... MAS EM MILT JACKSON A ANATOMIA FICOU LOUCA: ELE É TODO CORAÇÃO!
Música e outras coisas

... MAS EM MILT JACKSON A ANATOMIA FICOU LOUCA: ELE É TODO CORAÇÃO!



Costuma-se dizer que no Modern Jazz Quartet John Lewis era o cérebro, Milt Jackson o coração e Connie Kay e Percy Heath os membros. E é verdade. Ocorre que Jackson levou tão a sério essa definição que incorporou, pelo resto da vida e da prodigiosa carreira, o papel de coração que lhe fora reservado. Seu toque precioso reverbera nos ouvidos como o pulsar de um coração – e não poucas vezes, de um coração apaixonado pela vida e pela música.

Nascido em Detroit, no dia 1º de Janeiro de 1923, Milton Jackson iniciou a sua formação musical ainda na infância, nas igrejas batistas da vizinhança, onde aprendeu a tocar piano, guitarra e violino. Quando estava no ginásio (cursado na Miller High School), passou a estudar também o vibrafone, seguindo os passos dos ilustres predecessores Red Norvo e Lionel Hampton

Foi exatamente após assistir a um concerto de Hampton no Graystone Ballroom que Jackson optou, de maneira definitiva, pelo vibrafone – o jovem músico ficou encantado com a performance de Hamp e da sua banda, que incluía Illinois Jacquet, Joe Newman e Charles Mingus. A educação formal continuou durante os anos que passou na Michigan State University, onde se graduou em música.

De 1942 a 1944 esteve nas Forças Armadas e após deixar o exército, ainda na primeira metade dos anos 40, começou a tocar profissionalmente, em clubes da cidade natal. Em 1945, Dizzy Gillespie, que havia assistido a uma apresentação do grupo do vibrafonista em Detroit, convidou-o a integrar o seu sexteto, cuja formação incluía Charlie Parker, Ray Brown, Stan Levy e Al Haig. Por conta desse novo desafio, Jackson teve que se mudar para Nova Iorque.

Reza a lenda que, logo que chegou à Big Apple, Jackson se dirigiu ao Spotlight, clube situado na Rua 52, com um estranhíssimo vibrafone debaixo do braço. Naquela noite, Charlie Parker era a atração e Milt desejava participar das famosas jams que rolavam no local. O dono do clube, todavia, não quis deixar o jovem vibrafonista entrar, incomodado com aquele instrumento tão estranho ao bebop.

Discussão daqui, argumentos de lá e o sujeito se manteve irredutível. Foi então que Parker soube da confusão e, se dirigindo ao resoluto proprietário do estabelecimento, disse: “Dizzy me falou sobre esse cara e me pediu para dar uma chance a ele. Pode deixar entrar, porque eu quero ouvi-lo”. Jackson, finalmente, conseguiu entrar no clube e o resto é história.

Quando resolveu formar a sua própria orquestra, Dizzy não hesitou em manter ao seu lado o intrépido vibrafonista, que então já construíra uma sólida reputação no circuito bop da Big Apple. E que orquestra era aquela! Além de contar com alguns remanescentes do sexteto, como Ray Brown, nela pontuavam alguns jovens e talentosos músicos que, futuramente, ajudariam a revolucionar o jazz por meio do Modern Jazz Quartet: eram eles o pianista John Lewis e o baterista Kenny Clarke.

Em 1947 Jackson deixou a orquestra de Gillespie para atuar como freelancer, tocando com Thelonious Monk, Art Blakey, Charlie Parker e Howard McGhee. Em 1949, uniu-se por algum tempo à orquestra de Woody Herman, com a qual fez a sua primeira excursão a Cuba. Em 1951, participa da primeira formação do MJQ, ao lado de Lewis, Brown e Clarke (os dois últimos foram substituídos, respectivamente, por Percy Heath e Connie Kay) e permaneceria com o grupo, com algumas interrupções nos anos 70 e 80, por mais de 40 anos.

Paralelamente ao trabalho com o MJQ, Bags (apelido pelo qual era conhecido no meio musical de Detroit) construiu uma fulgurante carreira solo. Acompanhou ou foi acompanhado por Coleman Hawkins, John Coltrane, Jimmy Heath, Miles Davis, Art Farmer, Harry “Sweets” Edison, Wes Montgomery, Ray Charles, Stanley Turrentine, Herbie Hancock, Ron Carter, Cedar Walton, J. J. Johnson, Oscar Peterson, Cannonball Adderley, Sonny Rollins, Count Basie, Joe Pass, James Moody, e muitos outros.

Jackson também era um alentado compositor. “Namesake”, “Bluesology”, “The Late, Late Blues”, “The Cylinder”, “Ralphs New Blues” e “Bags Groove” são alguns dos temas de sua autoria. Como líder, gravou para selos como Blue Note, Prestige, Savoy, Atlantic, United Artists, Impulse, Riverside, Limelight, Fantasy, Verve, CTI e Pablo.

Destacando-se como um dos pontos altos de sua quilométrica discografia, “Live At The Village Gate” é um documento extremamente fiel da fabulosa habilidade de Jackson e do seu absoluto domínio da arisca sintaxe do bebop. Ladeado por quatro músicos extremamente talentosos (Hank Jones no piano, Jimmy Heath no sax tenor, Bob Cranshaw no baixo e Al Heath na bateria), Bags pode aqui abusar do seu fraseado incisivo e vigoroso.

