THE MODERN JAZZ QUARTET: MÚSICA COM ALMA E CÉREBRO
Música e outras coisas

THE MODERN JAZZ QUARTET: MÚSICA COM ALMA E CÉREBRO



Era uma vez três músicos excepcionais que se conheceram na orquestra de Dizzy Gillespie e, por partilharem basicamente as mesmas idéias e concepções harmônico-musicais, resolveram fundar um combo jazzístico com forte influência da música erudita. Convidaram um amigo baixista, posteriormente substituído por outro de igual competência técnica, e o baterista original, que resolveu se mudar para a Europa, cedeu as baquetas para outro grande amigo. Com essa formação, o combo atravessa as décadas, apresentando sua inigualável mistura de bom gosto, elegância, sobriedade, arrojo e competência técnica. Essa é, em breves palavras, a história de um dos mais importantes pequenos grupos de todos os tempos: o Modern Jazz Quartet.


No final da década de 40, o pianista John Lewis, o vibrafonista Milt Jackson e o baterista Kenny Clarke tocavam juntos na orquestra de Dizzy Gillespie. A grande afinidade entre eles resultou na fundação do Modern Jazz Quartet, em 1951, com o estupendo Ray Brown assumindo o contrabaixo. Com uma sonoridade inovadora e bastante peculiar, o MJQ, com o seu sofisticado jazz de câmara, foi logo apelidado de “caixinha de música do jazz moderno”. O MJQ, além da excelência técnica de seus membros, sempre se destacou por valer-se de estruturas harmônicas típicas da música erudita, especialmente do barroco de Bach e Vivaldi, associadas a elementos da música negra tradicional, como os spirituals e o blues, além de percorrer com muita propriedade as mais diversas vertentes do jazz, como o swing, o cool e o bebop.


Em 1952 Ray Brown deixa o grupo e em seu lugar assume o discreto Percy Heath. Embora haja registros de diversas gravações, do final dos anos 40 até 1953, para selos como Prestige e Savoy, é certo que o primeiro álbum oficial do grupo é Django (1953), ainda com Clarke na bateria. Nesse álbum antológico, estão presentes os elementos que fizeram do MJQ um dos mais bem sucedidos e longevos combos do jazz – a começar pela acentuada utilização de elementos da música clássica. Além da música título, composta em homenagem ao guitarrista Django Reinhardt, fazem parte do álbum outros clássicos do repertório do MJQ, como "Delaunay's Dilemma" e “One Bass Hit”.


Em 1955, Kenny Clarke parte para a Europa e em seu lugar assume o refinado Connie Kay, cujo estilo minimalista casou-se perfeitamente com as idéias de Lewis, Jackson e Heath. Esses quatro homens, de temperamentos e formações musicais distintas, ainda iriam tocar juntos por mais de trinta anos e influenciar incontáveis gerações de jazzistas. Em 1974, a saída de Jackson provocou o fim do grupo, que se reuniu novamente em 1981 e permaneceu na ativa até o final da década de 1999, quando a morte do vibrafonista encerrou definitivamente a carreira da banda.


A concepção estética do MJQ, para além do aspecto musical, também se estendia à própria maneira do grupo se apresentar no palco, sempre envergando ternos bem cortados, num ambiente que lembrava mais a circunspecção de um Carnegie Hall do que a informalidade de um Minton’s. O rigor acadêmico da música erudita, todavia, jamais tolheu a criatividade dos integrantes do MJQ, cujo swing, embora contido, está presente em toda a sua obra. A aproximação com a música de George Gershwin, outro entusiasta da fusão entre a música clássica e o jazz, é algo bastante natural para o MJQ e a sua personalíssima interpretação do score de “Porgy And Bess” é, sem dúvida, um momento auspicioso na carreira do grupo.


Gravado para a Atlantic em junho de 1964 e abril de 1965, o magistral “The Modern Jazz Quartet Plays George Gershwin’s Porgy And Bess” é uma releitura contemplativa e altamente lírica de sete temas da célebre ópera dos Irmãos Gershwin, inspirada na peça de Dorothy Heyward. Embora seja bem menos conhecido que os geniais “Fontessa”, “Pyramid” e “Concord”, trata-se de um disco bastante representativo na carreira do MJQ, onde se pode perceber com clareza algumas das concepções orquestrais mais caras ao grupo.


A primeira composição é a icônica “Summertime”, interpretada de maneira quase reverencial, com destaque para as sutis texturas percussivas engendradas por Kay e para o vibrafone impetuosamente discreto de Jackson. Em “Bess, You Is My Woman”, o clima oscila entre a serenidade camerística da primeira parte e a swingante parte final, com uma esplendorosa marcação de Heath. Lewis faz discretas evocações a “Rhapsody In Blue”, a emblemática suíte de Gershwin, e também exercita o stride piano e o ragtime.


“My Man's Gone Now”, com um arranjo pungente e encantador, permite a Jackson uma execução vigorosa e ágil, que serve como um perfeito veículo para que o maior vibrafonista do bebop possa exibir todo o seu virtuosismo. Em mais um momento antológico, a balada “I Love Porgy” recebe uma leitura carregada de lirismo e espontaneidade – é novamente Jackson o responsável pela atmosfera altamente emotiva da faixa.


A vibrante bateria Kay, cheia de efeitos percussivos, conduz as inúmeras variações no andamento de “It Ain’t Necessarely So”, originalmente um blues, se torna absolutamente irreconhecível, graças à destreza e inventividade dos quatro. Na faixa mais arrebatadora, “There's a Boat Dat's Leavin' Soon for New York”, impera a dicotomia “reflexão x intuição” e o incessante diálogo entre Jackson e Lewis expõe a tensão que há por trás da atmosfera aparentemente relaxada do MJQ e ajuda a fazer deste um álbum irrepreensível.


Embora tenha recebido algumas críticas por sua fórmula supostamente europeizada e por sua abordagem excessivamente formal, o MJQ sempre manteve intacta a sua integridade artística. Nunca abriu mão suas intrincadas concepções estilísticas, sem que essa complexidade implicasse em hermetismo – ao contrário, a banda sempre foi bastante receptiva a outros estilos e formas de expressão musical. Gravou tanto composições de Bach, Rodrigo e de Villa-Lobos como de Charlie Parker, Dizzy Gillespie e Thelonious Monk, e contou com a participação, em seus discos, de tanto de grandes nomes do jazz, como Jimmy Giuffre, Sonny Rollins, Phil Woods, Freddie Hubbard e Laurindo de Almeida quanto de orquestras e quartetos de cordas.


A música do MJQ é certamente elaborada e complexa, mas não abre mão da improvisação e passa ao largo da previsibilidade. O seu sucesso se deve ao perfeito equilíbrio entre o romantismo de Jackson e o cerebralismo de Lewis, um contraponto que sempre marcou as gravações e apresentações do conjunto e que jamais permitiu que a sua música fosse árida ou desprovida de swing. A vibrante interpretação das composições dos irmãos Gershwin é a prova mais veemente das inumeráveis qualidades da banda. Música para a alma, feita com o cérebro – ou música para o cérebro, feita com a alma.



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