Música e outras coisas
ELE MORREU DE TANTO VIVER
“O Caminho dos Excessos conduz ao Palácio da Sabedoria. A prudência é uma velha donzela, cortejada pela incapacidade. Quem deseja, mas não age, gera a pestilência”. A frase de William Blake, constante do seu célebre Provérbios do Inferno, parece ter norteado a vida de muitos músicos de jazz. E um dos que viveu com a intensidade e a volúpia que as palavras do poeta londrino preconizam foi Robert Henry Timmons.
Bobby Timmons, pianista que inscreveu seu nome no panteão dos grandes criadores do jazz, graças às suas composições “Dat Dere”, “Joy Ride” e, sobretudo, “Moanin’”, era daquele tipo de pessoa que queria viver tudo ao mesmo tempo, agora. Nascido no dia 19 de dezembro de 1935, em Filadélfia, foi criado pela mãe e pelo padrasto, um severo pastor batista. Aos seis anos já recebia as primeiras lições de piano e, pouco depois, já tocava o órgão da igreja comandada pelo padrasto. A educação musical formal se completou com as aulas na Philadelphia Musical Academy.
No início dos anos 50, o jazz entrou com veemência na vida do jovem Timmons, que passava horas ouvindo os discos de Art Tatum, Kenny Drew, Erroll Garner, John Lewis, Red Garland e Bud Powell. O conhecimento de teoria musical e os longos anos de estudo de música erudita permitiram ao pianista absorver tantas influências, amalgamá-las a uma enorme cultura musical de todas as vertentes da música afro-americana, como o blues, o soul, o gospel, os spirituals e o rhythm’n blues, resultando em um músico absolutamente original.
Com efeito, Timmons era um músico diferenciado, capaz de injetar em tudo o que fazia uma fabulosa carga de vitalidade, uma energia tão espetacular que, em pouco tempo, tornou-se grande demais para os padrões da cidade natal (que, diga-se, nada tinha de modesta e deu ao mundo sumidades como os irmãos Heath, Benny Golson e John Coltrane). Chegara o momento de conhecer outras paisagens.
Por essa razão, em 1954, mudou-se para Nova Iorque, onde, em pouco tempo, começou a chamar atenção de grandes músicos locais. Tocou com Kenny Dorham no seu projeto Jazz Prophets (1955/1956), Chet Baker (entre 1956 e 1957), Sonny Stitt (1957), Maynard Ferguson (1957/1958), Art Blakey (1958/1959 e, novamente, em 1960, por um curto período) e Cannonball Adederley (1959/1960).
Além dessas associações relativamente duradouras, Timmons também atuou como freelancer, acompanhando Hank Mobley, Arnett Cobb, Lee Morgan, Sam Jones, Donald Byrd, Dexter Gordon, Kenny Burrell, Dizzy Reece, Pepper Adams, Curtis Fuller, Johnny Griffin e Nat Adderley. Ao mesmo tempo, construiu uma belíssima carreira solo, gravando excelentes discos para selos como Riverside, Atlantic e Prestige.
Seu primeiro álbum como líder (“This Here Is Bobby Timmons”, de 1960) mereceu rasgados elogios da crítica à época e contou com a participação dos ótimos Sam Jones (b) e Jimmy Cobb (bt). Pelos sempre excelentes trios formados por Timmons, passaram grandes nomes do jazz, como os baixistas Keter Betts e Ron Carter e os bateristas Albert Heath e Connie Kaye.
Uma amostra de seu estilo altamente pessoal pode ser constatada no soberbo “Easy Does It”. Gravado em 13 de março de 1961, para a Riverside, o álbum contou com a esmerada produção de Orrin Keepnews. Mais uma vez ao lado dos fiéis escudeiros Sam Jones (b) e Jimmy Cobb (bt), Timmons desfia uma sensacional coleção de standards, além de apresentar três composições de sua própria lavra e uma ótima versão de “Groovin’ High”, de Dizzy Gillespie.
A percussão de Cobb marca o início da faixa título – composição de Timmons que abre o álbum – que traduz com exatidão o complexo leque de influências do pianista. Embora o tema seja um ótimo hard bop, há aqui também alguns elementos de soul, de funk e até samba (!), misturados com sabedoria e habilidade, além de muito goove e doses cavalares de energia – o devastador solo do baterista que o diga.
