NA TERRA DO JAZZ
Música e outras coisas

NA TERRA DO JAZZ



A escola texana de tenoristas, como Illinois Jacquet, Buddy Tate, David “Fathead” Newman, Dewey Redman, James Clay e Arnett Cobb é famosa pelo vigor e pela versatilidade de seus integrantes, capazes de transitar pelo bebop, hard bop, R&B, blues, soul e outros estilos da música negra norte-americana com a mesma competência e desenvoltura. Harold Paul de Vance Land, nascido em Houston, Texas, no dia 18 de fevereiro de 1928, poderia, tranqüilamente, ser incluído no rol dos ferozes “Texas Tenors”, não fosse por um detalhe: quando ainda estava com poucos meses de nascido, o futuro saxofonista e sua família se mudaram para San Diego, na Califórnia.

Eclipsada pelas cosmopolitas Los Angeles e San Francisco, San Diego é uma espécie de “patinho feio” do jazz californiano, o que é uma tremenda injustiça, já que a movimentada cena local dos anos 40 e 50 era forte o bastante para qualificá-la como um dos mais ricos celeiros de grandes músicos de jazz. Lamentavelmente, a maioria deles permanece na obscuridade. Nomes como o do baterista Leon Petties, do contrabaixista Ralph Houston ou do trompetista Froebel Brigham dizem muito pouco aos jazzófilos mais curiosos, mas estes eram alguns dos mais importantes e influentes da cena musical de San Diego, onde Land despontou para o jazz.

O primeiro contato de Land com a música veio através das aulas de piano, recebidas nos anos em que estudou no San Diego High School e o primeiro músico a despertar sua atenção foi Coleman Hawkins, por conta de sua célebre versão de “Body And Soul”. Em meados dos anos 40 o garoto ganhou um saxofone de presente e abandonou o piano, para se dedicar com exclusividade ao novo instrumento. O jazz vivia um de seus momentos cruciais, graças à subversiva atuação de Charlie Parker, Buddy Powell, Dizzy Gillespie e outros jovens músicos, que estavam, então, demolindo as estruturas do velho swing e criando uma escola completamente nova: o bebop.

O jovem Land não ficou alheio a essa revolução e passou a consumir, avidamente, os discos que essa turma da pesada produzia na longínqua Nova Iorque. Remonta dessa época a sua admiração pelo extraordinário Lucky Thompson que, juntamente com Parker, passou a ser sua grande fonte de inspiração. Concluído o colegial, Land foi convidado por Ralph Houston para integrar a sua banda. Pouco tempo depois, o saxofonista se juntou à banda de Brigham, cujos recursos técnicos eram tão soberbos que ele foi convidado por astros como Duke Ellington e Billy Eckstine para integrar as suas respectivas orquestras.

Mais do que satisfeito com a vida que levava em San Diego, Brigham recusou todos os convites para sair dali. Contudo, suas bandas eram consideradas de primeira linha e se apresentavam em concorridos shows nas mais renomadas casas de espetáculo e boates da cidade, como o Creole Palace e o Black And Tan Club. Além disso, eram freqüentes as visitas de músicos de Los Angeles, como Dexter Gordon, Teddy Edwards, Sonny Criss, Herb Geller e Hampton Hawes, que costumavam participar de gigs com os músicos locais.

Em 1949, a banda de Brigham passou uma temporada em Los Angeles e ali fez algumas gravações para a Savoy. Land foi o grande destaque individual e seu nome se tornou relativamente conhecido entre os músicos da Cidade dos Anjos. Pouco tempo depois, foi contratado pelo guitarrista de rhythm & blues Jimmy Liggins, em cuja banda também tocava o baterista Leon Petties, seu colega dos tempos de escola. Após cerca de um ano com Liggins, Harold se estabeleceu como freelancer na região de San Diago, até 1954, quando decidiu tentar a sorte em Los Angeles.

