Música e outras coisas
UM AFORTUNADO SAXOFONISTA
Um dos mais importantes saxofonistas e flautistas surgidos nos últimos quarenta anos, Cornelius “Sonny” Fortune nasceu em Filadélfia, no dia 19 de maio de 1939. Durante a infância e a adolescência, estudou na Wurlitzer e na Granoff, duas das mais importantes escolas de música da cidade, mas nada levava a crer que fosse se interessar seriamente pela carreira musical.
Aos dezoito anos decidiu intensificar os estudos musicais e em pouco tempo já dominava um amplo espectro de instrumentos de sopro. Embora tenha feito carreira no sax alto e na flauta, ele também toca – e bem – os saxofones tenor, barítono e soprano, além do clarinete. Profundamente influenciado por Charlie Parker, Sonny Rollins e John Coltrane, sua carreira profissional tem início no final dos anos 50, em bandas de rhythm & blues da região.
A primeira grande oportunidade lhe foi dada pela cantora Carolyn Harris, em cuja banda permaneceu até 1967. Naquele ano, decidiu tentar a sorte em Nova Iorque, onde havia maiores oportunidades de trabalho, e logo conseguiu firmar seu nome naquele mercado tão competitivo. Seu primeiro emprego foi como substitute do grande Frank Foster na banda do baterista Elvin Jones. A parceria se estendeu por alguns meses, mas Fortune, pouco confiante em seu próprio potencial, preferiu voltar para a cidade natal.
Em 1968, Fortune fez uma nova tentativa de se estabelecer em Nova Iorque e, desta vez, as coisas fluíram de maneira muito mais satisfatória. Foi rapidamente contratado pelo percussionista Mongo Santamaria, com quem gravou uma série de discos e participou de dezenas de apresentações.
No ano seguinte, Sonny se tornou bastante conhecido no circuito da vanguarda novaiorquina por ter participado do álbum “Izipho Zam”, sob a liderança do saxofonista Pharoah Sanders, onde também atuaram o baterista Billy Hart, o baixista Cecil McBee, o organista Lonnie Liston Smith e o guitarrista Sonny Sharrock. Ainda em 1969, participou de outro disco importante, “The Other Side of Abbey Road”, de George Benson, onde atuavam feras do quilate de Ron Carter, Herbie Hancock e Freddie Hubbard.
Fortune então já desfrutava de um relativo prestígio no meio musical e participaria de gravações ao lado de gente como Melvin Sparks, Leon Thomas, Roy Ayers, Dizzy Gillespie, Elvin Jones, Oliver Nelson, Nat Adderly, Leon Spencer e muitos mais. Em 1971 foi contratado por McCoy Tyner e participou das gravações de álbuns importantes, como “Sahara”, “Song For My Lady” (ambos de 1972) e “Song of the New World” (1973).
Encerrada a parceria com Tyner, o saxofonista tocou um período com o pianista sul-africano Abdullah Ibrahim (que antes de se converter ao islamismo se chamava Dollar Brand) e passou algum tempo na big band de Buddy Rich, tocando com freqüência no clube do baterista, o famoso Buddy's Place. Ali foi gravado o álbum “Very Live at Buddy’s Place”, que além de Fortune, conta com as participações do saxofonista Sal Nistico, do guitarrista Jack Wilkins e do pianista Kenny Barron. O disco chegou aos primeiros lugares da parada da Billboard Magazine e recebeu muitos elogios por parte da crítica.
Em 1974, chamou a atenção de Miles Davis que o contratou para o seu grupo, a fim de substituir Dave Liebman. Nessa época Davis estava profundamente envolvido com o fusion e Fortune não se intimidou com a parafernália do eletrificado trompetista, assumindo diversos instrumentos (clarineta, flauta, saxofones alto, tenor e soprano) e participando dos álbuns “Big Fun”, “Agartha”, “Pangaea” e “Get Up With It”, gravados entre 1974 e 1975.
