A recuperação de um adicto é sempre uma experiência dolorosa – traumatizante, até. O dependente e sua família passam momentos terríveis e, muitas vezes, o resultado é frustrante. Não são poucas as ocasiões em que o tratamento é interrompido ou simplesmente abandonado. Também não é raro constatar, ao final de meses ou anos de tratamento, que a situação do doente pouco ou nada melhorou. As drogas põem em risco muita coisa: saúde, dinheiro, auto-estima, prestígio, carreira, amigos, família, dignidade.
O mundo do jazz está repleto de dependentes químicos. Alguns deles, como Bud Powell, Charlie Parker ou Bill Evans sucumbiram ante o poder devastador das drogas e perderam tudo, inclusive a vida. Outros, como Philly Joe Jones, Art Pepper ou Chet Baker passaram o resto da existência lutando contra os efeitos poderosamente destrutivos dos narcóticos. E houve aqueles para quem as drogas foram um tenebroso pesadelo mas que, felizmente, conseguiram dar a volta por cima e viveram um final feliz na vida e na carreira. Joe Pass é um exemplo dessa luta hercúlea e, no seu caso, vitoriosa.
Filho de imigrantes italianos, Joseph Anthony Jacobi Passalacqua nasceu no dia 13 de janeiro de 1929, em New Brunswick, Nova Jérsei, e foi criado na cidade de Johnstown, Pensilvânia. Seu pai, o siciliano Mariano Passalacqua, era operário da indústria siderúrgica e não tinha qualquer aptidão musical. Não obstante, assistindo aos filmes do ator Gene Autry, um cowboy que cantava e tocava violão, o pequeno Joseph logo demonstrou um enorme desejo de tocar o instrumento.
Aos nove anos, ganhou do pai a sua primeira guitarra, da marca Harmony, comprada por 17 dólares. Em seguida, começou seus estudos musicais, pelas mãos de um certo Nick Gemus, amigo da família, e levou tão a sério os estudos que em bem pouco tempo já demonstrava um assombroso domínio do instrumento. O orgulhoso Mariano incentivava o filho a se aperfeiçoar cada vez mais e demonstrava muito orgulho do seu talento.
O garoto, que costumava praticar seis horas por dia, correspondia às expectativas do pai e caminhava para se tornar um verdadeiro fenômeno da guitarra. Apaixonado pela música de Django Reinhardt e Charles Christian, o jovem guitarrista, que já usava o nome artístico de Joe Pass, formou um grupo nos moldes do celebrado Quinteto do Hot Club de France, chamado “Gentlemen Of Rhythm”, que se apresentava em festas e em clubes da região de Johnstown. Quando descobriu o bebop, Pass imediatamente adotou o idioma proposto por Charlie Parker e Dizzy Gillespie e orientou sua abordagem para o estilo.
Com apenas 14 anos e ainda na escola, iniciou a carreira profissional, acompanhando a orquestra de Tony Pastor. Aos 18 anos, abandonou a escola para se dedicar à carreira musical e, pouco tempo depois, se mudou para Nova Iorque, onde pôde assistir de perto as performances dos ídolos Parker, Gillespie e Bud Powell. Na Meca do Jazz, estudou teoria musical com o guitarrrista Harry Volpe e atuou por algum tempo nas big bands de Charlie Barnet e Ray McKinley. Também trabalhou como freelancer, tocando em clubes de Manhatan e Nova Jérsei, até ser convocado para a marinha, onde passou cerca de um ano.
Como muitos músicos daquele período, Pass também sucumbiu à perigosa tentação das drogas – no caso, a heroína – e atravessou toda a década de 50 sem ter feito nada relevante do ponto de vista musical e pior: tornou-se um nome não confiável. Na época, ele, que havia sido considerado um dos nomes mais promissores da guitarra jazzística, tinha que se contentar em ver guitarristas como Billy Bauer, Herb Ellis, Mundell Lowe ou Johnny Smith disputando a preferência de crítica e público.
Na tentativa de dar um norte à vida e à carreira, Pass se mudou para New Orleans, onde chegou a tocar em uma boate de strip-tease para sobreviver. A estratégia não deu certo e o guitarrista afundou ainda mais no submundo das drogas – a ponto de ter um colapso, por conta da quantidade de drogas que costumava ingerir.
