MOMENTOS ROUBADOS
Música e outras coisas

MOMENTOS ROUBADOS




O saxofonista, clarinetista, maestro, arranjador, compositor e bandleader Oliver Edward Nelson veio ao mundo no dia 04 de junho de 1932, na cidade de Saint Louis, estado do Missouri. A música era algo bastante natural à família Nelson: o avô materno, de ascendência portuguesa, era músico amador e tocava diversos instrumentos, um de seus irmãos mais velhos, Eugene Nelson, também era saxofonista e havia integrado a orquestra de Cootie Williams, durante a década de 40 e sua irmã, Leontine Nelson, era cantora e pianista. O piano, aliás, foi o primeiro instrumento do pequeno Oliver, cujas lições começou a receber quando tinha apenas seis anos. Não por acaso, seu primeiro ídolo foi Willie “The Lion” Smith.

Ao onze, encantado com a maravilhosa sonoridade que Johnny Hodges impunha à orquestra de Duke Ellington, decidiu trocar o piano pelo saxofone alto – embora no futuro também fosse se destacar no sax soprano e no tenor. Paralelamente aos estudos, Nelson começou bastante cedo a carreira profissional, tocando em diversas bandas da cidade natal. A partir de 1947, tocaria com a Jeter-Pillars Orchestra e com as orquestras de George Hudson, Nat Towles e Eddie Randall.

A primeira grande chance veio em 1950, quando foi contratado para tocar e elaborar os arranjos da orquestra de Louis Jordan, com quem faria a sua primeira gravação, em 1951. A parceria foi desfeita em 1952, por conta da convocação de Nelson pela marinha, onde fez parte da orquestra e serviu em bases no Japão e na Coréia do Sul. Após sair da corporação, em 1954, Nelson decidiu retornar a Saint Louis, a fim de estudar teoria musical e arranjo na Washington University. Pouco depois, entraria para a Lincoln University, em Jefferson City, onde se graduaria em composição, no ano de 1958.

Durante o período na universidade, a segregação racial ainda era bastante intensa no sul dos Estados Unidos e os restaurantes eram fechados aos alunos negros. Por essa razão, Nelson era obrigado a almoçar dentro do carro. Alguns anos depois, já considerado um dos mais importantes compositores e arranjadores do país, Nelson voltaria à Lincoln University como professor convidado, quando a chaga da segregação racial, felizmente, já havia sido definitivamente abandonada.

Casado com Eileen Mitchell e com um filho pequeno para criar (Oliver Nelson Jr., que no futuro seria músico também), Nelson resolveu mudar-se para Nova Iorque, em busca de melhores possibilidades de trabalho. Ali, integrou-se às orquestras de Erskine Hawkins e Wild Bill Davis, além de ter sido contratado como arranjador do célebre Apollo Theater, no Harlem. Em 1959, tocou por alguns meses com a big band de Louie Bellson e começou a liderar seus próprios conjuntos.

Entre 1960 e 1961, Nelson fez parte da orquestra de Quincy Jones, tendo excursionado pelos Estados Unidos e pela Europa com freqüência. Também nessa época, tocou brevemente nas orquestras de Duke Ellington (sax alto) e Count Basie (sax tenor), e elaborou os arranjos para big band do álbum “Trane Whistle”, de Eddie Lockjaw Davis. Outro trabalho que lhe deu enorme notoriedade foi a feitura dos arranjos do álbum “Bashin”, de Jimmy Smith, em 1962.

Como acompanhante, atuou com, entre outros, Cannonball Adderley, Etta James, Gene Ammons, Gary McFarland, Sonny Stitt, Mundell Lowe, Art Farmer, Joe Williams, Nancy Wilson, J. J. Johnson, Della Reese, Red Garland e Sonny Rollins sendo que em muitos dos álbuns desses artistas Nelson também era o responsável pelos arranjos – e nesse metier, Nelson era praticamente imbatível, com trabalhos para, entre outros, Wes Montgomery, Billy Taylor, Stanley Turrentine, Benny Golson, Louis Armstrong, Johnny Hartman, Ray Brown, Milt Jackson, Jimmy Rushing, Pee Wee Russell e muitos mais.