Em 1974 Sonny lançou seu primeiro disco como líder, chamado “Long Before Our Mothers Cried”, que conta com as participações de Stanley Cowell (piano), Wayne Dockery (contrabaixo), Chip Lytle (bateria) e Charles Sullivan (trompete). No ano seguinte, Sonny deixou a banda de Miles a fim de atuar no grupo do cornetista Nat Adderley.
A parceria com Adderley durou poucos meses e logo Fortune partiu para formar o seu próprio conjunto. Foi rapidamente contratado pela A&M Records, onde lançou dois álbuns bastante elogiados pela crítica especializada: “Awakening” (1975) e “Waves of Dreams” (1978). Naquele período, Sonny marca presença em álbuns de Charlie Mingus (“Three Or Four Shades of Blues”, Atlantic, 1977) e Kenny Barron (“Innocence”, Wolf, 1978).
Em 1977, Fortune foi um dos destaques do disco “The Atlantic Family Live at Montreux”, que apresenta uma orquestra conduzida pelo bandleader Don Ellis, em uma apresentaçãpo gravada ao vivo no lendário festival suíço. Na banda, Sonny repartiu o palco com feras do gabarito de David “Fathead” Newman, Herbie Mann, Lew Soloff, Michael Brecker, Randy Brecker, Richard Tee e do percussionista brasileiro Rubens Bassini.
Nos anos 80, Sonny se envolveu em projetos liderados por alguns dos seus antigos parceiros. Voltou a fazer parte do quinteto de Nat Adderly (numa formação que incluía o baixista Walter Booker, o baterista Jimmy Cobb e o pianista Larry Willis), integrou a “Elvin Jones Jazz Machine” e entre 1987 e 1988, foi membro da “Coltrane Legacy Band”, capitaneada por McCoy Tyner e que contava, ainda, com as presenças de Elvin Jones e de Reggie Workman.
Seu grupo, na época, era atração fixa do Village Vanguard e contava com as participações de Billy Hart (bateria), Hilton Ruiz (piano), e Cecil McBee (contrabaixo). Outro acontecimento marcante foi a parceria com o músico libanês Rabih Abou-Khali, em um grupo que fundia música oriental, jazz e world music e que fez bastante sucesso no circuito europeu de festivais entre 1989 e 1990.
Ao mesmo tempo em que se consolida como líder, Fortune vai construindo uma pequena, mas bastante consistente, discografia. Seus discos têm sido lançados por selos como Wounded Bird Records, Konnex, Candid, Evidence, Atlantic e Blue Note (que em 1994 produziu o formidável “Four In One”, um tributo a Thelonious Monk) e contam com a participação de figuras eminentes, como Woody Shaw, Kenny Barron, Jack DeJohnette, Mulgrew Miller, Reggie Workman, Stanley Cowell, Kirk Lightsy, George Cables, Buster Williams, Renee Rosnes, Billy Hart, John Hicks, Joe Lovano, Jeff “Tain” Watts e outros.
Desde o início dos anos 90, Sonny e seus grupos têm excursionado com freqüência pelos quatro cantos do mundo, incluindo Canadá, vários países da América Latina e da Europa e Japão. Ele participou de programas de TV como “48 Hours with Dan Rather” e “Sunday Morning” (este último apresentado pelo pianista Billy Taylor), ambos transmitidos pela CBS. Fortune também participou da trilha sonora do filme “The Crossing Guard” (de 1995 e que no Brasil recebeu o título “Acerto final”), dirigido por Sean Penn e estrelado por Jack Nicholson.
O saxofonista tem sido uma atração constante em festivais ao redor do planeta, como o Chicago Playboy Jazz Festival, o Umbria Jazz, o Atlanta Montreaux International Music Festival, o St. Lucia Festival, o Montreal Jazz Festival, o Twin Cities Winter Jazz Fest, o Vancouver Jazz Festival e o JVC Festival, em Nova Iorque. Fortune fez uma série de apresentações, na Filadélfia e em Washington D.C., em homenagem ao ídolo John Coltrane, liderando um trio onde pontuavam o baixista Reggie Workman e o baterista Rashied Ali, ambos ex-colaboradores de Trane.