Joe foi preso em 1954, por porte de entorpecentes, e ficou quatro anos internado no U. S. Public Health Service Hospital, em Fort Worth, Texas. Quando saiu, resolveu tentar reerguer a combalida carreira profissional. Fixou-se em Las Vegas e juntou-se ao trio de acordeonista Dick Contino e passou a tocar na noite, em clubes e hotéis da cidade. Todavia, não conseguiu ficar longe das drogas e, mais uma vez, mergulhou no tenebroso mundo da heroína. O agravante é que, para sustentar o vício, Pass começou a roubar instrumentos musicais dos colegas, vendendo-os em lojas de penhores da região.
Não demorou muito e o músico acabou sendo preso outra vez, em Sacramento, no final dos anos 50. Sobre aquele período, considerado por ele como a “década perdida”, Pass confessou ao jornalista Robert Palmer: “Ficar chapado era a minha prioridade número um. Depois vinham, nessa ordem, a música e as garotas. Só que as drogas minavam todo o meu dinheiro e energia”.
Mais uma vez, submeteu-se ao doloroso processo de reabilitação, desta feita no Synanon Center, onde passou cerca de três anos. Naquela instituição, Pass se juntou ao pianista Arnold Ross e a outros músicos que também lutavam para se recuperar do vício e gravou o álbum “Sounds Of Synanon”, lançado em 1962 pela Pacific Jazz. O disco teve uma ótima repercussão no meio jazzístico e permitiu que Pass, agora definitivamente curado, voltasse a retomar as rédeas da carreira musical.
De início, fixou residência em Santa Monica, Los Angeles, realizando trabalhos ao lado de gente como Bud Shank, Chet Baker, Clare Fisher, Julie London, Della Reese, Bobby Troup, Johnny Mathis, Gerald Wilson, Sarah Vaughan, Page Cavanough, Benny Goodman, Richard “Groove” Holmes, Nancy Wilson, Earl Bostic, Les McCann, Louis Bellson, Frank Sinatra, Bill Perkins, Joe Williams, Johnny Mathis, Joe Newman, Roger Kellaway, Carmen McRae e muitos outros artistas importantes.
Tornou-se o guitarrista de confiança da gravadora Pacific Jazz e participou de dezenas de gravações naquela casa, inclusive lançando ali o seu primeiro disco como líder: “Catch Me!”, de 1963. Trabalhou em programas televisivos como “The Tonight Show”, do apresentador Johnny Carson, “The Merv Griffin Show” e “The Steve Allen Show”, o que lhe assegurava a indispensável segurança financeira.
Aos 34 anos, livre das drogas, saudável, de bem com a vida e no auge da forma técnica, o reconhecimento não demorou a chegar. No mesmo ano em que lançou o primeiro álbum solo, 1963, Pass foi agraciado com o prêmio de “New Star”, pela revista Down Beat. O crítico Leonard Feather saudou-o como “o mais espetacular guitarrista a surgir na cena jazzística, desde o aparecimento de Wes Montgomery, no final dos anos 50”.
Apelidado de “Charlie Parker da guitarra”, Pass certa vez perguntou a Wes Montgomery quem era o seu guitarrista favorito. Sem hesitar, Wes respondeu: “é o guitarrista da sua banda”. A complexidade harmônica do bebop exige dos guitarristas articulação, destreza e técnica extremadas e Pass, dotado de todas essas características, fazia com que a sua música soasse como a coisa mais simples do mundo. Segundo os críticos Richard Cook e Brian Morton, “Pass suavizava o nervosismo do bebop e impunha à obviedade do swing uma complexidade avessa a hermetismos”.
Uma formidável amostra de suas habilidades pode ser apreciada no álbum “Joy Spring”, gravado ao vivo no dia 06 de fevereiro de 1964, no Encore Theatre, em Los Angeles. Lançado pela Pacific Jazz, com produção Richard Bock e capa de William Claxton, o disco traz o guitarrista em um ambiente de total relaxamento, típico dos melhores momentos do jazz californiano. A seu lado, os pouco conhecidos Mike Wofford (pianista que tocou com Kenny Burrell, Zoot Sims, Ella Fitzgerald e Slelly Manne, entre outros), Jim Hughart (contrabaixo) e Colin Bailey (bateria).
