidade a presença da tuba, sob a responsabilidade de Howard Johnson.

O grupo excursionou pela Europa em 1978 e ao retornar aos Estados Unidos, Strozier montou um quarteto com o baterista Louis Hayes, onde marcavam presença o velho camarada Harold Mabern e o baixista Cecil McBee. Com esse quarteto que Strozier passa a ser reconhecido como um autêntico “pós-coltraniano”, técnico, criativo, improvisador brilhante e por vezes genial, marcando essa fase com o álbum “Variety Is The Spice” (Gryphon, 1979), onde suas interpretações dos clássicos “Invitation” e “Stardust” são magníficos exemplos de absoluta maturidade.

Strozier é mais um dos talentosos altoístas surgidos no final dos anos 1950. A princípio, muito ligado ao hard bop, ele é um músico extremamente versátil, capaz de transitar entre o idioma bop e o jazz de vanguarda com igual desenvoltura. Seu fraseado é balançando, fluido e de grande conteúdo emocional, e constrói seus solos com inteligência e articulação. Sua sonoridade é reconhecível aos primeiros acordes e ele sempre foi tido em alta conta por seus pares, especialmente por causa da habilidade para criar idéias constantemente, sem se repetir.

Como muitos outros músicos de sua geração, Strozier jamais obteve maior reconhecimento e sua contribuição dentro do jazz ainda não foi suficientemente aquilatada, mesmo porque é difícil enquadrá-lo em uma escola ou corrente. Sua discografia é pequena, com pouco mais de uma dezena de álbuns, espalhados por selos como Vee Jay, Jazzland, Fantasy, Trident e SteepleChase, sendo que poucos deles estão em catálogo.

O Mestre Pedro Cardoso o considera “um enigmático músico de ‘confluência’, já que seu gosto pelas improvisações e temas com estruturas harmônicas muito bem definidas ligam-no ao bebop, linguagem decididamente ‘parkeriana’, mas, ao mesmo tempo, em seus solos dilata ao máximo cada frase para soar com lirismo (ainda que vigoroso), entremeando-as com frases breves que ultrapassam o hardbop e insinuam experimentações”. 

Frank ainda despertou algum interesse de público e crítica em 1980, ao se apresentar no Town Hall, mas como a carreira como saxofonista não decolou, ele decidiu voltar ao piano, seu primeiro instrumento. Fez alguns shows na região de Westchester, em Nova Iorque, e voltou a lecionar em escolas públicas daquela cidade. Há poucas informações sobre o seu atual paradeiro.

É certo que em meados da década de 80 ele deixou o sax alto, descontente com a pouca repercussão do seu trabalho, para se dedicar ao piano. Montou um trio e recebeu algumas boas críticas, mas não é certo que tenha se mantido em atividade. Mesmo outros músicos tem alguma dificuldade em acompanhar a sua carreira. Em uma entrevista recente, o pianista Ahmad Jamal  se declarou um admirador de suas composições, mas não soube dizer o que  aconteceu a Strozier:

“Ele ainda hoje é professor de biologia, eu acho. Parece que deixou a música, embora ocasionalmente faça apresentações ao piano. Soube que depois de se mudar para Nova Iorque, depois de viver muitos anos na Califórnia e tocar com Shelly Manne, ele ficou enojado com a cena musical. Eu tenho ouvido muitas histórias circulam a esse respeito, de que ele deixou o sax por causa da ausência de mercado – se você pensar bem, não é uma razão tão bizarra, para abandonar o saxofone. Mas a verdade é que Frank sempre quis ser um pianista – ele é um músico brilhante e um grande compositor. Eu gosto de tocar de vez quando um tema seu chamado “Frank's Tune”.”



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