Música e outras coisas
O SOL SOMBRIO: GENIALIDADE E LOUCURA SE ENTRECRUZAM NA VIDA E NA OBRA DE BUD POWELL
Quem assistiu ao filme “Por volta da meia noite” certamente se emocionou com os desencontros e desventuras do velho jazzista exilado em Paris – magnificamente encarnado pelo grande Dexter Gordon. A película, verdadeira declaração de amor ao jazz dirigida pelo francês Bertrand Tavernier, se passa no final dos anos 50 e início dos anos 60 e reproduz, com extrema fidelidade, diversos episódios da vida do pianista Bud Powell – à época exilado voluntariamente em Paris – com ênfase em sua amizade com o produtor francês Francis Paudras e em seu embate diário contra o álcool e as drogas, que lhe consumiram a saúde, a sanidade mental e a própria vida. Somente não destruíram seu talento, embora tenham prejudicado bastante a sua carreira.
Bud Powell é, na visão de muitos críticos, o maior pianista da história do jazz. Mesmo que não seja, sua importância para o desenvolvimento do estilo é gigantesca e o coloca no panteão dos maiores nomes do jazz, ao lado de Louis Armstrong, Duke Ellington, Charlie Parker, Miles Davis, Thelonious Monk (seu mentor e grande amigo), Charles Mingus e John Coltrane. Compositor iluminado, é o autor de inúmeros clássicos como “Parisian Thoroughfare”, “Bouncing with Bud”, “Tempus Fugit”, “Dance of the Infidels”, “Um Poco Loco” e “Celia”. Basicamente todos os pianistas que o sucederam – de Bill Evans a Keith Jarrett, passando por Wynton Kelly e McCoy Tyner – sofreram a sua influência.
Nascido em 27 de setembro de 1924, em Nova York, Bud trafegou por todos os becos e embriagou-se em todos os bares do mundo. Apesar disso – ou por causa disso – construiu uma obra sólida e personalíssima. Ajudou a revolucionar o jazz que se tocava até meados dos anos 40 e foi o mais importante pianista do bebop, estilo que ajudou a criar nas incontáveis e históricas sessões do Minton’s. O gênio, todavia, era uma alma atormentada por milhares de demônios. Vida errática, envolvimento intenso com o álcool e a heroína, prisões, demência, exílio, internações, isolamento, solidão, morte... A matéria prima da obra de Bud Powell – verdadeiro operário da tragédia – é a miséria humana, mas a partir de um ambiente de ruína e devastação física e mental ele soube escrever um dos mais belos capítulos da história do jazz.
Na confluência da genialidade e da loucura, Bud nos legou um álbum tributo ao amigo e parceiro Charlie Parker, outro célebre habitante dessa gélida e sombria região. O disco, denominado “Bud Plays Bird”, foi gravado entre outubro de 1957 e janeiro de 1958 para o selo Roulette, mas, por um desses insondáveis mistérios do universo, permaneceu inédito até 1996, quando foi lançado pela Blue Note, graças ao empenho do produtor Michael Cuscuna. Dois perdidos nas noites sujas de Nova York, Bud e Bird se irmanam como siameses trágicos nesse disco seminal, que revela o quanto a obra de um se reflete na do outro.
Extremamente à vontade em um trio que conta com os experientes Art Taylor (bateria) e George Duvivier (baixo), Bud desfia uma torrente de composições de Bird, como “Ornithology”, “Ko Ko”, “Scrapple from the Apple”, “Yardbird Suite”, “Relaxin’ at Camarillo” e “Confirmation”, além de uma gema de Dizzy Gillespie, “Salt Peanuts”. Todas as faixas do álbum são soberbas, sobressaindo-se em várias delas o “acompanhamento” vocal à Keith Jarrett – décadas antes do excêntrico gênio de Allentown inventar o seu estilo.
O grande mérito do disco é revelar como Powell consegue transpor para o piano o fraseado de Parker, sem qualquer prejuízo às idéias do saxofonista. Em “Scrapple from the Apple”, por exemplo, o ouvinte é brindado com uma versão extremamente original, que realça todas as potencialidades harmônicas da canção. A busca por uma nova abordagem harmônica também é fortemente percebida em “Yardbird Suite”, tocada em tempo um pouco mais lento que nas versões consagradas por Bird, com destaque para a extraordinária linha de baixo. A belíssima versão de “Confirmation” é uma festa para os ouvidos – o amálgama de velocidade e lirismo típico de Powell está aqui representado em sua expressão máxima – e os músicos interagem de forma telepática.
São três extraordinários músicos dando e exigindo dos parceiros o melhor de si, em um ambiente de total simbiose. O disco é nada menos que uma aula magna de ritmo, harmonia, melodia e improvisação, passando ao ouvinte a impressão de que, mais que um simples trabalho, a gravação desse álbum foi uma verdadeira festa. O sorriso escancarado do pianista na capa do disco revela tudo: apesar de todos os seus fantasmas, Earl “Bud” Powell não desconhecia a alegria.
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