A faixa-título, uma das mais conhecidas composições de Clifford Brown, abre os trabalhos com tamanho grau de energia e vivacidade que é impossível ao ouvinte permanecer indiferente. O brilhantismo de Pass, explorando novas possibilidades harmônicas, contagia o grupo. Seu dedilhado, ora frenético, ora melódico, exige dos acompanhantes uma entrega absoluta e todos correspondem à altura, em especial o baterista Bailey. Hughart possui o jogo de cintura típico dos grandes baixistas da Costa Oeste – Curtis Counce e Leroy Vinnegar, em especial – e seu acompanhamento é leve como o vôo de uma gaivota.
O quarteto desenvolve a balada “Some Time Ago”, do compositor argentino Sergio Mihanovic, com uma delicada atmosfera de valsa. Pass passeia entre os registros mais graves e os mais agudos do instrumento com uma competência estarrecedora. Seu fraseado se pauta por uma conjunção mágica de delicadeza e sobriedade, com destaque também para a não menos cativante performance de Wofford. O diálogo entre guitarra e piano lembra os célebres duetos entre Jim Hall e Bill Evans, só que aqui há a luxuosíssima presença de baixo e bateria, ambos discretíssimos.
O standard “The Night Has A Thousand Eyes”, de Jerry Brainin e Buddy Bernier, ganha um arranjo em tempo médio, impregnada de harmonias bop. A guitarra de Pass soa límpida, cristalina, como se não exigisse qualquer esforço para ser tocada. A sessão rítmica providencia um acompanhamento refinado, com direito a um solo dos mais criativos por parte de Wofford, merecendo destaque também o contagiante approach rítmico de Bailey.
A releitura da parkeriana “Relaxin' At Camarillo” é empolgante, com quase 11 minutos de energia e inventividade. Pass aplica doses substanciais de blues ao tema e improvisa com rara maestria e muito vigor. Wofford desenvolve o tema de maneira ousada, entrecortando as notas e percutindo as teclas do piano com uma fúria criativa que remete às imprevisíveis escalas monkianas.
Para fechar, uma versão poderosa de “There Is No Greater Love”, acelerada e repleta de swing. Os solos de Pass são audaciosos, elegantes e sempre muito bem elaborados. Abusando de sua técnica superior, o guitarrista desconstrói e recria a melodia, como somente os grandes são capazes de fazer. A destacar, o acompanhamento primoroso da sessão rítmica, especialmente do baterista Bailey. Um disco dos mais consistentes e representativos da sensacional produção de Pass.
Entre 1965 e 1967, o guitarrista integrou o grupo do pianista George Shearing, ao lado de quem excursionou pelo mundo. A década de 70 encontrou o Pass em plena forma, com gravações para o selo alemão MPS, participação festivais como Monterrey, Northsea, Concord, Newport e Montreux, atuação em álbuns de jazzistas europeus como o acordeonista Art Van Damme, o violinista Stéphane Grappelli e o gaitista Toots Thielemans e um duo de guitarra que resultou em álbum histórico: “Jazz Concord”, de 1973, ao lado do amigo Herb Ellis, parceiro nas noites do tradicional clube Donte’s, com o suporte dos extraordinários Ray Brown e Jake Hanna.
Contratado pelo produtor Norman Granz para a Pablo Records, Pass se tornou o guitarrista por excelência daquele selo, acompanhando astros do quilate de J. J. Johnson, Count Basie, Benny Carter, Milt Jackson, Buddy DeFranco, Duke Ellington, Dizzy Gillespie, Johnny Griffin, Jimmy Rowles, Roy Eldridge, Red Mitchell, Clark Terry, Zoot Sims e Ella Fitzgerald.
Além disso, gravou diversos álbuns em seu próprio nome, sob os mais diversos formatos (solos, duetos, trios e quartetos), incluindo tributos a Duke Ellington (“Portraits Of Duke Ellington”, 1974), a Charlie Parker (“I Remember Charlie Parker”, de 1979) e aos irmãos Gershwin (“Ira, George And Joe”, de 1981).
