DIÁRIO DE UM MAGO
Música e outras coisas

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O saxofonista e compositor Wayne Shorter nasceu no dia 25 de agosto de 1933, em Newark, estado de Nova Jérsei. Apaixonado por música desde a mais tenra infância, sempre recebeu da família o apoio e o estímulo para seguir a carreira musical. Seu irmão mais velho, Alan Shorter, tornou-se trompetista (seu trabalho pode ser ouvido nos álbuns “Four For Trane”, de Archie Shepp, e “The All Seeing Eye”, sob a liderança do irmão mais famoso) e Wayne, por influência do pai, dedicou-se ao clarinete, que mais tarde seria trocado pelo saxofone tenor.

Wayne recebeu as primeiras lições de clarinete na Newark Arts High School, sendo que a opção definitiva pelo sax tenor veio aos 15 anos, após assistir a uma apresentação de Lester Young, durante uma turnê do projeto Jazz at the Philharmonic, no Adams Theater, em Newark. O programa incluía, ainda, as orquestras de Stan Kenton e Dizzy Gillespie, além de Charlie Parker e Ilinois Jacquet. Os concertos marcariam a vida do adolescente e definiriam o seu futuro como músico.

Durante a adolescência, Wayne montou, na cidade natal, uma banda chamada “The Jazz Informers” e também tocou algumas vezes na orquestra de Jackie Bland, um músico de relativa projeção local. Nas gigs que aconteciam nos clubes de Newark, certa noite o jovem Shorter tocou com ninguém menos que Sonny Stitt, já então considerado um dos maiores saxofonistas de todos os tempos.

Em 1953, Shorter mudou-se para Nova Iorque, onde graduou-se em artes pela New York University, em 1956. Costumava participar de jams em clubes como o Birdland e o Cafe Bohemia e chegou a trabalhar, de forma semiprofissional, com as orquestras de Nat Phipps e de Johnny Eaton. Nesta última, ganhou o apelido de “The Newark Flash”, por conta de sua velocidade ao saxofone. Contudo, a carreira sofreria um hiato em 1956, eis que foi convocado para servir as forças armadas, tendo passado dois anos no exército.

Pouco antes de começar o serviço militar, Shorter viveu uma experiência inesquecível: participou de uma jam session no Café Bohemia, ao lado de um verdadeiro Dream Team do jazz, que incluía os bateristas Max Roach – que o reconheceu e o convidou para tocar – Art Blakey e Art Taylor, o baixista Oscar Pettiford e o organista Jimmy Smith. Shorter lembra que, naquela noite, Miles Davis esteve no clube, à procura de um sujeito chamado Cannonball – simplesmente Cannonball Adderley, que entraria para a história como um dos mais versáteis e talentosos altoístas da história do jazz. Cinco dias depois dessa noite de sonho, Shorter estaria confinado em Fort Dix.

Após a dispensa, Wayne integrou um grupo que era atração fixa do Minton’s Playhouse. Em seguida, tocou brevemente com Horace Silver e, logo após, juntou-se à big band do trompetista canadense Maynard Ferguson, onde conheceu o pianista austríaco Joe Zawinul, que seria de extrema importância em sua vida profissional, a partir do início dos anos 70.

Em agosto de 1959 veio a oportunidade profissional mais extraordinária e desafiadora até então: Shorter foi convidado por Art Blakey para se juntar aos seus Jazz Messengers, uma verdadeira universidade do jazz e ponto de partida na carreira de dezenas de músicos de primeira linha. Ao lado dos Messsengers, Wayne, que chegou a ser diretor musical do grupo, aperfeiçoou seu estilo de tocar e, ao mesmo tempo, tornou-se uma dos mais respeitados compositores de toda a história do jazz.

Seu estilo inconfundível mescla a tradição do blues, a complexidade harmônica do bebop, o vigor do swing, a espontaneidade do hard bop e a ousadia iconoclasta do jazz de vanguarda. A principal característica de suas composições é a completa ausência de linearidade. Há sempre algo surpreendente em seus temas, construídos à base de uma inteligência musical superior, que nutre pela obviedade o mesmo desprezo que Platão nutria pela ignorância. Além disso, Shorter é, indiscutivelmente, um dos mais inquietos e audaciosos improvisadores de todos os tempos, discípulo confesso de John Coltrane. Sua obra, personalíssima, só encontra paralelo na de outro gênio: Thelonious Monk.