Avassalador é o adjetivo que me ocorre ao ouvir a acelerada execução de “Old Devil Moon”, velho cavalo-de-batalha do amigo Chet Baker, e que aqui recebe uma descomunal carga de adrenalina. Jones e Cobb atuam de forma absolutamente coesa, permitindo ao líder que exiba seu proverbial virtuosismo e a sua versatilidade inconteste. Em outro tema de sua autoria, “A Little Busy”, é a vez de Timmons exibir o seu absoluto domínio do vocabulário bop, acrescido de uma boa pitada de blues e soul.
O clássico “(I Don’t Stand) A Ghost Of A Chance” é tratado com toda a sensibilidade e elegância que merece, com Timmons evocando o lirismo de um Erroll Garner, construindo frases de delicadíssima textura, com uma longínqua pitada de blues. A suavidade e a precisão de Cobb nos tempos lentos são cativantes. Em “Pretty Memory” a alentada mistura de soul, blues e jazz resulta em uma composição robusta, de linhas melódicas muito bem arquitetadas, com absoluto destaque para a maneira magistral como Timmons explora as notas mais graves do seu instrumento.
“If You Could See Me Now”, de Tadd Dameron e Carl Sigman, imortalizada por Sarah Vaughan, é outra balada grande conteúdo emocional e um dos pontos altos do álbum. Essa belíssima composição é recheada de alterações de andamento, passando ao largo de qualquer linearidade – lembra, em alguns momentos, a fabulosa “Round Midnight”, de Monk. O baixo de Jones agasalha as sofisticadas harmonias inventadas por Dameron, enquanto Timmons disseca a própria alma sobre as 88 teclas do seu piano.
A swingante versão de “I Thought About You”, bluesy, contagiante e despretensiosa, deixa o ouvinte com a alma leve – por um momento é capaz até de esquecer as contas de telefone, luz, condomínio, cartão de crédito, escola das crianças... Acompanha-se com um discreto bater de pés e um alegre estalar de dedos! É de se ficar imaginando: como seria um disco de Sinatra, o “dono” da canção (que na verdade é de Johny Mercer e Jimmy Van Heusen), e esse trio? Ah, e ainda tem um solo antológico de Jones.
Fechando os trabalhos, o trio incendeia tudo, com uma radiante versão de “Groovin’ High”. Não faltam personalidade e histamina à execução, especialmente Cobb, cuja bateria vibrante pulsa como o coração de um torcedor em final de campeonato. Bebop de excelente cepa, da lavra de um dos pais fundadores do estilo, tocada com paixão e energia. Um disco que apresenta, de maneira bastante representativa, o espírito criativo e inqueto de Timmons e que enriquece qualquer discoteca.
Timmons, certamente, merece ter o seu nome inscrito no livro dos grandes nomes do jazz. Mas mesmo a fama e a admiração entre seus pares eram incapazes de aplacar o ânimo do pianista e sua atormentada busca por algo que nem mesmo ele sabia o que era. Essa busca culminou na descoberta do álcool e das drogas, elementos que, se não aliviaram de imediato o pesado fardo da existência, acabariam por ser decisivos no sentido de abreviar-lhe a vida e prejudicar a carreira.
E embora não tenha granjeado, em sua carreira solo, o sucesso comercial esperado, Timmons sempre foi um músico bastante requisitado. Ele jamais se deixou estagnar e nunca parou de buscar outras formas de expressão musical. Interessou-se seriamente pela música brasileira e gravou composições de Tom Jobim (Corcovado e O grande amor) e Baden Powell (Samba triste).
Ocorre que havia uma urgência e uma intensidade em sua forma de encarar a vida que nem os aplausos ao fim de cada concerto, nem o reconhecimento e nem o dinheiro – e ele ganhou bastante, pelo menos para os padrões do jazz, em virtude, dos royalties de “Moanin’” – conseguiram aplacar. Não é despropositado acreditar que Timmons tenha morrido de tanto viver.
Os excessos, finalmente, cobraram o seu preço. No dia 1º de março de 1974 Bobby Timmons faleceu, em decorrência de uma cirrose hepática. Tinha 38 anos e havia deixado atrás de si uma obra personalíssima – respeitável e digna de admiração. Muitos pianistas contemporâneos, como Ramsey Lewis, Les McCann e Gene Harris, beberam de sua fonte e bastam os primeiros acordes de “Moanin’” para se ter a certeza de que a sua breve passagem por este plano da existência valeu a pena.
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