Entre 1959 e 1961, Nelson gravou diversos discos para a Prestige, tendo a seu lado acompanhantes da estatura de Kenny Dorham, Eric Dolphy, Roy Haynes, Ray Bryant, Art Taylor, Richard Wyands, King Curtis e Jimmy Forrest. Apesar da boa receptividade desses álbuns, a maior parte da crítica e do público considera o álbum “The Blues And The Abstract Truth” (Impulse, 1961) a sua obra-prima. De fato, trata-se de um álbum verdadeiramente indispensável, que apresenta a versão definitiva do standard “Stolen Moments” (de sua autoria e que havia sido gravado no ano anterior por Eddie Lockjaw Davis) e traz performances extraordinárias de Bill Evans, Freddie Hubbard e Eric Dolphy.

Mas o álbum sobre o qual se deseja falar é o bem menos conhecido e muito menos incensado “Screamin’ The Blues”. Gravado para a Prestige no dia 27 de maio de 1960, no Estúdio Van Gelder, o álbum apresenta Nelson à frente de um sexteto composto, ainda, por Eric Dolphy (sax alto, clarinete baixo e flauta) Richard Williams (trompete), Richard Wyands (piano), George Duvivier (contrabaixo) e Roy Haynes (bateria). Trata-se do primeiro de uma série de memoráveis encontros entre Nelson e o ultravirtuose Eric Dolphy e os resultados são, sob qualquer ponto de vista, notáveis.

O álbum faz, basicamente, uma releitura do blues, dando-lhe uma abordagem contemporânea, mas sem abrir mão do feeling. A tensão entre modernidade e tradição está bastante visível – ou melhor, audível – na faixa de abertura, que também dá nome ao álbum. Em seus 10min58seg de pura energia, Nelson, com o tenor, e Dolphy, com o clarinete baixo, fazem um passeio que remonta à origem do jazz e à tradição de reproduzir nos instrumentos de sopro a voz humana – daí o título, pois aqui o blues é “gritado” com enorme intensidade. Magistrais as participações de Duvivier e Wyands, merecendo destaque também o fabuloso solo do pouco conhecido Richard Williams (com trabalhos ao lado de Charles Mingus, Grant Green, Lou Donaldson, Yusef Lateef e na Thad Jones-Mel Lewis Orchestra).

Em seguida, um blues de andamento marcial, “March on, March on”, de Esmond Edwards, também produtor do disco. A bela introdução fica a cargo de Duvivier, e, aos poucos, todos os demais instrumentos vão se agregando ao tema. Pela ordem, os solos são elaborados por Williams, Nelson (que pilota o sax tenor), Dolphy (a bordo de um flamejante sax alto), Wyands e, novamente, Duvivier.

A levada irresistível de “The Drive”, composta pelo líder, é um dos pontos altos do álbum e uma das duas únicas que não se aferra à estrutura do blues – é um hard bop pulsante e de muito groove. Já foi dito que as músicas de Nelson são fáceis de ouvir e difíceis de tocar e esta afirmação fica bastante evidente nesta faixa. Haynes, com sua percussão articulada, e os infatigáveis Wyands e Duvivier dão o suporte e a coesão necessários para os vôos de Dolphy, particularmente inspirado, Nelson e Williams, cujo estilo melodioso e lírico, mesmo nos contextos mais quentes, é comparável ao do grande Kenny Dorham.

O blues retorna com força total em “The Meetin’”, uma verdadeira pérola da oficina de sons de Nelson, com uma pegada gospel e repleta de evocações a mestres como Jay McShann e Ray Charles. Dolphy parece decidido a ultrapassar todas as fronteiras harmônicas impostas pela física ao sax alto e seu solo é pungente, assimétrico, selvagem, dramático, genial. Também são dignas de nota as fabulosas performances de Williams e de Wyands, cujo solo reproduz com intensidade o melhor da tradição do blues.

“Three Seconds” também bebe na fonte do blues, mas bem menos ortodoxo em sua concepção. Solos muito bem construídos, por parte do líder, de Williams e, como sempre, de Dolphy. Wyands é o responsável por um dos mais belos solos do álbum, no qual exibe influências da música erudita, em especial Chopin. Estupenda a atuação de Duvivier, cuja segurança e familiaridade com as sutilezas do blues impressionam.

Bebop para big bands. Esse é o mote de “Alto-itis”, mais um tema de Nelson, que encerra o disco. Escrita especialmente para este álbum a faixa celebra a destreza do autor e do seu convidado mais que especial. O duelo entre os dois é fabuloso – Nelson mais centrado na tradição bop, fielmente assentado na trilha aberta por predecessores ilustres como Parker e Dolphy extremamente arrojado e preocupado em apontar novas direções para o saxofone jazzístico. Habilidade, destreza e técnica a serviço do jazz, que fazem deste um álbum indispensável a qualquer discoteca, destacando-se também a maravilhosa remasterização, a cargo do próprio Van Gelder.