Sonny também participou do show comemorativo aos 70 anos de Elvin Jones, realizado em setembro de 1997, em Nova Iorque. Em 2000 foi a vez de prestar nova homenagem a Coltrane, desta feita através do disco “In the Spirit of John Coltrane”, lançado pela Shanachie. Fortune recorda que em 1961 ficou fascinado pelo trabalho de Trane, após ouvir o álbum “My Favorite Things”. A Stereophile Magazine, ao comentar o cd, publicou um artigo no qual Fortune é descrito como “um dos mais intrigantes saxofonistas do jazz contemporâneo”.
Em maio de 2002 o saxofonista participou de vários concertos em homenagem a Miles Davis, no Makor Club, Nova Iorque, em um projeto denominado “Four Generations of Miles”. Com um repertório baseado no álbum homônimo, o saxofonista fez parte de uma banda formada apenas por ex-integrantes das bandas de Davis, sob a liderança do baterista Jimmy Cobb e do guitarrista Mike Stern e com a participação do ótimo Buster Williams no contrabaixo. No disco, lançado pela Chesky em 2003, Williams e Fortune são substituídos por Ron Carter e George Coleman.
No ano seguinte, Fortune criou seu próprio selo, chamado “Sound Reason”, por onde lançou dois álbuns: “Continuum” (2003) e “Last Night at Sweet Rhythm” (2009). Sobre a iniciativa, declarou na época: “Eu fiz isso por escolha própria. Após todos esses anos, acho que era o momento mais oportuno para seguir essa trilha. Não há muita diferença entre um selo pequeno e uma gravadora, a não ser que você seja contratado por uma das grandes. O disco saiu em novembro e vendeu muito bem. Consegui ganhar mais dinheiro com ele do que ganharia se estivesse sob contrato com uma gravadora”.
Apesar de ser dono do próprio selo, Fortune não deixa passar a oportunidade de realizar trabalhos artisticamente relevantes por outras gravadoras. Um exemplo disso é o fabuloso “You and the Night and the Music”, lançado pela Showplace Records. As gravações aconteceram entre os dias 18 e 20 de dezembro de 2006 e contaram com as participações do pianista George Cables, do contrabaixista Chip Jackson e do baterista Steve Johns. O líder se divide entre os saxes soprano e alto e a flauta.
O disco abre com uma anabolizada versão da clássica “Sweet Georgia Brown”, de Maceo Pinkard. A bordo do sax alto, Fortune constrói frases rápidas e muito bem articuladas, despejando sobre o tema toda a imprevisibilidade do bebop, tornando-o irreconhecível. O suporte rítmico é de primeiríssimo nível, destacando-se as linhas harmônicas elegantes traçadas por Cables e a percussão eletrizante de Johns, cujo solo é assombrosamente vigoroso.
Tema que dá nome ao disco, “You and the Night and the Music” é fruto da parceria entre Arthur Schwartz e Howard Dietz. O quarteto faz uma interpretação bastante fiel à melodia original, permitindo-se, contudo, acrescentar um discretíssimo acento latino, especialmente por conta de Cables que soa, por vezes, como um legítimo representante da escola cubana de piano. Novamente utilizando o sax alto, o líder confirma as suas virtudes de improvisador inteligente e ousado, elaborando solos consistentes e tecnicamente exuberantes.
Em “Charade”, de Henry Mancini, Fortune emula o eterno ídolo John Coltrane, usando com muita perícia o sax soprano. A versão apresentada no disco lembra, em alguns momentos, a célebre interpretação coltraneana de “My Favorite Things”, não apenas pelo andamento de valsa comum a ambas mas, sobretudo, pela forma como o saxofonista alonga as notas e pelo uso comedido que faz do vibrato. Cables extrai do seu piano uma sonoridade límpida e vivaz, fazendo um belíssimo contraste à execução intensa e passional do líder.
