UM DEUS PASSEANDO PELA BRISA DA TARDE
Música e outras coisas

UM DEUS PASSEANDO PELA BRISA DA TARDE



Quando alguém é muito grande, dentro da atividade a que se dedica (Chaplin no cinema, Eisntein na física, Pelé no futebol, etc.), é muito difícil escrever sobre essa personalidade sem recorrer a velhos e surrados clichês. Portanto, para falar de Edward Kennedy Ellington, nascido a 29 de abril de 1899, em Washington – D. C., primeiramente haverei de falar de quatro outros gigantes do jazz. O primeiro deles é Thelonious Sphere Monk, um confesso tributário da arte e das inovações harmônicas concebidas pelo genial Duke. Tanto é que em 1955 gravou, pela Fantasy, o excepcional “Plays Duke Ellington”, ao lado dos luminares Oscar Pettiford e Kenny Clarke, considerado uma das suas mais consistentes obras como intérprete. Monk, sempre que instado a falar sobre suas influências, destacava como a primeira delas a figura ensolarada do fabuloso Duke e a gravação desse álbum é a prova mais veemente dessa admiração incondicional.

Outro gigante a que se recorre antes de falar sobre Duke é Charles Mingus. O contrabaixista que viria a se tornar um dos três ou quatro mais importantes compositores da história do jazz – para além de seu exponencial talento como instrumentista – passou uma breve temporada na orquestra de Ellington. Sua saída foi precipitada por uma briga com o trombonista Juan Tizol e a parceria, que se afigurava promissora, teve que esperar algumas décadas para se viabilizar, exatamente até a gravação do genial “Money Jungle”. Nesse disco reverencial, Mingus se dispõe a ser, juntamente com o outro gênio Max Roach, um singelo acompanhante para o Duke executar uma das suas obras mais soberbas. Sobre o álbum, o crítico George Wein, nas linner notes, escreveu: “Ellington! Mingus! Roach!! Um triunvirato, não um trio”. Não bastasse haver interpretado em seus discos diversas composições de Ellington, Mingus ainda haveria de dedicar à sua influência maior a lindíssima “Open Letter To The Duke”.

O terceiro gigante é Miles Davis. Goste-se ou não dele, o trompetista esteve presente em todos os movimentos mais importantes do jazz, seja como um discreto coadjuvante (bebop) ou como um destacado protagonista (cool jazz, hard bop, jazz modal, fusion) – sendo que de alguns desses movimentos pode até reivindicar a paternidade (não sem uma boa briga, haja vista a quantidade de outros pais dispostos a reconhecer como seus esses filhos, à exceção do controverso fusion). É dele a seguinte frase, dita num momento de singular e improvável modéstia: “Todos os músicos deveriam um dia se reunir e agradecer a Duke de joelhos, por tudo o que ele fez pela música norte-americana”.

Complementando a frase de Miles (ou enxugando-a para que ela possa conter a exata dimensão da grandeza de Ellington): “por tudo o que ele fez pela música”, não apenas a norte-americana. Seu talento como pianista, compositor, arranjador e band-leader não encontra paralelo na história do jazz e da música popular em geral. Por sua orquestra passaram alguns dos melhores dentre os melhores: Jimmy Blanton, Juan Tizol, Ben Webster, Cootie Williams, Johnny Hodges, Paul Gonsalves, Ray Nance, Russel Procope, Clark Terry, Harry Edison, Louie Bellson, Cat Anderson, entre incontáveis outros. Complemente-se dizendo que muitos desses homens jamais gravaram ou se apresentaram fora do contexto da orquestra do Duke, em um comovente exemplo de fidelidade e dedicação.

Ellington está entre os maiores compositores do repertório clássico da grande canção americana, ombreando-se a monstros sagrados como Irving Berlin, Cole Porter, Richard Rogers e George Gershwin. Nenhum – e nenhum mesmo – outro compositor foi tão gravado pelos músicos de jazz. Tampouco conheço algum outro músico de jazz que tenha inspirado tantos outros colegas a gravar discos inteiros em sua homenagem. Monk, como já foi dito, gravou o seu tributo. Chico Hamilton (num belíssimo disco que contou com a presença avassaladora de Eric Dolphy) fez o mesmo. Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan gravaram seus songbooks dedicados a Ellington. O Modern Jazz Quartet, Martial Solal, Kenny Burrell, McCoy Tyner, Zoot Sims e Oscar Peterson também fizeram, através de álbuns soberbos, suas leituras da produção do Duke. E que produção! De sua ourivesaria saíram jóias de incomensurável beleza como “Solitude”, “In A Sentimental Mood”, “Satin Doll”, “Sophisticated Lady”, “Do Nothing Till You Hear From Me”, “Mood Indigo”, “Prelude To A Kiss”, “Daydream” e centenas de outras obras-primas.

Ao contrário de outros pais fundadores, Ellington jamais foi refratário à evolução do jazz e sempre transitou com muita desenvoltura entre estilos tão díspares quanto o dixieland tradicional e o bebop revolucionário de Parker e Gillespie, embora a maior parte da sua produção possa ser, cronológica e estilisticamente, atribuída à escola do swing. E é nessa dicotomia entre tradição e modernidade característica da personalidade do Duke que entra o quarto gigante da nossa breve história, John Coltrane, um dos maiores inovadores do jazz e outro fã confesso, com quem dividiria o estúdio para a gravação do álbum “Duke Ellington & John Coltrane”.