Após o período na Prestige, Nelson fez alguns trabalhos para a Argo e a Verve, e continuou a sua vitoriosa carreira de músico e arranjador, sendo um dos mais disputados dos anos 60. Provavelmente, é o único sujeito no mundo que trabalhou com Thelonious Monk (fez os arranjos do álbum “Monk’s Blues”, de 1968) e Ringo Starr (foi um dos arranjadores do disco “Sentimental Journey”, de 1970). Aliás, elaborar arranjos para astros da música pop era uma constante na carreira de Nelson, que trabalhou com Diana Ross, Leon Thomas, The Temptations, James Brown, Esther Philips e Ray Charles.

Nelson foi o responsável pelos arranjos e pela condução da orquestra que atuou no álbum “Leonard Feather's Encyclopedia of Jazz All Stars”, uma compilação gravada pela Verve em 1966 para a série Encyclopedia of Jazz, produzida pelo renomado crítico Leonard Feather, onde pontuavam os estelares J.J. Johnson, Phil Woods, Ron Carter e Clark Terry. Em 1969 realizou o antigo sonho de excursionar pela África.

Por sua própria all-star big band, que permaneceu em atividade entre 1966 e 1975, passaram músicos do calibre de Phil Woods, Grady Tate, Conte Candoli, Jack Nimitz, Tom Scott, Bill Perkins, Frank Strozier, Ed Thigpen, Jerome Richardson e muitos outros, fazendo apresentações em Berlin, Montreux e Nova Iorque. Em 1967, mudou-se para Los Angeles, a fim de trabalhar como compositor e arranjador de trilhas sonoras para a televisão, primeiramente para a série “Ironside”, produzida pela rede NBC. Posteriormente, vieram scores para os seriados “Columbo” (também produzido pela NBC e estrelado por Peter Falk), “The Six Million Dollar Man” e “The Bionic Woman” (estes dois últimos, produzidos pela ABC, foram um estrondoso sucesso nos 70).

Também compôs a trilha para o western “Death of a Gunfighter” (no Brasil, “A morte de um pistoleiro”, com Richard Widmark e Lena Horne, de 1969) e escreveu os arranjos para a trilha sonora do filme “O último tango em Paris”, composta por Gato Barbieri. Nelson também compunha peças eruditas, como sinfonias, e era um apaixonado pela educação musical, sendo que a partir de 1969 dava concorridos cursos de verão na Washington University, para os quais costumava levar, como artistas convidados, amigos como Phil Woods, Mel Lewis, Thad Jones, Sir Roland Hanna e Ron Carter. Também escreveu o livro “Patterns for Saxophone”, bastante popular entre os estudantes de saxofone.

Em 1970, Nelson gravou “Black, Brown And Beautiful”, disco tributo em homenagem a Mertin Luther King, assassinado dois anos antes. Além de composições do próprio Nelson, o disco incluía temas de Duke Ellington e do nosso maestro Tom Jobim (“Meditação”). Entre os músicos que participaram do projeto, estavam o baixista Ron Carter, o guitarrista Denis Budimir, o jovem trompetista Randy Brecker, os trombonistas Garnett Brown e Al Grey, os bateristas John Guerin, Shelly Manne e Roy Haynes, os saxofonistas Johnny Hodges e Jerome Richardson e os pianistas Roger Kellaway, Hank Jones e Earl Hines.

No dia 28 de outubro de 1975, quando se encontrava no auge do prestígio como arranjador, Oliver Nelson faleceu de maneira precoce e absolutamente inesperada. Tinha apenas 43 anos e um futuro brilhante pela frente. Primeiramente, atribuiu-se a sua morte a um ataque cardíaco fulminante, especialmente porque nos últimos dias ele vinha trabalhando exaustivamente na elaboração da trilha sonora da série “The Six Million Dollar Man”. Posteriormente, soube-se que o verdadeiro motivo de sua morte foi uma pancreatite aguda – doença traiçoeira que ataca o fígado e que, na enorme maioria dos casos, é fatal. Resta o consolo de sua obra, uma das mais belas e consistentes em toda a história do jazz.

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