Uma de suas mais prolíficas associações foi com o pianista canadense Oscar Peterson, cujo trio integrou com alguma regularidade, a partir de 1973. Ali conheceu o baixista dinamarquês Niels-Henning Ørsted Pedersen, de quem se tornaria grande amigo. A trinca Peterson, Pass & Pedersen gravou diversos álbuns, incluindo os fenomenais “The Good Life” (1973) e “The Trio” (1974), vencedor do Grammy de melhor performance de jazz (grupo) daquele ano.
Dono de uma sonoridade cristalina, seu fraseado está entre os mais sofisticados entre todos os grandes guitarristas do jazz e apesar da técnica soberba, jamais resvalava para o exibicionismo, concatenando suas idéias musicais sempre com muita graciosidade. Mas seus méritos não param por aí. Como bem informa Pedro “Apóstolo” Cardoso, Pass era “possuidor de ataque perfeito, com um “drive” irresistível e uma sonoridade cálida, sensual, consegue soar como “acústico” mesmo quando executa com amplificação elétrica”.
Tocar com músicos brasileiros era uma constante na vida de Pass, que gravou ao lado de outras feras, como o maestro Moacir Santos, o percussionista Paulinho da Costa, o guitarrista Laurindo de Almeida e o grupo Azymuth. Em seus discos, podem-se encontrar interpretações de músicas de Tom Jobim, Luiz Bonfá, Ivan Lins, Milton Nascimento e muitos outros. Integrando o trio de Oscar Peterson, Pass se apresentou no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, em janeiro de 1978. Alguns anos mais tarde, em junho de 1987, ele se apresentaria no clube Blue Note, em Nova Iorque, ao lado do brasileiríssimo violonista Baden Powell.
Pass gravou diversos álbuns sem acompanhamento algum – apenas ele e sua guitarra celestial – e muitos deles integram a série “Virtuoso”, que muitos críticos apontam como verdadeiro divisor de águas na história da guitarra – Ted Gioia o coloca entre “a meia dúzia de gravações mais importantes para a moderna guitarra jazzística”. Além disso, escreveu inúmeros métodos de guitarra, com destaque para “Joe Pass Guitar Style” (em co-autoria com Bill Thrasher), considerada obra de referência.
Sobre o próprio estilo, comentou certa feita: “Sempre que eu toco um tema, procuro fazer com que ele soe diferente. Sempre procuro extrair algo novo, imprimir algo que seja somente meu naquele tema. Esse é o meu objetivo: usar tudo que vivi e aprendi e trazer à tona essas memórias, de alguma forma, através do meu instrumento”.
Ele descobriu em 1992 que sofria de câncer no fígado. Apesar de debilitado pela doença, o guitarrista jamais entregou os pontos e trabalhou, praticamente, até o fim. Um de seus derradeiros trabalhos foi uma homenagem ao cantor country Hank Williams, chamado “Roy Clark e Joe Pass Play Hank Williams”, juntamente com os guitarristas Roy Clark (com quem divide os créditos do álbum) e John Pisano e dos velhos companheiros Jim Hughart e Colin Bailey.
O câncer, finalmente, o mataria em 23 de novembro de 1994, no USC Norris Comprhensive Cancer Center, em Los Angeles, e seu corpo foi enterrado no cemitério de Piscataway, em Nova Jérsei. Havia feito seu último concerto, em um pequeno clube de Los Angeles, três semanas antes de morrer, dividindo o palco com o amigo John Pisano.
Pass deixou uma infinidade de seguidores, como George Benson, Pat Metheny, Larry Carlton, Stanley Jordan e o brasileiro Nélson Faria, que foi seu aluno. Mais uma vez, é Pedro “Apóstolo” Cardoso quem resume a sua importância para o jazz: “Foi sem sombra de dúvidas um dos maiores virtuosos da guitarra no JAZZ (e o título de “Virtuoso” que lhe foi dado é perfeitamente identificador), com um sólido “swing” e refinado gosto enquanto harmonizador; solista eficiente, pessoal, com abordagem “pianística” e improvisações elaboradas sutilmente, em muitas ocasiões interpretando as linhas melódicas com destaque para cada nota sobre base rítmica de baixos e acordes, graças ao seu toque superior da mão direita”.
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