Como já era razoavelmente conhecido pelos músicos da cidade, não teve muita dificuldade para se integrar à cena local, que vivia uma espécie de apogeu criativo, graças ao chamado West Coast Jazz, que causava furor entre os jovens californianos da época. Um dos seus primeiros amigos em Los Angeles foi um jovem multiinstrumentista chamado Eric Dolphy, em cuja casa havia um pequeno estúdio onde os músicos de Los Angeles costumavam se reunir para tocar.

Uma dessas jams teve como convidado de honra ninguém menos que Clifford Brown, que liderava, ao lado do baterista Max Roach, era simplesmente um dos combos mais poderosos e de maior prestígio de todos os tempos. Brown ficou tão impressionado com as habilidades do jovem saxofonista, que no dia seguinte levou Roach até a casa de Dolphy e o apresentou a Land. A empatia entre os três músicos foi imediata e Harold foi convidado a se juntar ao grupo.

Ao lado do Clifford Brown/Max Roach Quintet, Land, que se mudou para a Filadélfia, participou de gravações históricas, como “Study in Brown” e “Brown And Roach Incorporated”. Por conta de problemas de saúde na família – a avó, a quem era muito ligado, ficou gravemente doente – Land teve que deixar o quinteto e voltou para Los Angeles, no final de 1955. Se isto significa alguma coisa, basta dizer que o seu substituto no combo de Brown e Roach foi, simplesmente, Sonny Rollins.

Após a morte da avó, Land decidiu permanecer em Los Angeles. Atuou como freelancer em discos de gente como Wes Montgomery, Jack Sheldon, Hampton Hawes, Herb Geller, Jimmy Rowles, Frank Rosolino, Victor Feldman e outros nomes importantes do cenário californiano. Convidado pelo baixista Curtis Counce, Land integrou o seu conjunto entre 1956 e 1958. O combo, por onde passaram músicos relevantes como o baterista Frank Butler e o pianista Carl Perkins, foi um dos mais influentes da Costa Oeste e deu ao trabalho de Land uma visibilidade até então inédita.

O saxofonista resolveu então montar seu próprio grupo e, para tanto, chamou o pianista Elmo Hope, um novaiorquino amigo de Bud Powell e Thelonious Monk, e que há alguns anos estava estabelecido na Califórnia. Land gravou vários álbuns em seu próprio nome, lançados por selos como Jazzland e Contemporary, incluindo o elogiado “West Coast Blues!”, de 1960, que conta com uma retaguarda estelar: Barry Harris no piano, Joe Gordon no trompete, Wes Montgomery na guitarra, Sam Jones no contrabaixo e Louis Hayes na bacteria.

Antes disso, já havia dado ao mundo aquele que, para muitos críticos, é considerado a sua obra-prima: “The Fox”. Gravado em agosto de 1959, com produção de David Axelrod, para a Contemporary, o disco traz as presenças de Elmo Hope no piano, Dupree Bolton no trompete, Herb Lewis no baixo e Frank Butler na bateria. O repertório é integrado apenas por composições de Land (duas) e de Hope (quatro) e o título do disco (A Raposa) era um dos apelidos de Land, dado pelo baterista Lawrence Marable, por causa da enorme habilidade do saxofonista.

O disco inicia com a faixa homônima, de autoria do líder. Bebop de andamento ultra rápido e de estrutura complexa, é um fabuloso exercício de virtuosismo. Baixo e bateria pulsando a mil, com um diálogo dos mais incandescentes entre Land e Bolton. Este, aliás, é um dos personagens mais intrigantes da história do jazz. Dono de uma técnica incomum, versátil e extremamente criativo, despontou em meados dos anos 40, trabalhando com Jay McShann e Buddy Johnson. Profundamente influenciado por Fats Navarro, Bolton poderia ter se tornado um dos maiores trompetistas de todos os tempos.

