UM MÁRTIR INVOLUNTÁRIO DA INSENSATEZ LATINOAMERICANA
Música e outras coisas

UM MÁRTIR INVOLUNTÁRIO DA INSENSATEZ LATINOAMERICANA



Qualquer ditadura, seja de direita, seja de esquerda, é uma conjugação de estupidez e brutalidade. Infelizmente nós, brasileiros, fomos obrigados a conviver com ditaduras em, pelo menos, dois períodos da nossa história: durante o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937 a 1945) e durante o tenebroso regime militar, que afundou o país no obscurantismo entre de 1964 e 1986.

A segunda ditadura brasileira seguiu um movimento histórico no qual o embate entre as superpotências (EUA e União Soviética) fazia dos países periféricos mero joguete de sua geopolítica. Na América Latina dos anos 60 e 70, os Estados Unidos financiaram ou apoiaram ostensivamente uma série de Golpes de Estado, que apearam do poder governos eleitos democraticamente e culminaram na implantação de ditaduras em países como El Salvador, Nicarágua, Bolívia, Peru, Brasil, Chile e Argentina. Os ridículos tiranos e seus asseclas davam as cartas.

A ditadura argentina foi, de longe, a mais perversa e brutal. Ali, cerca de 30 mil pessoas pereceram sob as mãos do regime militar. Tortura, seqüestro, assassinato, tudo cometido em nome de um Estado sanguinário e cruel. Ninguém estava a salvo. Nem mesmo um músico consagrado como o pianista carioca Francisco Tenório Cerqueira Júnior. Para os amigos, simplesmente Tenorinho.

Tenório Júnior acompanhava Vinícius de Moraes e Toquinho em uma excursão a Buenos Aires quando, na madrugada de 18 de março de 1976, foi detido após deixar o Hotel Normandie, onde o grupo estava hospedado. Havia saído para comprar remédios e cigarro quando foi seqüestrado por agentes da repressão oficial e desapareceu sem deixar pistas.

Os motivos da sua prisão, até hoje, são obscuros. Era um músico brasileiro, que acompanhava um cantor/compositor extremamente querido e conhecido na Argentina. Não tinha nenhuma vinculação com a luta armada ou com os movimentos de esquerda, então na clandestinidade. A hipótese mais provável é a de que tenha sido confundido com algum militante de esquerda e, descoberto o erro, tenha sido morto como “queima de arquivo”. Os cabelos e a barba compridos que usava na época podem ter contribuído para o sinistro equívoco.

Vinícius, Toquinho e o poeta Ferreira Gullar, então exilado em Buenos Aires, empreenderam uma busca desesperada e inútil. Vagaram por hospitais e delegacias. Recorreram à embaixada brasileira. Ninguém sabia de nada. O governo brasileiro, também comandado por militares, não empreendeu qualquer esforço para localizar o músico desaparecido.

Apenas em 1986, um ex-integrante do Serviço de Informação Naval da Argentina, chamado Claudio Vallejos, apresentou na imprensa brasileira diversos documentos que davam conta do destino de alguns brasileiros presos pela repressão portenha. Dentre eles, Tenório Jr. Nos documentos apresentados por Vallejos, cujo conteúdo está reproduzido no site do movimento Tortura Nunca Mais, pode-se ler:

“Do dia 20 de março de 1976 – quando o Capitão Acosta solicita ao Contra-Almirante Chamorro autorização ‘para estabelecer contato com o agente de ligação, código de guerra 003, letra C, do SNI do Brasil’, para que informasse a central do SNI no Brasil que o grupo de tarefa chefiado por Acosta estava ‘interessado na colaboração para a identificação e informações sobre a pessoa do detido brasileiro Francisco Tenório Jr.’”

Em outro documento oficial, desta feita dirigido ao embaixador brasileiro na Argentina, ainda no mês de março de 1976, as informações veiculadas são estarrecedoras e revelam o absoluto descaso com que a prisão de Tenório foi tratada pelas autoridades brasileiras:

“Lamentamos informar a essa representação diplomática o falecimento do cidadão brasileiro Francisco Tenório Júnior, Passaporte n° 197803, de 35 anos, músico de profissão, residente na cidade do Rio de Janeiro. O mesmo encontrava-se detido à disposição do Poder Executivo Nacional, o que foi oportunamente informado a esta Embaixada. O cadáver encontra-se à disposição da embaixada na morgue judicial da cidade de Buenos Aires, onde foi remetido para a devida autópsia.”

Tenório foi torturado e, em seguida, morto com um tiro na cabeça, no dia 27 de março, segundo os informes de Vallejos, ele próprio um ex-torturador. O que causa mais revolta é que, mesmo ciente do assassinato de Tenório Jr., o governo brasileiro não teve a decência de comunicar o fato à família, muito menos de se empenhar para a recuperação do seu corpo. O Brasil perdia um dos seus músicos mais talentosos e criativos, de uma forma estúpida e brutal. Como qualquer ditadura.