“'Round Midnight”, de Thelonious Monk vem a seguir e a versão do quarteto é extremamente original, por causa da utilização da flauta. Fortune é um intérprete hábil e surpreendente, capaz de ombrear-se aos grandes flautistas do jazz, como Herbie Mann, Frank Wess ou James Spaulding. A leveza do instrumento torna menos sombria essa que é considerada a obra-prima de Monk, cabendo ao opulento contrabaixo de Jackson o papel de acrescentar-lhe a necessária carga dramática.
Em “Besame Mucho”, de Consuelo Velásquez, o líder se mostra bastante à vontade para navegar pelas águas do bolero, mais uma vez recorrendo ao sax alto. Sua abordagem apaixonada dá um novo colorido a esse tema tão gravado e lhe impõe uma quase inédita visceralidade. A seção rítmica é bastante coesa e se mantém discreta o tempo inteiro, deixando todo o espaço para que Fortune exiba seu formidável talento.
Cables não é apenas um pianista de recursos ilimitados, mas também é um compositor bastante criativo e a cativante “Love Song” é sua contribuição para este disco. Trata-se de uma balada em tempo médio, oscilante como as ondas do mar e que, especialmente graças à flauta de Fortune, dá a impressão de que os músicos, ao executá-la, flutuam graciosamente pelo éter. O grande destaque individual é o estupendo solo de Jackson – não é por acaso que ele é hoje um dos mais disputados baixistas do mercado.
Composição de Edward Redding, “The End of a Love Affair” recebe um arranjo vibrante, repleto de citações à música afro-caribenha e apresenta o líder em sua segunda incursão pelo sax soprano. Única composição de Fortune incluída no disco, “For Duke and Cannon” é uma balada encantadora, porém revestida de uma indisfarçável melancolia. O sax enfumaçado de Sonny cria uma atmosfera de mistério e abandono, enquanto Jackson sublinha os momentos de maior conteúdo emocional com perícia e sensibilidade.
O encerramento não poderia ser mais auspicioso. Uma interpretação magnética de “Bebop”, um dos temas mais emblemáticos de Dizzy Gillespie. Com o sax alto, o líder incendeia a sessão e arranca do seu instrumento uma sonoridade furiosa, conciliando velocidade e precisão. Ótimas atuações de Johns, um dínamo que contagia os parceiros, e do sempre certeiro Jackson. Cables faz uma releitura bastante pessoal do cânone bop, aliando uma técnica invulgar à imprescindível histamina.
Não é à toa que o rigoroso crítico Scott Yanow deu ao álbum quatro merecidas estrelas. Will Smith, da revista Jazz Time, escreveu, por ocasião do lançamento: “Fortune merece um reconhecimento maior e esse disco demonstra as razões disso perfeitamente”. Para Troy Collins, do site Allaboutjazz, nesse disco Fortune e seus homens demonstram “maturidade melódica, respeito profundo pela tradição e um inegável espírito aventureiro no que se refere à improvisação”.
O reconhecimento da crítica já foi devidamente conquistado. Segundo Ed Enright, da Down Beat Magazine, Fortune é “um compositor e instrumentista fascinante”. O veterano Nat Hentoff é mais enfático ao ressaltar as qualidades do saxofonista: “Sonny é a personificação do som da surpresa. Ele certamente vai receber o título de Jazz Master em pouco tempo”.
Falta-lhe, ainda, adquirir uma popularidade proporcional ao seu gigantesco talento, mas ele é bastante sereno em relação a este aspecto e sua genuína devoção à música lhe permite trilhar o seu caminho com tranqüilidade. Em uma entrevista, declarou: “eu sinto que a música me arrebatou de uma maneira definitiva e que sem ela não consigo chegar a lugar nenhum. Eu continuo fazendo música porque é ela que, em minha visão, dá sentido ao mundo”.
Mas mesmo sem muitos holofotes, Fortune se mantém ativo, gravando com regularidade e tocando em festivais e clubes, especialmente em Nova Iorque, cidade que escolheu para viver. Seu último álbum é “Last Night at Sweet Rhythm” (Sound Reason, 2009), gravado ao vivo e que conta com as participações de Michael Cochrane no piano, David Williams no contrabaixo e Steve Johns na bateria.
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