Wayne passou cerca de cinco anos com os Messengers. Durante esse período, o grupo gravou alguns dos seus melhores álbuns, como “A Night in Tunisia”, “Like Someone In Love”, “Indestructible”, “Ugetsu”, “Meet You At The Jazz Corner Of The World” e “Free For All”, para selos como Riverside e, sobretudo, Blue Note. Nessa época, além de Shorter e Blakey, atuavam nos Messengers Freddie Hubbard ou Lee Morgan (trompete), Cedar Walton ou Bobby Timmons (piano), Jy,,ie Merritt ou Reggie Workman (contrabaixo) e Curtis Fuller (trombone).

O saxofonista logo caiu nas graças da crítica especializada, sendo laureado com o prêmio de New Star da revista Down Beat, em 1960. Além disso, participou de álbuns de grandes nomes do jazz, como Wynton Kelly, Lee Morgan, Donald Byrd, Lou Donaldson, Hank Mobley, Freddie Hubbard, Gil Evans, Benny Golson, Grant Green, Bobby Timmons e muitos mais.

A visibilidade que o seu trabalho com os Jazz Messengers obteve rendeu a Shorter um convite para gravar o seu primeiro álbum como líder, denominado “Introducing Wayne Shorter”, para a gravadora Vee Jay Records. Sobre o selo, o jornalista Roberto Scardua informa que “havia sido a maior gravadora criada e administrada por negros até o surgimento da Motown. O nome é fruto das iniciais do casal Vivian Carter e James Bracken, que a fundaram em 1953, em Gary, Indiana. Vivian era disc jokey da WGRY e James era proprietário de uma bem sucedida loja de discos. Ambos sentiam a ausência de uma série de artistas talentosos no mercado fonográfico e decidiram alterar essa situação: com US$500.00 obtidos numa loja de penhores, iniciaram aquela que seria uma das maiores gravadoras negras dos EUA”.

As gravações foram realizadas no dia 10 de novembro de 1959, no Bell Sound Studio, em Nova Iorque. A seu lado, o trompetista Lee Morgan, então companheiro nos Messengers, além da sessão rítmica de Miles Davis: Wynton Kelly (piano), Paul Chambers (baixo) e Jimmy Cobb (bateria). No repertório, cinco temas de Shorter e o standard “Mack The Kinife”, de Kurt Weill e Bertold Brecht.

Antecipando o papel de renovador do hard bop que assumiria na década seguinte, Wayne mostra logo na faixa de abertura, “Blues A La Carte”, o quão sofisticadas são as suas harmonias. Embora o tema seja contagiante – explosivo mesmo, em algumas passagens – ele é sempre assimétrico, caudaloso como um rio. Além do fabuloso trabalho do líder, merece destaque o solo de chambers, um primor de velocidade e inteligência.

“Harry’s Last Stand” é um blues cadenciado, onde o trompete mágico de Morgan parece pairar por sobre a melodia. Seus ataques são rápidos como uma blitzkrieg – e tão devastadores quanto. Jimmy Cobb é um monstro na condução do ritmo e seu diálogo com o líder, no estilo chamada e resposta, é simplesmente fantástico.

“Down In The Depths” é hard bop ortodoxo, com refrão bastante assimilável e sopros tocando em uníssono. Os improvises, todavia, transportam o tema para outras galáxias. Shorter não nega a influência coltraneana em sua execução, conjugando vigor físico e virtuosismo técnico ímpares. Mesmo nos solos mais complexos, o líder passa ao ouvinte a idéia de que tocar sax tenor é a coisa mais simples do mundo. Grandes atuações de Kelly e do futuro astro Morgan.

“Pug Nose” é, talvez, a faixa que mais se aproxima daquilo que Shorter faria em sua passage pela Blue Note, a partir de 1964. Seu clima etéreo, embora pulsante, suas harmonias sinuosas, seu ritmo levemente calcado no blues, tudo isso faz do tema um dos pontos altos do album. Ademais, o líder e o fiel escudeiro Morgam dialogam de maneira bastante intense, em um desafio mútuo no qual o grande vencedor é o ouvinte. Destaque também para os solos de Kelly e Chambers, ambos soberbos.