Qual uma Antígona moderna, a brava Elis Regina promoveu, no final dos anos 70, uma frenética busca pelos restos mortais do amigo. Viajou até a Argentina, deu entrevistas, ouviu pessoas, mas os resultados foram nulos. Em outubro de 2006, a justiça brasileira reconheceu a omissão estatal e condenou a União ao pagamento de indenização por danos morais e materiais. Na sentença proferida pelo juiz federal Alfredo França Neto, lê-se:

“Demonstrada que está a omissão das Autoridades Brasileiras na defesa do cidadão brasileiro Francisco Tenório Cerqueira Júnior, ou, quando menos, na busca mais eficaz por informações sobre o seu paradeiro ou o seu destino, exsurge o dever da compensação pela angústia e pelo sofrimento que a passividade dos representantes diplomáticos e militares da Ré, diante da situação, causa à sua mulher e aos seus filhos, não somente a título dos danos morais, inquestionáveis, como também em razão das agruras materiais, que a falta injustificada e prematura do provedor, por certo, causa aos Autores.”

Tenório destilou sua arte ainda durante a fase inicial da bossa nova e do samba-jazz, nas incontáveis noites do Beco das Garrafas, no início dos anos 60. Dono de um estilo vibrante e de muito swing, com uma percussividade que lembra Horace Silver, ele era também um alentado compositor e apaixonado pelo jazz – chegou a tocar com Bud Shank, em 1963, curiosamente na mesma Argentina em que perderia a vida dez anos depois. Tenorinho chegou a cursar Medicina, mas trancou a faculdade por causa da música.

Acompanhante requisitado, cujo talento já havia sido registrado em álbuns históricos como “Vagamente”, de Wanda Sá, ele deixou um único registro como líder, o excepcional “Embalo”, gravado entre fevereiro e março de 1964, pela RGE, no qual aparece ao lado de velhos companheiros do Beco das Garrafas, como os saxofonistas Hector Costita, Paulo Moura e J. T. Meirelles. Completavam o time de craques os trombonistas Raul de Souza e Edson Maciel, os trompetistas Pedro Paulo e Maurílio, os bateristas Ronnie Mesquita e Milton Banana, os baixistas Sérgio Barrozo e Zezinho Alves, os violonistas Celso Brando e Neco e Rubens Bassini, que na ocasião pilotava o atabaque.

Tenório e seus pares navegam pelas águas da bossa-nova, do samba de gafieira e do jazz, com muita maestria e inventividade. A faixa título, que abre o disco, é de autoria do pianista e revela seu estilo alegre e jovial de compor, além de sua rematada paixão pelo jazz. A releitura de “Inútil Paisagem”, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, e uma música pouco conhecida de Johnny Alf (“Fim de semana em Eldorado”) são dois outros grandes momentos do álbum.

Outra composição de Tenório, “Nebulosa”, talvez seja o ponto alto do disco, com sua atmosfera intimista mas sem abrir mão do swing – seu andamento lembra um pouco os experimentalismos harmônicos de Dave Brubeck. O parceiro Zezinho Alves, que divide o contrabaixo com o lendário Sérgio Barrozo, contribui com a belíssima “Carnaval sem assunto”. Há ainda grandes versões de “Clouds” (Durval Ferreira e Maurício Einhorn), “Consolação” (Baden Powell e Vinícius) e “Sambinha” (Bud Shank), além de outras faixas compostas por Tenório: “Samadhi”, “Néctar” e “Estou nessa agora”.

Juan Trasmonte, blogueiro e agitador cultural argentino, postou em seu blog um depoimento emocionado sobre o eloqüente silêncio que o Brasil tem feito desde aquela fatídica noite de 16 de março, ajudando a manter no ostracismo do tempo a vida e a obra de Tenorinho. Leia-se:

“Bem antes de ter o desejo que motorizou o Samba no pé, meu primeiro projeto de documentário relacionado com o Brasil e sua música, foi a trágica história de Francisco Tenório Cerqueira Junior, o Tenório Jr, o grande pianista seqüestrado e desaparecido na conturbada Buenos Aires de 1976.
Quando tive as primeiras notícias sobre o desaparecimento de Tenório e as suas circunstâncias, o que primeiro chamou minha atenção foi como eu, que na época já tinha interesse na cultura do Brasil, não havia conhecido esse fato através de alguma fonte brasileira. Afinal, Tenorinho não só era um cidadão brasileiro desaparecido na Argentina mas um músico que tinha viajado acompanhando ninguém menos que Vinicius de Moraes. Mas os brasileiros que eu consultei nem sabiam da tragédia ou meramente tinham “ouvido falar”. Tenório Jr. desapareceu duas vezes, a primeira nas mãos dos seus algozes e a segunda no silêncio do Brasil.”

Esperamos que esse silêncio deixe de ensurdecer os ouvidos do Brasil, para que o nosso país possa, a partir de agora, se deleitar com a música extraordinária do inesquecível Tenorinho e se indignar com toda a infâmia que cerca a sua morte. Ele merece e a nação que pretendemos ser um dia também!



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