Música e outras coisas
SOB AS BÊNÇÃOS DE BILAC: UM COMETA MUSICAL CHAMADO LOUIS SMITH
Imagine um cometa cruzando o vazio celestial a uma velocidade de milhares de quilômetros por segundo, deixando à sua passagem um breve e luminoso rastro de poeira de estrelas. Podem se passar anos até que esse solitário viajante das galáxias retorne à sua morada de origem, mas um dia ele assim o fará, para que a harmonia possa, finalmente, reinar na impalpável cartografia do cosmos. Enquanto isso não ocorre, haverá de enriquecer a mitologia dos lugares por onde passa, servindo de inspiração, quiçá, para toda a sorte de poetas, seresteiros, namorados...
Na geografia cósmica do jazz, muitos foram os cometas que por aqui passaram e que retornaram, tão fugazmente, às suas moradas celestiais – onde as jam sessions, assim como o bourbon, nunca terminam e os neons nunca se apagam. Foi assim com Charlie Christian, Fats Navarro, Clifford Brown, Scott La Faro, Booker Little, e incontáveis outros. Todavia, existe uma categoria muito especial de cometas jazzísticos, que permanecem em um intrincado limbo de retraimento e obscuridade – alguns por opção, outros tantos por força das circunstâncias. Assim aconteceu com a fenomenal Alberta Hunter, que depois de anos de dedicação exclusiva ao trabalho como enfermeira, retornou aos palcos e estúdios para retomar uma carreira vitoriosa – após um hiato de mais de 25 anos. O mesmo se pode dizer do grande Frank Morgan, que durante 30 anos lutou contra o pesadelo das drogas (entre 1955 e 1985 sofreu incontáveis condenações por porte e consumo de heroína e passou muitos anos na cadeia), até finalmente retomar as rédeas de sua vida e de sua carreira, num dos mais emocionantes comebacks do jazz.
Da mesma natureza astral, o cometa Louis Smith protagoniza um retorno aos holofotes dos mais surpreendentes – embora, infelizmente, não possa mais tocar, pois desde 2005 luta contra as seqüelas de um grave derrame que lhe reduziu a capacidade motora e lhe ceifou a fala. Redescoberto após o lançamento do magistral disco “Live At Newport ‘58”, de Horace Silver (que permaneceu inédito por inacreditáveis 50 anos), Louis Smith aos poucos sai das sombras a que havia se recolhido voluntariamente e vem, lenta mas progressivamente, ocupando o destacado lugar que é seu de direito no panteão dos maiores trompetistas do jazz. Tanto é verdade que o seu excepcional “Here Comes Louis Smith” voltou às prateleiras no ano passado.
Esse disco, um dos raríssimos liderados pelo trompetista, está entre as obras fundamentais do hard bop e traz em seus créditos uma verdadeira constelação: no piano, os legendários Tommy Flanagan e Duke Jordan (com 3 faixas para cada); no baixo, o ótimo Doug Watkins; na bateria, o sempre confiável Art Taylor; no sax alto, um certo Buckshot La Funke, que também atendia pelo singelo pseudônimo de Julian Cannonball Adderley (razões contratuais motivaram essa curiosa estratégia). Gravado para o selo Blue Note nos dias 4 e 9 de fevereiro de 1957 e relançado em 2008 com uma caprichada remasterização do mago Rudy Van Gelder, esse disco provoca no ouvinte a seguinte interrogação: teriam os deuses do jazz enlouquecido, ou por que outro motivo um sujeito com tamanho talento permaneceu tanto tempo no mais solene anonimato?
A razão, todavia, nada tem de misteriosa ou sobrenatural: foi o próprio temperamento de Smith – avesso às badalações e exigências do mainstream – que lhe impôs o ostracismo voluntário. O talentoso trompetista que já havia dividido o palco e os estúdios com Zoot Sims, Charlie Rouse, Kenny Burrell e Sonny Clarke, entre vários outros luminares, preferiu abdicar da ribalta para dedicar-se exclusivamente ao ofício de ensinar, tendo escolhido para si uma pacata vida de professor em diversas escolas da região de Michigan, inclusive chegando a lecionar na afamada universidade local. Nos últimos 40 anos gravou alguns pouquíssimos discos – concentrando toda a sua atenção e energia na formação de jovens músicos.
Voltando ao disco, nele se podem perceber claramente os predicados técnicos que fazem de Louis Smith um dos maiores expoentes do trompete. Exagero? Ouça “Tribute To Brownie” (composta por Duke Pearson), faixa de abertura desse extraordinário álbum e depois tire as suas próprias conclusões. Aqui não há espaço para intrincados labirintos harmônicos, apenas para o bom e (então) novo hard bop. A exuberância sonora do quinteto jorra aos borbotões, mas sempre com muita fluência, maestria e volatilidade. Fosse um corpo celeste e esse disco seria o incandescente Mercúrio, nunca o gélido Plutão.
O líder, cuja sonoridade redonda e encorpada lembra Clifford Brown, comparece com quatro composições suas, todas executadas em altíssima voltagem. “Brill’s Blues” é, por óbvio, um blues que parece extraído de algum obscuro recôndito do delta do Mississipi, com direito a um trabalho primoroso do baixista Watkins. Na estratosférica “Ande”, o velocíssimo dedilhado de Flannagan é acompanhado por um alucinado Smith, com direito, também, a um show todo particular de Taylor. “South Side” e “Val’s Blues” mantém a pegada, sendo que na primeira o solo de Smith é simplesmente antológico – o mesmo devendo ser dito do solo do feérico “Buckshot La Funke”. Na segunda, outra aula da dupla sax alto/trompete, que trava entre si, durante toda a música, um caudaloso diálogo – à seção rítmica incumbe manter os pés no chão e assegurar aos frenéticos cosmonautas uma aterrissagem tranqüila.
Bilac, que conhecia as estrelas e até conversava com elas, certamente haveria de surpreender-se com a altivez do nosso cometa, ao recusar os possíveis louros de uma carreira que se afigurava brilhante. Talvez até mesmo dissesse ao resoluto trompetista, ao falar sobre os insondáveis mistérios astrais, “Amai para entendê-las! / Pois só quem ama pode ter ouvido / Capaz de ouvir e de entender estrelas”. Portanto, que seja bem-vindo aos corações e prateleiras dos jazzófilos, venerável Louis Smith, e que possa receber em vida todas as flores de que é merecedor.
Ah sim!, quanto àquela história de poeira de estrelas deixada pelos cometas... Não é por coincidência que o cintilante rastro deixado por esse músico extraordinário se apresente sob a forma sonora de uma comovente interpretação da emblemática “Stardust”. É – parece que os deuses do jazz não estavam tão malucos assim.
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