Gravado ao vivo, na noite de 09 de dezembro de 1963, no famoso clube de Nova Iorque, o álbum foi lançado três anos depois, pela Riverside. A qualidade sonora é excelente e a versão em cd traz como brinde duas faixas bônus. Curioso é que Jackson tenha tocado, nesta sessão, com dois irmãos de Percy Heath, o seu companheiro de MJQ.

A faixa escolhida para abrir o disco foi “Bags Of Blue”. Trata-se de um belíssimo blues, levado em tempo rápido e no qual o líder e Al Heath transbordam vigor e agilidade. O fleumático Hank Jones mostra que também sabe swingar com maestria e Jimmy Heath brinda o ouvinte com solos calorosos, inquietos, quase selvagens.

Pérola da dupla Rodgers & Hart, “Little Girl Blue” recebe um arranjo delicado, contemplativo, no qual os instrumentos mais parecem executar uma celestial canção de ninar – a bateria de Al Heath soa como os passos de um anjo travesso a caminhar sobre um colchão de nuvens.

Voltando ao blues, “Gemini”, de Jimmy Heath, é um tema cheio de alternativas harmônicas, que em alguns momentos chega a fazer uma surpreendente incursão pela valsa e pela música oriental – Jimmy e seu saxofone hipnótico lembram bastante Coltrane.

Outro tema calcado no blues, desta feita de autoria do líder, é “Gerri’s Blues”, no qual o fraseado envolvente do líder prepara o terreno para o ensandecido Jimmy Heath (o irmão Al o acompanha em suas pirotecnias). Hank Jones, nada comedido, liberta um enxame de notas– nenhuma delas, obviamente, está fora de lugar – em um solo extático, que beira a catarse provocada por uma cerimônia pagã.

“Time After Time” é uma das mais valiosas gemas da grande canção americana. Composta por Sammy Cahn e Jule Styne, em 1947, desde então vem embalando sonhos e romances – sobretudo quando cantada por Frank Sinatra ou Chet Baker, embora virtualmente todos os cantores e cantoras norte-americanos a tenham gravado (e inúmeros jazzistas também). A versão do quinteto é doce e terna, ideal para uma troca de beijos apaixonados.

“Ignut Oil”, com sua levada funky e pegajosa, é mais um tema bastante assentado no blues, mas que pega carona na soul music e no R&B. Destaque para o solo de Jimmy, altamente energético. “Willow Weep For Me” é o terceiro standard incluído no álbum e também vem embalada em um arranjo bluesy, sobretudo por conta da atuação firme do sempre confiável Cranshaw, enquanto Jackson não abre mão da sofisticação e da elegância, características intrínsecas ao seu fraseado.

O bebop de alta combustão, aeróbico e cheio de musculatura, não poderia faltar, e cabe a Jimmy honra de ter composto a faixa de encerramento, a trepidante “All Members” – seu solo é abrasador e Bags, vulcânico, parece uma usina de alguns milhares de megatons. Da primeira à última faixa, um álbum realmente obrigatório – síntese de tudo o que de melhor Jackson produziu em sua carreira genial.

Jackson é um dos pilares do jazz moderno. Deu ao vibrafone o mesmo status reservado, por exemplo, ao saxofone ou ao trompete no ambiente bop (embora, decerto, haja muito mais saxofonistas ou trompetistas que vibrafonistas no jazz) e influenciou gerações de músicos como Gary Burton, Bobby Hutcherson e Roy Ayers.

Seu conhecimento musical enciclopédico e a sua sensibilidade extremada fizeram dele o maior virtuose ao seu instrumento, embora, ocasionalmente, se arriscasse ao piano, como no álbum “Soul Brothers”, em parceria com Ray Charles (que, a sua vez, atacava o sax tenor com invejável maestria), e no fabuloso “Jazz Sur Seine”, do saxofonista francêss Barney Wilen. Bastante ligado ao blues, a sua execução é sempre muito consistente, seja nas baladas ou nos temas mais caudalosos.

Nos anos 70 e 80 manteve uma prolífica associação com a Pablo, companhia fundada pelo lendário Norman Granz. Até 1974, conseguiu conciliar a carreira solo com a atuação no MJQ, que naquele ano seria desfeito, por conta do natural cansaço de seus integrantes. O grupo foi refeito em 1981 e manteve-se em atividade regular até a morte do vibrafonista, ocorrida em 09 de outubro de 1999, em Nova Iorque, em decorrência de um câncer no fígado.

Bags mereceu uma série de homenagens ao longo da carreira. Além de incontáveis prêmios como melhor vibrafonista, concedidos pelas revistas Metronome e Down Beat, em 1997 ele foi nomeado Jazz Master pelo National Endowment for the Arts e, em 1999, foi indicado para o Down Beat Magazine’s Hall of Fame. Também recebeu o título de Doutor Honoris Causae, concedido pelo Berklee College of Music.

O politizado Bags também foi um engajado militante na luta pelos direitos civis e dos negros norte-americanos. Para o jornalista Don Heckman, do Los Angeles Times, “ouvir Milt Jackson é como observar uma tela de Picasso ou uma interpretação de Lawrence Olivier. Ele é um artista original, autêntico, que inventou a sua própria maneira de se expressar. Sua capacidade de extrair do vibrafone, aquela estranha combinação de barras e tubos de metal, tamanho calor e tamanha paixão é o que faz dele um mestre”.

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Para começar bem 2010, um músico extraordinário, autor de belíssimas páginas no grande livro do jazz: Milt Jackson. Que seja o prenúncio de um ano novo pleno de paz, saúde, realizações e muita música para todos os amigos do JAZZ + BOSSA!





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