“Black Diamond” é outro petardo, firmemente assentado nos melhores cânones do hard bop. Solos avassaladores, improvisos que desafiam os limites da física, músicos em estado de graça. A interação do quinteto é absoluta, mas a performance vibrante de Morgan merece ser ouvida com bastante atenção. A abordagem de Kelly, percussiva e assombrosamente rápida, remete a um dos pais do hard bop, o grande Horace Silver.

Para encerrar, a saborosa versão de “Mack The Kinife”, que dá um novo colorido a um dos mais conhecidos clássicos do jazz. Imortalizada por Louis Armstrong, a canção de Brecht e Weill recebe um arranjo moderno, que embora não descaracterize a melodia, a torna extremamente contemporânea. Mais uma vez, Morgan abusa de sua técnica primorosa, enquanto Kelly emula a leveza dos pianistas do swing e da fase pré-bebop, como Teddy Wilson e Art Tatum. Um álbum verdadeiramente imperdível e que ainda traz takes alternativos de “Blues A La Carte”, “Harry’s Last Stand”, “Down In The Depths” e “Black Diamond” como bônus.

Shorter deixou os Jazz Messengers em 1964. Finalmente, resolveu aceitar o convite de Miles Davis, para integrar o seu reformulado quinteto. Desde a saída de Coltrane, Davis buscava um substituto à altura e entre os músicos que passaram por seu conjunto estavam Sonny Stitt, Hank Mobley, George Coleman e Sam Rivers. Nenhum deles, apesar do talento superlativo, conseguiu satisfazer completamente o rigoroso Miles, até a chegada de Wayne, que provocou uma verdadeira revolução no grupo.

A parceria foi duradoura e frutífera. No quinteto, ao lado de Davis, Herbie Hancock, Ron Carter e Tony Williams, Shorter criou verdadeiras obras-primas, como “Prince of Darkness”, “E.S.P.”, “Pinocchio”, “Footprints”, “Sanctuary”, “Fall”, “Nefertiti” e muitos outros temas. Os álbuns desta fase estão entre os mais elogiados de Miles, destacando-se “E.S.P.”, “Nefertiti”, “Miles Smiles e “Files de Kilimanjaro”.

Paralelamente ao trabalho com Davis, Shorter deu seguimento à sua belíssima carreira solo, tendo gravado diversos álbuns para a Blue Note entre 1964 e 1969, vários deles alinhados entre os melhores feitos na década de 60. O repertório, basicamente, era composto por temas de sua autoria e dentre os muitos músicos que o acompanharam nesse período estão feras do quilate de Lee Morgan, McCoy Tyner, Reggie Workman, James Spaulding e Elvin Jones. Dentre seus álbuns mais representativos, destacam-se “Night Dreamer”, “The All Seeing Eye”, “The Soothseyer”, “Adam’s Apple”, “Juju” e “Speak No Evil”.

Em 1969, Shorter passou a usar também o sax soprano, no álbum “In a Silent Way”, de Miles Davis. Também usou o instrumento no seu álbum solo “Super Nova”, onde atua ao lado de dois companheiros do grupo de Miles Davis, o pianista Chick Corea e o guitarrista John McLaughlin. Em 1970, Shorter deixou Miles para se juntar ao pianista Joe Zawinul, com quem formaria o Weather Report. Ao lado deles, estavam o baixista Miroslav Vitous (substituído em 1973 por Jaco Pastorius), o percussionista brasileiro Airto Moreira e o baterista Alphonse Mouzon.

O Weather Report atingiu um enorme sucesso comercial, tornando-se, juntamente com o próprio Miles Davis e com o Return To Forever, de Chick Corea, um dos maiores expoentes do movimento fusion, a vertente eletrificada que dominou o cenário jazzístico dos anos 70. Seus álbuns vendiam milhões, seus concertos atraíam milhares de jovens e seus membros eram tratados como pop stars.

Aliás, associação de Shorter com astros do pop era bastante freqüente, tendo participado de álbuns de artistas como Carlos Santana, Joni Mitchell, Don Henley e Steely Dan. Contudo, muitos fãs mais ortodoxos torceram o nariz para as novas experiências de Shorter que, após a morte de John Coltrane em 1966 era, então, o mais reverenciado saxofonista em atividade.

