Música e outras coisas
MEU CORAÇÃO É A LIBERDADE...
Jovem. Bonita. Talentosa. A guitarrista Emily Remler despertava a admiração das pessoas e caminhava para se tornar uma das mais importantes e influentes vozes do jazz dos anos 90. Em pouco mais de dez anos de carreira, havia conseguido se impor em um mundo eminentemente masculino como o jazz instrumental, usando apenas a sua excepcional habilidade com o instrumento. Era respeitada por músicos do quilate de Joe Pass, Herb Ellis, Charlie Byrd, Jim Hall e Larry Coryell. Sua morte prematura, ocorrida em 04 de maio de 1990, em Sidney, Austrália, chocou a comunidade jazzística e provocou uma lacuna que, até hoje, não foi preenchida.
Emily nasceu em Nova Iorque, no dia 18 de setembro de 1957, e foi criada em Englewood Cliffs, Nova Jérsei. Ela começou a tocar guitarra com apenas 10 anos e seus heróis na época eram guitarristas de rock, como Jimi Hendrix, Keith Richards, Jimmy Page, Eric Clapton e Jeff Beck. A paixão pelo jazz, surgida graças à audição dos discos de Miles Davis, John Coltrane, Clifford Brown e, sobretudo, Wes Montgomery, arrebatou-a ainda na adolescência. A desenvoltura e o progresso rápido nos estudos musicais lhe valeram um presente e tanto: uma preciosa guitarra Gibson ES-330, que lhe foi dada pelo irmão mais velho.
Decidida a investir na carreira musical, Emily foi estudar no renomado Berklee College of Music, em Boston, de 1974 a 1976. Enfrentou preconceitos, mas superava as adversidades com determinação e muita disciplina. Ensaiava e estudava com uma intensidade quase feroz e desde aquele período convenceu-se de que uma mulher, para vencer no competitivo e seleto clube dos músicos de jazz devia se esforçar muito mais que um homem. Ela costumava dizer que “tinha que ser duas vezes melhor que um homem para conseguir um emprego”.
Graduada em 1976, com apenas 18 anos, Emily deixou Berklee e se mudou para Nova Orleans, onde tocou em diversas bandas de jazz e blues da região. Inicialmente, formou com o então namorado, o também guitarrista Steve Masakowski, um grupo de fusion chamado Four Play, que chegou a gozar de alguma visibilidade no cenário local.
Fã de blues, de música indiana e da bossa nova, ela costumava passar horas ouvindo discos de Johnny Winter, B.B. King, Ravi Shankar, Luís Bonfá, João Gilberto e Célia Vaz. Essa multiplicidade de referências musicais seria muito importante nos primeiros tempos da carreira profissional. Remler também continuou os estudos musicais, agora pelas mãos de Hank Mackie, um conhecido guitarrista de Nova Orleans.
Seu envolvimento com o jazz cresceu e ela passou a acompanhar grandes nomes que se apresentavam na cidade, como o pianista Michel Legrand e os cantores Robert Goulet e Nancy Wilson. Esta última gostou tanto da cantora que a levou para Nova Iorque. Na banda de Nancy, Remler se apresentou em locais de grande prestígio, como o Carnegie Hall e o Avery Fisher Hall.
De volta a Nova Orleans, Emily continuou a rotina, trabalhando com uma banda de R&B chamada Little Queenie and the Percolators e integrando a orquestra do Fairmount Roosevelt Hotel. Em 1977, ela soube que o grande Herb Ellis estava na cidade para realizar alguns concertos e decidiu procurá-lo, a fim de receber algumas lições.
Herb conta como foi o encontro: “eu estava em Nova Orleans a trabalho, quando fui procurado por aquela jovem, que não parecia ter mais que 20 anos, que gostaria de estudar comigo. Eu pedi a ela que tocasse alguma coisa e quando ela começou a tocar, eu não acreditei no que estava ouvindo. Eu simplesmente deixei de pensar nela como uma garota e tive a certeza que ela seria um dos maiores nomes da guitarra de qualquer era. Ela conseguia tocar qualquer coisa”.