Todavia, por conta da personalidade errática e do vício em drogas, Bolton jamais conseguiu escapar da obscuridade. Passou alguns anos preso em Lexington, uma espécie de hospital penitenciário do Kentucky, e nos anos 60 tocou com o saxofonista Curtis Amy e o bandleader Onzy Matthews. Também acompanhou o cantor Lou Rawls e o pianista Dolo Coker. Pouco se sabe acerca de sua vida pessoal, exceto que nasceu em Oklahoma em 1929, que fugiu de casa aos 14 anos e que faleceu em 1993, no Marina Convalescent Hospital, em Alameda, Califórnia.

Apesar de ter gravado um álbum como líder (“Fireball”, para o pequeno selo Uptown), seu grande momento realmente foi neste álbum de Land, sendo que na opinião mais do que abalizada do crítico Ted Gioia, aqui Bolton soa “como o Arcanjo Gabriel, anunciando a chegada do Juízo Final”. Land conheceu o trompetista em uma gig em Los Angeles e não hesitou em convidá-lo para a sessão. Alguns anos depois desta gravação, o saxofonista comentou: “Se as coisas tivessem dado certo para Dupree, ele poderia ter sido um dos trompetistas mais importantes do nosso tempo. Havia uma certa grandeza em sua música, que somente ele era capaz de captar. Ele tinha uma coisa nova, única, uma qualidade que o fazia diferente”.

“Mirror-Mind Rose” é uma balada das mais sensíveis, de autoria de Hope, cuja performance intimista é um dos pontos altos desta faixa. O lirismo pungente de Land evidencia quão intensa é a influência de Lucky Thompson em sua forma de tocar. As delicadas intervenções de Bolton, usando as notas com parcimônia, guardam semelhança com a maneira econômica de Miles Davis.

Em “One Second, Please”, outro tema de Hope, o clima volta a esquentar. Hard bop trepidante, com direito a uma bombástica atuação de Butler, aqui tornamos a presenciar alguns estupendos duelos entre Land e Bolton. Ambos são músicos intensos e passionais, e o vigor que imprimem às suas respectivas atuações ganha colorido ainda mais especial por causa do contraponto feito pelo piano fugidio de Hope, cuja leveza lembra o vôo de uma borboleta, conforme anotam os críticos Brian Morton e Richard Cook.

Com sua estrutura escorregadia e suas alternâncias harmônicas intrincadas, “Sims A-Plenty” é um hard bop elaborado, que exige bastante dos músicos. Bolton aqui rivaliza em audácia e habilidade com um Lee Morgan. Muito à vontade, Hope tempera a sua execução com uma boa dose de blues. Os solos de Land são particularmente notáveis e sua técnica impressiona. A solidez da dupla Butler- Lewis contribui enormemente para dar ao tema a necessária coesão.

“Little Chris” é uma homenagem de Land ao filho, então com nove anos. Menos acelerada que a faixa anterior, mas tão elaborada quanto, evoca a complexidade das composições de Waynwe Shorter. Para concluir os trabalhos, o quinteto apresenta “One Down”, também composta pelo pianista. Festiva e despretensiosa, a faixa flerta com a música latina. Aqui os inspirados Bolton e Land passam a impressão de que estão se divertindo à larga, como se estivessem tocando em uma jam entre amigos. Aliás creio que este é mesmo o espírito deste disco soberbo: uma fabulosa jam entre amigos, para deleite dos ouvintes.

Muitos anos depois, “The Fox” continua a merecer um lugar especial nas afeições do saxofonista. Em uma entrevista, chegou a dizer que “os destaques da sessão foram a excelente interação entre os músicos e as composições de Elmo. Mesmo quando eu estava na Europa, no verão de 1969, pessoas me perguntavam sobre este álbum. A sessão sempre pairou em minha mente como um evento muito importante”.