Gravado em 26 de setembro de 1962, para a Impulse, este disco é um clássico memorável por muitas razões. Primeiro, por apresentar o Duke tocando em um formato não muito usual – apenas piano, saxofone (tenor e soprano), baixo (a cargo de Jimmy Garrison e Aaron Bell, que se revezam) e bateria (Elvin Jones e Sam Woodyard fazem o mesmo que os baixistas). Segundo, por permitir a Ellington que exiba todo o seu conhecimento do idioma jazzístico, indo do blues ao bebop, com direito a passagens pelo swing ortodoxo e até a pinceladas de free em algumas faixas. Terceiro, por permitir a todos os músicos que exibam uma competência técnica superior em seus respectivos instrumentos. Quarto, por reunir um repertório absolutamente magnífico, com cinco composições do Duke, uma de Coltrane e uma de Billy Strayhorn.

Uma atmosfera sofisticada e intimista permeia o álbum do início ao fim. Na primeira faixa, uma releitura arrebatadora de “In A Sentimental Mood”, com o piano bailando por sobre a melodia enquanto Coltrane desfila toneladas de lirismo. Na sessão rítmica, Aaron Bell e Elvin Jones dão o suporte necessário para o vôo soberano dos respectivos patrões. “Take The Coltrane” é uma curiosa incursão de Ellington pelas águas do free, com momentos bastante calcados no estilo e outros mais assentados no bebop “tradicional”. Uma bela homenagem ao parceiro mais jovem, que retribui com alguns dos solos mais surpreendentes do disco, aqui escudado por seus dois companheiros de quarteto.

Em “Big Nick” é a vez de Coltrane, autor da música, pagar tributo à deliciosa era do swing. Novo desempenho antológico de Trane, com um discretíssimo Ellington acionando com precisão cirúrgica as teclas do seu piano. Ecos do Harlem pontuam toda a canção, especialmente no solo do pianista. Garrison e Jones, soberbos como sempre, pavimentam o caminho para que os líderes possam brilhar. “Stevie” é um blues estilizado de autoria do Duke, que mostra a que veio com um lindíssimo trabalho do piano (agora a sessão rítmica é totalmente ellingtoniana). Destaque para a extraordinária linha de baixo e para os impressionantes arabescos sonoros que emanam do sax de Coltrane. Uma extraordinária versão de “My Little Brown Book”, sutil e delicada como toda obra do fiel escudeiro Strayhorn, exala uma discreta melancolia, realçada pelo fraseado envolvente e etéreo de Trane – outro ponto alto do disco. “Angelica” evoca discretos sabores latinos (a bateria de Jones, em alguns momentos, parece ter saído diretamente de uma ensolarada praia do Caribe), como se piano e saxofone dialogassem em espanhol, por supuesto!
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Fechando o disco, uma bela versão de “The Feeling Of Jazz” – curiosamente, um blues composto a seis mãos por Ellington, pelo cantor Bobby Troup e pelo trombonista George Simon – que mostra porque este estilo é tão importante para a existência daquele. Trane inspirado, Ellington majestosamente discreto, Elvin divino e Garrison soberbo – exatamente mais do mesmo. Uma obra despretensiosa e relaxada, com muitos momentos sublimes. Por isso mesmo, absolutamente indispensável em qualquer discoteca.

É certo que alguns incréus atribuem a Ellington uma estatura muito menor que a que este efetivamente tinha. Acusam-no de vampirizar ou até mesmo de se apropriar indevidamente de obras de seus músicos. Ocorre que o processo de troca de informações é inerente ao próprio jazz. O autor compõe um tema, os músicos que tocam com ele acrescentam alguma coisa e dão a sua leitura da canção e, voilá, a obra se aperfeiçoa. O jazz se caracteriza, exatamente, por ser uma obra em permanente estado de construção. Nesse processo Ellington, assim como todo grande compositor jazzístico, efetivamente incorporava as contribuições dos membros de sua orquestra, mas daí a acusá-lo de rufianismo musical vai uma distância tão grande quanto a que separa a sua obra da “obra” de um Frank Aguiar.


Três fatos dão a dimensão exata do respeito que Ellington tinha por seus músicos e que merecia por parte deles. Nos início anos 50, quando as orquestras estavam em baixa e a sua tocava em salões melancolicamente vazios, o Duke pagava do próprio bolso (com os rendimentos obtidos com a venda de seus discos, direitos autorais e elaboração de trilhas sonoras para o cinema e a televisão) os salários de seus músicos. Em 1967, ainda abalado pela morte do amigo e alma gêmea musical Billy Strayhorn, Ellington gravou um emocionante tributo ao parceiro, chamado “And Her Mother Called Him Bill”, inscrito entre as maiores obras-primas do jazz – conta-se que, nas gravações, alguns músicos, inclusive o líder, choravam copiosamente. E, por fim, ouça o célebre “Ellington At Newport”. Ao final da avassaladora performance do seu saxofonista, ouve-se a voz de um extasiado Ellington a exclamar: “Paul Gonsalves, Paul Gonsalves, Paul Gonsalves”! A breve intervenção do maestro é quase tão emocionante quanto o memorável solo de Gonsalves. É por essas e outras que Benny Green (o crítico, não o pianista), disse certa feita: “Ellington veio ao mundo do jazz para separar os homens dos meninos”. Não apenas separava os homens: escolhia os melhores deles para cerrar fileira ao seu lado. Monk, Mingus, Miles e Coltrane que o digam!
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PS.: Post dedicado ao amigo Sérgio Sônico, o antenadíssimo garimpeiro de todos os sons.



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