Ellis convidou a jovem guitarrista para participar da edição do Concord Jazz Festival do ano seguinte, na Califórnia. Emily quase não acreditou, quando pisou no palco e tocou ao lado dos Great Guitars, grupo integrado por Ellis, Charlie Byrd e Barney Kessel e Tal Farlow. Durante o festival, Emily pôde conhecer e tocar com feras como os baixistas Monty Budwig e Ray Brown e o baterista Jake Hanna. Sua atuação recebeu elogios por parte da crítica e lhe assegurou alguma notoriedade. Também lhe rendeu o convite para participar de outros shows com os Great Guitars, em Washington.
Depois dessa experiência, a mudança para Nova Iorque foi inevitável e na nova cidade, a guitarrista atuou em alguns espetáculos na Broadway e montou seu próprio grupo, com o baixista Eddie Gomez e o baterista Bob Moses. Sem esquecer as raízes roqueiras, ela chegou a fazer alguns shows com a banda punk The Stereotypes.
Durante esse período, ela foi convidada pelo baixista John Clayton para acompanhá-lo nas gravações do álbum “It’s All In The Family”, para a Concord. Foi a primeira vez em que ela entrou em um estúdio de gravação e sua performance chamou a atenção do produtor Carl Jefferson, fundador e principal executivo da gravadora.
O primeiro álbum como líder, gravado para a Concord em 1981, foi “Firefly”, que contava com as participações de Hank Jones no piano, Bob Maize no baixo e Jake Hanna na bateria. No mesmo período, Emily fazia apresentações consagradoras em festivais como o Concord Jazz Festival (agora como líder), Newport e Berlim (neste último, liderando uma banda formada pela saxofonista Jane Ira Bloom, pelo baixista Harvie Swartz e pelo baterista Daniel Humair).
No mesmo ano em que gravou o primeiro disco, Remler se mudou para Los Angeles. Um dos seus principais trabalhos foi no espetáculo Los Angeles “Sophisticated Ladies”, estrelado pelo ator e dançarino Gregory Hines e que se manteve em cartaz por quase um ano. O respeitado crítico Leonard Feather a escolheu como “Woman of the Year” e ainda em 1981 ela se casaria com o pianista jamaicano Monty Alexander. O casamento perduraria até 1984.
Profissionalmente, ela encarava novos desafios, tocando com Larry Coryell, Ray Brown, Rosemary Clooney, David Benoit, Hank Crawford e Astrud Gilberto. Em 1985, foi eleita Guitarrista do Ano, em eleição realizada pela revista Beat Jazz. A dedicada Remler não esquecia a importância da educação musical formal e foi estudar composição com Aydin Esen e Bob Brookmire. Realizou excursões pelos quatro cantos do planeta, em países como Japão, Canadá, Alemanha, França, Holanda, Austrália e Nova Zelândia.
Após “Firefly”, Emily lançou mais cinco discos pela Concord: “Take Two”, de 1982, “Transitions” de 1983, “Catwalk” de 1984, “Together” (em duo com Larry Coryell), de 1985 e “East To Wes”, de 1988. Ainda em 1988, passou uma temporada na Duquesne University, em Pittsburgh, na qualidade de artista residente. No ano seguinte, foi agraciada com o Berklee's Distinguished Alumni, concedido a ex-alunos que se destacaram no cenário musical. Enveredou pela área de educação musical, lançando os vídeos instrucionais “Bebop & Swing Guitar” e “Advanced Latin & Jazz Improvisation”.
1989 foi um ano de transição. Após oito anos na Concord, Emily assinou com a Justice Records por onde gravou aquele que seria seu último álbum: “This Is Me”, lançado postumamente. O álbum marca uma aproximação da guitarrista com o fusion e conta com participações de expoentes do estilo, como os tecladistas David Benoit e Russ Freeman e o baterista Jeff Porcaro. Vários brasileiros atuam no disco, como a cantora Maúcha Adnet, o percussionista Café e o baterista Duduka da Fonseca.
Em 1990, Emily fazia uma turnê pela Austrália e estava hospedada na casa do trompetista Ed Gaston, em Sidney, quando, no dia 04 de maio, sofreu um ataque cardíaco fulminante. Algumas pessoas chegaram a aventar a hipótese de overdose de heroína, pois Emily há muito lutava contra a dependência química, mas a autópsia confirmou que a morte decorreu de causas naturais.
Embora tenha vivido apenas 32 anos, Emily deixou como legado uma obra rica e bastante marcante. Pode ser considerada, juntamente com Mary Osborne, o principal nome feminino da guitarra jazzística. Os seis álbuns que lançou como líder mostram uma intérprete extremamente habilidosa, inventiva e dotada de enorme personalidade.