Nos anos 60, Land se manteria em grande atividade. Participou da histórica gravação do album “Thelonious Monk Quartet Plus Two At The Blackhawk”, em 1960 envolveu-se com alguns dos jovens músicos estabelecidos na Costa Oeste e que estavam, escrevendo um novo capítulo na evolução do jazz. Harold tornou-se amigo e costumava tocar com Ornette Coleman, Paul Bley, Charlie Haden, Don Cherry e Scott LaFaro, todos ligados, de uma forma ou de outra, às experiências sonoras radicais que, para o bem ou para o mal, passaram à história com o nome de free jazz. Sobre aquela época e, em especial, sobre a música vanguardista que aquele grupo estava fazendo, Harold certa vez declarou: “Nós estávamos fazendo grandes progressos em Los Angeles, mesmo que ninguém tivesse conhecimento disso. Não havia muito dinheiro, mas nós tínhamos ali um monte de belos momentos musicais”.

O saxofonista co-liderou um quinteto ao lado do baixista Red Mitchell e trabalhou com regularidade com o trompetista Carmell Jones, tendo participado do histórico “Jazz Impressions Of Folk Music”, de 1963. Também atuou com Nancy Wilson, King Pleasure, Joe Pass, Shorty Rogers, Al Hibbler, Jimmy Witherspoon, Carl Fontana, Gerald Wilson, Sam Cooke, Richard “Groove” Holmes, Ray Brown, Johnny Hartman, Kenny Burrell, Dinah Washington e muitos outros. De 1967 a 1971, associou-se a Bobby Hutcherson, com quem gravou diversos álbuns e excursionou algumas vezes pela Europa.

Na década de 70, Land modificou um pouco o seu estilo, passando a exibir uma grande influência de John Coltrane. Datam desse período a conversão ao budismo e as gravações ao lado de Donald Byrd, Ella Fitzgerald, Blue Mitchell, Red Garland, Bill Evans e Roy Ayers. Nos anos 80, tocou com os trompetistas Freddie Hubbard e Jon Faddis e integrou o supergrupo Timeless All Stars, ligado à gravadora Timeless, do qual faziam parte o pianista Cedar Walton, o baixista Buster Williams, o baterista Billy Higgins, o trombonista Curtis Fuller e o vibrafonista Bobby Hutcherson.

Em 1995 lançou, pela Postcards, o elogiado álbum “A Lazy Afternoon”, no qual está acompanhado por uma orquestra de cordas, com arranjos e regência de Ray Ellis. Em 1996 assumiu o cargo de professor da University of California, Los Angeles, vinculando-se ao UCLA Jazz Studies Program. De acordo com o guitarrrista Kenny Burrell, fundador do programa de estudos de jazz da universidade, “Harold Land possui uma das maiores contribuições para a história do saxofone do jazz”. Ele também costumava ministrar concorridas oficinas na não menos prestigiosa Stanford University.

Na década seguinte, o saxofonista trabalhou com o baterista T. S. Monk e o trompetista Don Sickler. Land continuou a gravar e a se apresentar regularmente em clubes como o Hop Singhs, em Los Angeles e o Keystone Korner, em San Francisco, praticamente até a morte, ocorrida no dia 27 de julho de 2001, em conseqüência de um AVC. Em muitos dos seus concertos, estava acompanhado pelo filho, o pianista Harold Land Jr., cujo currículo exibe trabalhos com Gerald Wilson, Bobby Hutcherson, Marvin Gaye, Joe Henderson, Freddie Hubbard e Ray Brown.

Embora não seja dos mais conhecidos, deixou uma obra de fôlego, espalhada em seus discos lançados por selos como Blue Note, Imperial, Atlantic, Cadet, Mainstream, Concord, Muse e muitos outros, sendo que boa parte deles está disponível em cd. Seu último disco como líder, gravado em 2000 e lançado postumamente no ano seguinte, foi “Promised Land” (Audiophonic), onde Land está acompanhado por Mulgrew Miller (piano), Ray Drummond (baixo) e Billy Higgins (bateria).

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