Em 1974, Shorter gravou o antológico “Native Dancer”, onde interpreta canções de Milton Nascimento, com a participação mais que especial do próprio cantor, além de Airto Moreira e Herbie Hancock. O disco foi extremamente bem recebido pela crítica e, até hoje, é considerado um dos pontos altos da discografia do saxofonista. Além disso, abriu as portas do mercado mundial para o nosso Bituca, que se tornou conhecido nos quatro cantos do planeta.

Outro momento memorável na carreira de Shorter foi a participação no grupo V. S. O. P, culminando com uma apresentação ao vivo em Los Angeles que se tornou um álbum homônimo, ao lado dos ex-companheiros no quinteto de Miles Davis, Herbie Hancock, Ron Carter e Tony Williams, além do trompetista Freddie Hubbard.

Os anos 80 marcam o fim do Weather Report, mas Shorter continuou a produzir álbuns voltados para o fusion, como os eletrificados “Atlantis” (1985), “Phantom Navigator” (1987) e “Joy Ride” (1988), todos pela Columbia. Shorter era figurinha fácil em discos de expoentes do fusion, como Larry Coryell, Marcus Miller, Stanley Clark e Victor Bailey, por exemplo.

Um breve retorno ao jazz acústico se deu por ocasião da trilha sonora do filme “Round Midnight”, a cargo de Herbie Hancock. Shorter toca sax tenor e soprano e o disco, que contava com a participação de gente como Ron Carter, Bobby McFerrin, Chet Baker e Dexter Gordon, rendeu ao pianista o Oscar de melhor trilha sonora. Outro ponto alto foi a participação no álbum “Power Of Three”, ao lado do pianista Michel Petrucciani e do guitarrista Jim Hall, gravado ao vivo no Festival de Montreux de 1986.

Em relação à sua vida pessoal, a década de 90 foi bastante difícil para o budista Shorter. Em 1996 perdeu a esposa Anna Maria Shorter em um acidente aéreo – ela estava entre os 230 passageiras do vôo 800 da TWA, que caiu em Long Island. No aspecto profissional, o saxofonista viveu alguns grandes momentos. Em 1995 assinou com a Verve e voltou, aos poucos, ao formato acústico. O álbum “High Life” foi indicado ao Grammy de melhor álbum de jazz contemporâneo de 1997. No mesmo ano, tocou com os Rolling Stones, durante a turnê do álbum “Bridges to Babylon”.

Ainda em 1997, lançou o album “1 + 1”, em duo com o velho amigo Herbie Hancock. A composição “Aung San Suu Kyi”, feita em homenagem à líder política birmanesa, rendeu ao saxofonista o Grammy de melhor composição instrumental. Shorter também participou de outro projeto bastante elogiado ao lado de Hancock, o álbum “Gershwin's World”, de 1998.

Em 2000, Shorter voltou de vez ao formato acústico, montando um dos combos mais badalados do nascente século XXI, onde pontuam o pianista Danilo Perez, o baixista John Patitucci e o baterista Brian Blade. Gravou, desde então, os albums “Footprints” (2002) e “Beyond The Sound Barrier” (2005), ambos ao vivo e o incensado “Alegria”, de 2003, que é o primeiro album de studio do saxofonista em 10 anos. O disco foi agraciado com o Grammy de melhor album de jazz instrumental de 2004. Wayne repetiu a façanha em 2006, desta feita por conta de “Beyond the Sound Barrier”.

Em sua longa e vitoriosa carreira, Wayne Shorter contribuiu, intensamente, para a expansão das fronteiras do jazz, ao incorporar elementos da música erudita e do rock ao estilo e ao renovar, de maneira ousada e inquietante, as linguagens do bebop e do hard bop. Muitas de suas composições, cheias de encantamento e magia, tornaram-se verdadeiros standards do jazz moderno. Também é um dos mais influentes saxofonistas de qualquer era, a quem músicos consagrados como Brandford Marsalis, Dave Murray, Courtney Pine, Chris Potter, Dave Douglas, e muitos outros, não se cansam de tecer loas e prestar reverência.

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