Todas essas qualidades podem ser observadas no formidável “East To Wes”. Ao lado de Emily, uma sessão rítmica poderosa: Hank Jones no piano, Buster Williams no contrabaixo e Marvin “Smitty” Smith na bateria. As gravações foram feitas em Nova Iorque, durante o mês de maio de 1988 e a produção ficou a cargo de Carl Jefferson.
A faixa escolhida para abrir o disco é a fervilhante “Daahoud”, de Clifford Brown, provavelmente a composição mais conhecida do lendário trompetista. O ataque de Remler é implacável, furioso, visceral. A sessão rítmica se articula com idêntica vibração, com destaque para as atuações vertiginosas de Jones e Smith.
Tido como um dos temas seminais do cool jazz, “Snowfall”, do bandleader Claude Thornhill, recebe um arranjo sóbrio, onde os silêncios são um componente fundamental. O minimalismo da líder é quase hipnótico e contrasta com a performance vulcânica da faixa anterior. Emily se revela uma intérprete versátil, engenhosa e capaz de se adaptar aos mais diversos climas sonoros. Destaque para o contrabaixo algo solene de Wiliams.
O clima volta a ferver em “Hot House”, jóia da ourivesaria Sonora de Tadd Dameron. Dono de um swing incontestável e mestre em criar atmosferas rítmicas eletrizantes, Williams tem aqui uma de suas atuações mais memoráveis, tanto nos solos quanto no acompanhamento. Emily não se mostra intimidada por estar cercada tantos monstros sagrados. Sua técnica refinada é posta a serviço das frenéticas harmonias do bebop de maneira bastante natural, e mesmo a impressionante velocidade do seu dedilhado possui uma lógica bem definida e se encontra plenamente contextualizada, jamais resvalando para uma vulgar exibição de virtuosismo.
Na encantadora “Sweet Georgie Fame”, homenagem de Blossom Dearie ao grande cantor britânico, o quarteto mescla a cadência valsa retilínea da valsa com as harmonias imprevisíveis do jazz, com um resultado dançante e cheio de frescor. “Ballad for a Music Box” é uma composição de Emily, elegante e com uma atmosfera impressionista que, em alguns momentos, remete a compositores eruditos modernos, como Ravel e Debussy.
A agitada “Blues For Herb” é mais uma composição da guitarrista, que funde elementos do blues com a imprevisibilidade do bebop, com Emily esticando as notas com fúria e vigor. Seu fraseado cru lembra os melhores momentos do George Benson dos anos 60, quando ele ainda era um dos mais talentosos e originais guitarristas do período. A pulsação de Smith é vigorosa, explodindo em uma profusão de ritmos que contagia os parceiros e garante a profundidade indispensável a um blues genuíno.
A releitura de “Softly, as in a Morning Sunrise”, de Oscar Hammerstein II e Sigmund Romberg, é das mais originais. Executada em tempo médio, a canção se desenvolve em torno do vertiginoso diálogo entre guitarra e bateria, com um resultado empolgante. Remler é muito aguerrida e seus solos evidenciam a intensidade emocional de quem que vive e respira música 24 horas por dia. A conferir também os improvisos contagiantes de Jones e Wiliams.
Em “East To Wes”, Emily formula uma verdadeira declaração de amor ao ídolo maior Wes Montgomery. Usando a técnica que consagrou Wes, Remler dispensa a palheta e toca com o polegar, conseguindo alcançar uma sonoridade bastante pessoal. O tema tem um discreto tempero de bossa nova e a interpretação do quarteto concilia enorme dinamismo com uma atmosfera de total relaxamento.
Lamentavelmente, a bela Emily nos deixou, quando sequer havia completado 33 anos. Sua obra merece ser conhecida, inclusive porque boa parte dos seus discos pela Concord se encontra fora de catálogo. Certamente está fazendo bastante sucesso nas concorridas jams celestiais, onde os neons jamais se apagam e o Bourbon nunca termina. Afinal, uma frase ajuda a compreender o seu amor e a sua dedicação ao jazz: “Por fora eu posso parecer apenas uma garota judia de Nova Jérsei, mas por dentro eu sou um negão de 50 anos, com um polegar enorme”.
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